" A Cotovia ou o Rouxinol"
Pensar a "Eternidade" na era do "Efémero"
© Lúcia Costa Melo Simas .( 2011 )
Ninguém responde
[ Máquina têxtil a vapor. Fragmento. Centro Comercial. Porto. 2008 ]
© Levi Malho - Imagem digital
I . Pensar a Eternidade
Pensar na Eternidade às quatro da madrugada é estar doente. Insónias vulgares de toda a gente. Mas pensar na Eternidade é estar doente.
Para quê, querer saber agora, porque está uma luz acesa na rua? Só nós estamos acordados quando temos insónias. Os outros, assume-se que dormem. A luz ficou esquecida na janela. Serve para trazer a Eternidade e iluminar a noite. Pensar nisso é querer mover o tempo que parou sem amanhecer. Noutro redondo local do planeta, janta-se, trabalha-se, ou almoça-se. Aqui dá para pensar que são decididamente quatro da madrugada. Balanço de um tempo nem noite nem dia.
Ou será a cotovia ou ainda o rouxinol?Só frases! Só livros! Só pássaros! Recordações. Roubados a outros. Que raiva roubar para escrever! Porque já está tudo dito algures. É só repetir. A desordem é tudo para a ordem. Sem desordem a ordem murcha, morre logo. Que palavras temos que sejam nossas e não roubadas, oferecidas ou compradas? Só a Eternidade saltou do escuro e insiste em estar aqui. Para quê, afinal?
Eternidade é coisa que pessoas normais não pensam, nem de noite, nem de dia. Bastará que se pense nela três vezes por ano, pelas festas, mortes e alguns batizados. As pessoas normais não se preocupam com a Eternidade. Normal é querer fato novo, carro, jantar, viagem. Tudo coisas, mais coisas e coisas.
A Eternidade sai dos mapas, só flutua no ar, não entra em discursos nem se diz em anúncios. Sim, para diamantes. Mentira! Os diamantes não são eternos. Com força, partem-se mesmo. Não é normal partir diamantes mas há gatos que os usam. Raros, mas há. E cães também. Também se comem cães e gatos! O paradoxo é realidade. A realidade é que o grande paradoxo!
Normal, como estúpido, é querer saber mais do que o sol que nascerá amanhã. Há quem duvide. David Hume teimou sempre. Só por ser palavra não é certeza. Só a terra gira! O sol tem mais que fazer que pensar na terra. Quem tem a certeza que vai amanhecer é normal e é estúpido. A estupidez foi distribuída às mãos cheias sem olhar a quem. Assim somos todos normais.
Definir normal é mais complicado do que explicar Eternidades. A Eternidade não é normal e existe. Tudo está dentro da Eternidade, mesmo que tudo pareça estar fora.
Quem anda em busca de certezas, quer coisas, não pensamentos. Pensamentos a mais põem as pessoas doentes. Toda a gente sabe isso. Certezas são medir, pesar, contar coisas concretas. É bom e uma pessoa entende. Só que há quem não queira entender coisas, nem pesar, nem contar. Nem sequer medir. Adoece por isso. Não entra na norma.
Se fossemos normais, estaríamos a dormir. Que bom ter sono, ter fome e sede e matar tudo!Há tanta estatística a dizer o que fazemos e não fazemos. Normal é ir de férias no dia 1 de um mês com sol e ter os dias contados para voltar. Temos todos os dias contados mas é bom nem saber isso. Pouco sabemos e nos contentamos. Quando não nos contentamos, aparece a Eternidade. Que triste contar os dias na eternidade! Não se conta! Não se conta que minguam os dias, as horas, os minutos.
“ Ter os dias contados” diz-se de alguém que vai morrer, de quem vai de férias ou tem negócios em risco. “Dias contados” diz-se das árvores que os homens cortam, dos impérios que caem, dos cães abandonados nos canis. Dói muito um cão que chora o dono.
Se apertarmos muito as mãos e fecharmos os olhos, com toda a força, talvez o cão doa menos. Talvez a dor se vá com o pensamento vazio. Mas vazio é já um pensamento igual a cheio. Como aquele menino, que não sei quem é, e agora mesmo morreu afogado, assassinado, torturado e de fome. E é irmão? Com muita força, os pensamentos mudam como os sonhos maus que não queremos ter.
