" Invocação dos Longes"

  • Derivas poéticas

  • ©  Lúcia Costa Melo Simas

 

 

 

 

Das sombras e das luzes

[ © Porto, Rua de Cedofeita, 2005. Variação sobre uma janela antiga com cortinas. ]

[ © Foto digital tratada. Levi Malho ]

 

 


        

 

 

SEGREDOS

 

 

De repente

Alguém acorda e diz

Era um sonho só...

                     Fica triste e sente frio

 

De repente

Alguém acorda e diz

Era um sonho só

E fica alegre

Cantando como um pássaro

 

 

O CAMINHO

 

O caminho que desce

É o mesmo que sobe

Mas é tão diferente

Subir e descer

Ou estar no topo

Ou no fundo do vale

Um ramo seco no inverno

Pode ser triste

Mas vendo bem

Rebenta em explosão na primavera

Afinal a invernia está nos olhos

No tempo das curtas memórias

Pra quem só vê aparências…

Mas montes e vales

Verões e invernos não são eternos

Como os olhos cheios de infinito

Que não vêem as cinzas

Mas descobrem azul, muito azul

Então o topo da montanha

Pode estar

No fundo do vale mais profundo

E o fim do mundo ou a maior viagem

Serem uma pequena passada

Para levar a secreta mensagem

O caminho que sobe

É o caminho que desce

Sábio é quem distingue os passos.

 

                      

PERGUNTAS

 

I

                    

 E DEPOIS?

 

                      Depois o céu veio caindo

                      Sobre as mãos, as rugas, os pés doendo

                      Sombras. Tantas, envolvendo

                      Nem o horizonte é claro

                      Sombras, tantas, envolvendo

                      E depois?

                      Os olhos subindo mais claros

                     Mais alto

                     O céu abandonando distâncias

                     Perto

                     Quase um só degrau ou dois…

                     E depois?...

                     

 

 

 

                     SABEDORIAS

 

Cai a tarde

Azul num dia radioso

Cai a tarde

Na janela…

Um cavalo, três vacas, o mar por perto

O sol filtrado na árvore

O regresso do velho de saco e bordão

Silêncio duma solidão imensa

Tão distante o homem

Tão distante tudo isto aqui ao lado

Azul

Um pássaro passa breve

Quanto mistério filtra o sol?

Quanto mistério me ensina a árvore?

 

 

 

 

ALGUÉM

 

Alheio-me de vozes

Neste silêncio morno de sol

O poema dilui-se docemente

No vento das vertentes dos sonhos

Todos os sonhos são nuvens sem dono

Todos os poemas são asa perdida

Em vão! Em vão!

As sombras clamam

Mas a piedade nunca germina na flor

Nem a inocência entende a agonia

Em vão! Em vão!

Se tenta o eco o fogo a teia

A sombra é eterna

Acalentando infinitamente

Um sonho um poema de além

Repetidamente o absoluto tudo perde

Entre a dor e a alegria foi poema

Esse sonho aceso

Sempre docemente alheio além

          Sempre suavemente adormecido

de alguém

                                                       

 

 

 REPETIÇÃO

 

Toda a gente busca

Uma chegada, um qualquer covil

Bairro de lata, barraca, apartamento…

Toda a gente com sono

Berrando, pesada de embrulhos

Sacos e inutilidades preciosas

Para no engarrafamento demorar

Na auto-estrada, na vereda ou na calçada

Procurando o antro, o ninho com sopa

Algum lugar oculto e seguro, como se fora

A última morada e esta a primeira hora

Para repetir os gestos de quem

Abre os braços à chegada primordial

Talvez para ouvir o telejornal

Talvez para beber um copo

Ouvir vozes familiares alegres, repetidas

Ou um encontro breve protocolar

Discussão e reboliço de crianças

Uma praga, um beijo, um corpo a adormecer

De cansaço...

Amanhã tudo se repetir  serenamente

Com todos os gritos e pragas

Com todas as verdades amargas engolidas

No saco das compras feitas e inúteis

Deste mundo de pequenos nadas

De pequenos gestos tão fúteis

E o sangue corre nas veias desta circulação

Entope nos engarrafamentos ou no último esgar

De um ataque súbito de coração

Desastre! Morte! Breve espantar

Depois…   logo  recomeça a circulação!

 

 

     INCERTEZA

     

     Vale tão pouco uma única rã

      Menos talvez que um simples prego

     Ou parafuso….