A luz continua lá fora. Afirma normal o escuro.
Alguém vela, estuda, tem insónias, ou dívidas por pagar. Que triste ser só tudo isso. Se fosse por estar a pensar na Eternidade ou a escrever versos não seria normal. Escrever versos, às quatro da madrugada, dói mais que pragas rogadas. Dói porque não são certos nem bons. Se forem certos são maus, se forem bons, detestáveis. Os versos escrevem-se para se rasgar, ou então as palavras inventam-nos e fica tudo certo e em paz serena. Os bons versos, ninguém os escreve. São eles que chegam para alguém que nem os quer. Depressa ou devagar há horas em que chegam. Não se anunciam. Não atendem a chamados. Caprichosos caem no colo de alguém que não os queria. Recusam os braços de quem tanto os queria amar. Ninguém sabe quando vêm nem quem amam. Nem se podem chamar. Chamar, chama-se o cão, o gato ou um café ou sumo de braço no ar. Não se pode chamar poesia. Mais simples chamar a Eternidade. Que não depende de versos, de gente, de chuva ou de gatos.
Quando morremos vamos todos para o céu? De certeza só por Deus ser amor? O Inferno fechou as portas para não entrar mais ninguém. Greve? Perdão geral? Bondade? Ninguém entende.
O Purgatório parece ser purgativo. Sem ser eterno não tem préstimo. Onde está a consciência? Qual o peso? Tudo perdoado parece ser passar o ano copiando. O copiando para ir para um céu estrelado? Não vale.Há tantos paraísos na terra que ninguém quer ir para o céu. Estão demasiadamente bem. Não fracassam, não lutam, não querem muito mais que todos os outros. Nova beatice de consumir devagar com cantigas. Gostam de cá estar rodeados de coisas e mais coisas. Como se pode ir para o céu sem coisas, remédios, caminhadas, ginásios? Não mais entram no céu contentes deixam cá tudo. Que temos nós que valha o céu? E a eternidade? Antes até cantavam.
O céu deve andar cada vez com menos gente. Já são felizes cá, com boa vida, remédios para dores, remédios para frio e calor. Pessoas que servem de remédios. Mil remédios para curar e nenhum para levar para a Eternidade. Confuso, isso. Há uma muralha, um muro, coisa que o valha, que não deixa ver o céu. Não se fala do céu por medo ou ignorância? A morte passa às quatro da madrugada e leva mais um. Para onde?
Lá… diz Antero mas ele nada sabia onde era esse lá. Para descobrir lia livros às avessas. Queria um Deus à sua medida. Ninguém O tem.
A morte é a mais lúcida catequista que alguma vez existiu. Aprende-se o valor da vida em contraste com a morte. Uma aula sem tempo ou espaço. Com palavras raras. A fingir acreditarem certezas. A ver se a verdade se esconde atrás da porta, ou dentro de livro.
A morte é passagem. Só a eternidade dá regras.Quem se põe a pensar no que se pode fazer eternamente no céu? Que medo, que terror, que enigma ou segredo, se teima em não querer olhar? Rezar mil rosários, triliões de missas, mil milhões de orações, tocar sinos, cantar, rezar sem parar como os moinhos das orações. Repetir sem fim que se ama a Deus sem mentir uma só vez? Por toda a eternidade.
Amar os mortos é estúpido. Temos de os pensar como vivos. Mas quando eram crianças, jovens ou velhos? Anjinhos lindos, bebés colocados em andores e colunas, tetos e imagens. O que se faz nesse céu de pombas e asas brancas de Miguel Ângelo e Rafael, pintores de crianças gordas a brincar em jardins. Onde estão os nossos bons animais amigos no céu? Quem lhes tirou a alma? Quem espreita o Inferno gelado de Dante? Lá se gela de insensibilidade.
Que fazem os santos, sem tocar harpas, nem sinos, sem nuvens para se sentar, nem ver TV, nem com uma intriga ou uma Kalashnikov ? Seremos já tão cínicos que a bondade, o afeto, a generosidade o arrependimento e o perdão, tudo isso nos enjoa e aborrece? Cada vez o céu está mais perto e cada vez é mais difícil entrar lá.