     Um pouco de água e pão

     A certeza da sopa

     Da espera, da casa e da mesa

     Segurança do eterno quotidiano…

     Tudo isto tem a ver com parafusos

     Muitos pregos e rãs

     Passa o tempo e tudo vale

     O mesmo

     Milhões de anos fizeram um prego

     E mais um parafuso

     Das rãs não sei a espera…

     Sem toda a incerteza de cada dia

     A espera não era

     A rara e invisível sabedoria…

 

 

                 A VOZ

                 

            Uma voz grita na alma

A beleza do dia transparente

Com um dossel de pássaros

E mil trinados soando suavemente

Não é preciso ter campo ou cidade

Para amar a beleza das coisas

Atenta está a alma à chamada da luz

Visíveis na alma as badaladas do tempo

Que grita tão alto a beleza do dia

Se chover é a terra a beleza do tempo

Se o sol raiar rirá o céu de azul

Tudo tem seu ritmo e seguramente

Só falta o coração para brilhar a beleza

Se a alma ouvir a voz

Da maravilha de viver

Gratuitamente

Em todo e qualquer lugar

Em todo ou qualquer tempo

Há sempre a cintilar a graça bem presente

 

 

                 O VENTO

 

Aquele vento

 

Que se agita nas palmeiras

 

Parece tão perto

 

E traz todo o Outono preso

 

Nas suas grandes mãos

 

Agita de sons todo o entardecer

 

Cheio de telhados

 

Vergados os ombros tão carregados

 

Espreitam os regressos nos vidros

 

No espanto interminável

 

De nada acontecer e tudo passar

À noite aquele vento de palmeiras

 

Soará em vão

 

Mas os telhados saberão todos os segredos

 

Para cantarem à aurora

 

Se o sol quiser brilhar

 

Doce e fresco como um balão

 

 

 

 

                 PARTIDAS

 

Quem canta em mim por acaso

Nunca sou eu

Desperta alguém e diz

Coisas que nem eu sabia

Se eu nem estou aqui

Meu canto nem é minha voz

Só o silêncio nas entrelinhas

Do canto

Soa como eu

Enorme só o espanto

A alegria guarda-se nas palavras

Na boca trazem-se só silêncios

Boas verdades são como o vinho velho

Só para o fim

Quando eu partir

Vou chorar

Por velhas canções de marear

Por pássaros mortos

Por não saber voar

Quando eu partir!...

Mas há quanto tempo atrás

Isso já aconteceu…

 

 

 

                  ENCONTRO

 

Esta madrugada existiu com certeza

E era só cor...

Nada digo dela

Porque os olhos me roubaram

A palavra

Falava-se de tudo

Menos

De tamanha beleza

E todo o esplendor

Do Inverno e da noite

Na partida assim bela

Do dia acontecer

Sem perder a noite

Que belo seria

Se nunca fosse nem noite nem dia

Só horizonte vermelho

E nada mais se via

Nem nada mais dizia...

 

        

    SEGREDO

 

 

 Esse pássaro secreto

 Que habita no mato

 Tem asas de sonho e riso

 E passa indiscreto

 A acenar distâncias e promessas

 De poder ir além

 

 

 

 

  JARDINS

 

Tenho todo o azul do meu jardim

-     que nem precisa ser meu –

               Para ser azul e ter pássaros

E até flores

Não o pinto porque está inteiro

Na tela dos olhos

E posso mudá-lo de flor ou cor

Ao meu sabor do presente

O azul do céu é excessivo

Sem nuvens nem parece céu

Borrão de tinta

Mas da mão de Deus

Os peixes vermelhos invento-os

E ponho-os a deslizar

Num tanque de marfim

Muitos, lentos, brilhando ao sol

E ao calor que ressalta das sombras

Do meu jardim de verdes e musgos

Tudo isto e tanto mais...

Coloco quanto quero no quadro

Do meu jardim por pintar

E a tela fica tão bela

Intacta nos olhos

Que jamais existirá o meu jardim

Contudo ele lá está!

Tem banco, musgo, flor

E toda a cor

O meu jardim!

Não terão todos um assim?...

 

 

COLHEITAS

 

 

Pus hoje o sol a brilhar

Nos montes

E a rir na beira das fontes

E trouxe tudo para dentro

Bem quente e doce

Como se o calor do sol

Assim fosse

Fácil de guardar

Como o trigo e o vinho

Para o Inverno

Ou para as noites geladas

Como se o sol pudesse andar comigo

De noite

Como andam as estrelas

Tão frias

De dia velando comigo

A noite dos dias...

 

 

               SETEMBRO

 

           Setembro nunca chega de surpresa

Traz um longo cortejo de ritos

E toda a incerteza

De um virar de página…

           Setembro pesa toneladas,

Ou apenas uma ligeira brisa do Sul

           Setembro tem as portas pintadas

De ouro e de azul….

           Um pouco por todo o lado

Gente em debandada

De partida ou de chegada

           Nunca a luz é tão doce

Como quando se colhem os frutos

E não se sabe escolher

Se a aurora se o entardecer…

 

 

A MEDIDA DAS COISAS

 

Perde-se tempo com coisas pequenas

Mas nunca são pequenas

As coisas que amamos

Nós é que ficamos pequenos

Como as crianças que brincam

Muito a sério as suas vidas

Curtas e sábias de quem conheceu

E ainda se lembra do céu

Tão perto ainda dos olhos

De onde tudo veio e onde tudo é

O que era mesmo grande

Não podia ser mais pequeno

 

II

 

Quando um grão de areia está ao sol

Brilha mais forte do que um diamante

Quando a sombra chegar e cair...

O grão de areia oculta-se humilde

Sol, grão de areia e sombra

São um só e muitas coisas desdobradas

Para os conhecer melhor é preciso

Vê-los separados e depois juntos

Então descobre-se o milagre

Dos diamantes impossíveis de vender

Os mais puros e belos de conhecer

Nem se podem comprar, nem dar

Melhor é aprender o valor da visão

Esse poder de tornar nosso tudo o que vemos

Sem cobiça, a beleza é maior, mais livre

Não está presa a ninguém, é de todos.

Contentemo-nos em descobrir o que é belo

Então o nosso olhar será cofre secreto

Da beleza, seja ela grande ou pequena

Tem o mesmo peso e grandeza

Nos olhos guardada e selada.

 

 

ENTARDECER

 

 

São tão mansos os fumos

 

Das casas ao entardecer

 

Gestos indecisos de acenar

 

Promessas vagas de pão

 

Um rito cumprido, alvo

 

A arder, fogo da noite que chega

 

Ladram os cães! Ladram os cães!

 

Perto…

 

O último riso da criança

 

Antes de adormecer

 

 

 

SEGREDOS

 

I

 

 

Imitar o homem corajoso

Quando é fraca a natureza

É como a erva dos campos

Querer ser o lírio esplendoroso

Frágil é o dia do triunfo

Apaga-se como vela ao vento

Quem se lembra dos dias passados

Quando sofre a tormenta?

Não há dias sem os seus segredos

Mas divulgá-los antes da aurora

É querer a luz quando brilha o sol.

 

 

II

Não há mendigos sem estradas

Nem sedentos sem desertos

Não há montanhas sem vales

Quem está no alto sabe quanto custa

Caminhar e ter sede

Nada é tão alto como cá em baixo

Nada é tão baixo como lá no alto.

 

III

 

É fácil vencer as tempestades

As estrelas nunca sofrem

Nem o fundo do mar se agita

As folhas caem facilmente

Ao menor sopro

Quando chega o seu tempo

E rodopiam no vento

Tão agitadamente

Como se fora uma tempestade

E é apenas outono.

 

ENCONTRO 

 

 

A Noite e o Dia têm dois momentos

Em que se encontram a sós

Então nem é noite nem é dia

É só a presença fugidia

De dois amigos, assim como nós

Conversando sobre a Eternidade.

  

 

                    VEM CÁ BAIXO!

 

 

Gosto de esperanças como de poemas

Como gosto desta longa freguesia[i]

Mesmo que tudo seja mentiroso e falso

Gosto de esperanças!

Mesmo em falas destemperadas e sem tino

Mesmo vagas e feitas ruas sem destino

Por isso desce à cidade com teu ruído e alegria

Ah! Vem cá baixo, minha freguesia!

Com a roupa estendida ao sol

Com as tuas vozes roucas, sacudidas,

Vem cá baixo de corrida!

Traz essa tua esperança

Pragueja alto, sacode de suor

Tantos olhos cínicos, matreiros

Empurra! Dá teus gritos! Solta os cães!...

Dá gargalhadas estridentes, grosseiras

Grandes bebedeiras e velhas brigas

Solta os cães!

Mas não sejas elegante e fria, isso não

Minha freguesia de gene pobre e rude de gente má

Não te tornes boa e simples

Descalça nunca vás à fonte

Assim não dá!

Olha-me como quiseres, mas, ao menos

Não te esqueças de olhar, mirar

Com os olhos que Deus te deu

Não faças mais pequeno o mundo teu

Que aldeia maior é só Paris

Usa o verde, senhora do teu nariz

Usa o verde e desata aquelas tuas gargalhadas

Sacode as cinzas e bolores da cidade

É tudo tão grande, tão imenso!

Tudo por fazer e andar …

Só na cidade se torna gelado, amortalhado

Como hirta e estática estátua de jardim

Manequim frio de cidade triste

Minha freguesia de gente desconfiada e rude

Inunda só de esperança o ar desta cidade

Mesmo que seja só poema e soe falso

É da tua presença que preciso!

 

 


 

  [i] A palavra Aldeia não é nunca usada nos Açores. Apenas em obras escritas ou por via erudita chegou cá. A freguesia é o único termo para designar os aglomerados rurais, para além das vilas e lugares.