Não se merece morrer. Toda a gente diz que não merece. Mas morre?! Merece sim, usar perfumes, manjares, jóias, coisas, mil coisas sim merece. É estúpido, mas merece. Diz-se que a morte é estúpida. Será mesmo, e nós?
A Eternidade ficou aqui, presente, irritantemente presente. A insistir em explicações. Aqui, parada à nossa frente não se vai embora e não nos dá sono nem sonhos. Nunca ensina nada e tudo espera. Nem se pode dizer o que vai para lá, bem para lá, do muro da Eternidade. Nem antes nem depois. De quê? Quem explica o céu? Sem medida, nem contas, sem peso, sem políticas, mentiras, nem intrigas, nem malvados, nem calúnias, sem acidentes lá longe. Sem corruptos, Santo Deus, tudo bom, sério e honesto, o céu é assim? E sempre eternamente? Sem fim? Quem aguenta com o céu na cabeça?
Queria mesmo que perguntassem. Antes da morte, claro.
II . A Eternidade antes de nós partirmos para lá
Ninguém se pode esconder atrás de nuvem, nem atrás do sol. Porque a nuvem e o sol cabem dentro do tempo que ainda não acabou de encher. Nada enche o tempo só a eternidade. Nem as promessas eternas que caem pelas escadas abaixo de todas as festas com fitas de cetim. Mesmo festas das quatro da madrugada. Na noite, que não passa, a Eternidade fica doente connosco e tem o frio e a fome que devíamos ter. Anjos e demónios sentam-se ao lado e esperam. Sabe-se lá o que esperam! São tão pacientes. Um grito quebra o vidro da janela que tem luz acesa. Mas ninguém ouve, nem clama. Já nem se sabe se é a Eternidade que adoeceu ou se foi a palavra que ficou vazia. Se a noite parou, a Eternidade ficou vazia, sem nada para explicar, imortalizar, ir além. Nem há um grito mais.
Na rua, só rotinas e não eternidades. Os homens do lixo não dormem. Despertam as gentes, desassossegam o sono, demónios e anjos espreitam e riem.
Andamos com a eternidade presa nos olhos, mas nunca a vemos. Sabemos que nos espreita nos espelhos e troça de nós. De tudo o que temos, o menos do menos, é a Eternidade. Irritante saber que está ao nosso lado. Irritante saber que nos acha grotescos e entontecidos, parvos.
De manhã esquece-se sempre a dor e a paragem. Na noite, qualquer dor é maior, injusta, inocente. Ao sol, pensamos em coisas quentes como a Justiça, a Liberdade e governo dos povos pelos mortos. Gostamos de estar ao sol porque se esquecem as palavras. Ao sol não há filosofia nenhuma. Não há Eternidade nem filosofia. Pode haver palavras e noites compridas, mas o sol incendeia as palavras. O sol detesta palavras, eternidades, madrugadas. Tudo queima. Na fogueira das palavras derretidas procura-se em vão a Eternidade. Ardeu, por isso, só por ser rotina, sono, sossego. A noite nem quer pensamento, só ser. Simples. Assim tudo o que é grandioso sobe sem custo, flutua. Não tem horas, nem usa relógio. Espera.
A noite põe cortinas nas casas fechadas. Quem repara? A Noite só fala a loucos e o sol sabe disso. Os dias das casas fechadas e das ruas paradas são dias como os outros. Bons de ouvir passos com ecos estranhos. Haverá alguém nas casas fechadas? O que acontece nem acontece porque as janelas já não são janelas. As janelas são os antepassados da televisão. Ninguém anda nas ruas, vão para casa. Raros para comer. Ou para atirar latas de comida para dentro das portas infelizes dos solitários e partir a aviar outros!Um carro passa, vem por engano, ou traz desgraça. A moça que espreitava morreu. O pregão calou-se. Nem uma criança espreita as valetas de berlindes e pião.
O dia boceja de preguiça morna. Um carro manso avança aos tombos na rua torta. Se ao menos alguém fosse atropelado, o dia acordava aos gritos. Assim, a noite continua escondia por trás de uma nuvem. Já não é a mesma. Quem repara?
Quem olha para o céu pede chuva ou sol, não quer ver sol nem chuva. Usar chapéu e guarda-chuva, ou sacudir pó do casaco. Enquanto houver casaco. Nada é absoluto. Nem sequer usar sapatos de verniz, gravata e lenço. Chapéu voou num golpe de vento e não voltou. E ainda há quem queria falar do absoluto sem o embrulhar em frases de cristal e de prata fina. Mas não pode. A seco, limite, absoluto ou eternidade traumatiza criança que sabe de mortes sangue e violência pelo mundo em que vive. O mundo que cala na hora de falar a sério.
Ouve-se dizer que a morte só se anuncia com punhos de renda. Dói também menos e por certo não assusta tanto. Só que continua a ser morte e traz na cauda o absoluto. Há quem pense que a Eternidade é o Absoluto. Afinal o que é?
Quem subir escadas frágeis de velhas casas, em cada andar, vai acordando os sonhos dos loucos em busca de resposta para quem gosta muito de palavras. Há reverentes senhores que coleccionam palavras de ouro e diamantes por temerem as ourivesarias. O colecionador de palavras não as ama gosta só do seu falso brilho que de repente se apaga. Gosta fervorosamente das palavras compridas, escuras, longas de léguas de decifrar. Todas essas que aborrecem as crianças. Elas é que sabem quais as palavras mais importantes para o resto da vida. O sonho de coleccionador é o inverso. Move-se bem nas florestas das palavras que se escondem para dias especiais. Usam-na tanta vez que as estragam. Melhor seria colecionar cacos velhos, caixas de fósforos, filatelias, numismáticas, coisas assim normais que se descrevem e contam e até crianças gostam.
Apanhar palavras à mão é vindima sem vinho. Esperar teimosamente que vai encontrar enigmas, como se as palavras não pudessem ser lavadas e transparentes. Quem tem palavras pesadas de chumbo, frases longas para interpretar, não tem anzol nem asa para apanhar jeito de apanhar.O Absoluto! Que peso e que dor por não entender. Explicar? Impossível! Há primeiro que sentir o Absoluto! Antes de entender há que o sentir. Quem não sente o Absoluto pode esperar toda a eternidade sem resposta.
“Já sentiste o Absoluto?” triste e pesaroso, o homem de bem nunca o sentirá. O homem de bem não é doido varrido pode perguntar pelo Absoluto que não responde. De colarinho e gravada, de meia de seda e salto agulha, de café expresso e faca de mato, o Absoluto diz que não é tendência e vai-se embora. Todos se vão embora e o Absoluto fica a rir já que cada vez há menos enigmas e ele pode ser um.
É bom ser enigma com certeza. E está mesmo ao alcance da mão. Enigmas são as gentes felizes e também as infelizes. A distinção complicada de descobrir enigmas é estar vivo e todos acham banal. Não é. Banal é morrer. Todos o fazem. Viver é só depois de sobreviver, de não morrer de sono, de todas as doenças infantis, das quedas da escola, do carro atropelado, do degrau descuidado. Depois interrogam-se. Se são felizes, se sentem o ser, se a sopa está quente demais, se chove, se o paradigma tem a ver com pijama e bom senso é não jogar o Totoloto velho de barbas. Depois? Ah é só começar as falar ao telemóvel mesmo que esteja desligado. Bom tom, companhia, moda, medo, solidão. Ou nada.
Todos os ridículos não têm medo do ridículo, ou não seriam ridículos. Por isso a pergunta e voa como pregão de varina em velho quadro de Lisboa. Como será que apregoam as varinas agora? E ainda há varinas? Há alguma florista sem ser no trono do centro? Para gente que quer velar mortos sem os olhar de frente. Há bolor no colorido dos mercados, está cheio mas está vazio de verdade. Os mercados não vendem perfumes, trajes de luxo, requintes de senhoras. Também não vendem senhoras, nem fatos de treino, nem brinquedos de crianças verdadeiras. E infelizmente, num mercado inteiro, ninguém sente o ser. O ser não é a eternidade e isso é muito triste para quem o busca. O ser também não é o abstracto pois também tem de ser outra qualquer coisa que o abstracto não pode ter. Procurar respostas é acordar um bando de perguntas que levantam voo.
Visitantes: