"   O Discurso do polvo "

  •  A Escola e as "sombras"

 

    ©  Lúcia Costa Melo Simas ( 2013 )

 

 

"Apagada e vil Tristeza"

[ Estação ferroviária de "Campanhã" em Domingo de chuva. Campanhã. Porto. 2009 ]

 © Levi Malho.

 

 


 

O grande Padre Vieira não gostava de polvos. Pelo menos chamava-os os maiores traidores do mar. Na vida social o que mais se parece com o polvo é a Instituição Escolar. A camuflagem torna-a tão alegremente inofensiva, com o capelo parece um monge, assim pode parecer o professor que ao ensinar parece querer pregar o bem, com os seus raios estendidos assemelha-se a uma estrela da luz do saber e, sem osso nem espinha, adapta-se por todo o lado para levar o veneno que larga se for descoberto. Ainda mais falava Vieira, pois qualquer incauta não passa sem ser apanhado pelo animal que espreita todos e se serve da multiplicidade de suas formas e aparências para poder usar a malícia e, onde noutros há a verdade, no polvo há só traição. Assim a escola seduz para capturar os meninos e aprisiona-los até serem devorados, pois da escola não saem meninos. Saem adultos, jovens perturbados, “lixo” social porque não aprenderam, não se adaptaram e “não tem futuro”.
    O problema é que ninguém “tem” futuro. Acontece, com a chuva ou o sol no dia-a-dia que nos engole.

 

 

 

Figura  1 - Sempre presente, no outono, discursa melhor

 

 

Solenemente, com a cantoria da política e da publicidade bem alta, “compra livros, mochilas, cadernos”  o polvo estende os braços com fortes ventosas e começa a dança social do bem-estar infantil, do infantário até à reforma. A música da escola é sereia de futuro com igualdade e emprego, depois de ter um diploma na mão. Basta ter as qualificações referidas para entrar no mercado e encontrar outra cadeira, já não será a cadeira da escola, mas cadeira será.
     Todo o país marca horas de acordo com as criancinhas na nova aventura do inicio do ano. “A escola, uma máquina devorante” escreveu Pierre Joncour, o
pedagogo,  muito desiludido do efeito de formatação das crianças que saem de uma casa para ir para outra e ficam sentadas, anos a fio, no que se diz a várias vozes, ensino, aprendizagem, ensino acompanhado, atividades extra, apoio ao ensino. Quando saem já se acabou há muito a adolescência e a mocidade fica pelo caminho.

    “Sapere Aude” não obedeças e pensa pela tua cabeça. Deu nisto: uma meta fixa, igual para todas as cabeças iluminadas. Lá nas suas reflexões, Kant nunca imaginou que a sua liberdade se tornasse nisto. Metódico como era, a liberdade seria obediência à lei e a lei seguindo a razão torna-a numa estrutura vazia Mas a Escola tem programa e metas. Mede-se a inteligência quase grama a grama, para acabar numa única avaliação rotulada depois que se passem os anos em que se deve estar a formatar.
    Como madrugadas de padarias de pão fresco, assim a Escola vomita, todos os anos, aqueles iluminados que carimbados e atordoados, meios convencidos que sabem “tudo”  encontram as portas douradas do sistema que os examina cada vez mais carrancudo e desconfiado. Será que algum é um parafuso mal atarraxado? Os dentes da roda do sistema são fortes mas pode aparecer algum que encrave de uma vez a grande Máquina...
    Cada etapa tem escadas para subir. Os professores, mestres e educadores estão lá para decidir se a cabeça está já cheia do que deve ser considerado relevante. Relevante é uma palavra feia pois coloca metas fora dos meninos mas boas para inserir no sistema. A grande médica e pedagoga, Maria Montessori (1870.1952) foi a primeira mulher italiana a exercer medicina. Por um acaso, pessoas de um bairro pobre pediram-lhe que tentasse acabar com o barulho das crianças durante o dia, nos prédios desocupados e nas ruas, onde tanto incomodavam o sossego dos moradores. Pais e mães estavam fora o dia todo a trabalhar e nem pensar em levarem os filhos consigo.

    Montessori, além de descobrir etapas sensíveis de aprendizagem, encontrou nas crianças o gosto pela ordem e pelo método, colocando juntos objetos com as mesmas cores, tamanhos e formas e o prazer em ver tudo arrumado. A ordem e a serenidade de vozes acabaram com as brigas e gritaria  nas ruas. As criancinhas domesticadas e sossegadas passavam as horas sem incomodar nada nem ninguém. Daqui surgiram as casa dei
Bambini. (1907) O mais curioso e que não levantou problemas é que foi com base nos trabalhos de Ittard e de Séguin acerca de anormais que fundou as escolar normais. O famoso trabalho como um menino de oito anos conhecido pelo “Selvagem de Aveyron”  fascinou-a. Mas este menino que teve obscuras origens, foi considerado idiota por muitos e por outros uma criança que podia ser normal mas esteve privada da sociedade.

    O meritório trabalho do médico  Ittard não resultou pois o menino Vitor morreu bem cedo guardando muitos mistérios acerca da sua normalidade e aprendizagem. De qualquer modo foi por causa das crianças anormais que Maria Montessori tanto se interessou pelas escolas normais que se espalharam pelo mundo inteiro.
Com as suas ideias, que na altura tanto êxito alcançou, Montessori não se deu conta de que preparava a criança para a sociedade num conformismo que deforma a pessoa para ser empacotada e útil no sistema.
     Diz-se que o século XX foi o da criança. Já não era um adulto em miniatura, mas realmente não se ficou a saber muito mais do que a impossibilidade de a comparar com adultos. Maria Montessori sacralizou a infância e esqueceu-se que os parâmetros de observação são sempre ideológicos e em função do que já pensam adultos. Uma das suas frases mostra a subtileza da ação
:

 A tarefa do professor é preparar motivações para atividades culturais, num ambiente previamente organizado.

 Se nos lembrarmos de que este foi o século em que a sociedade mais domesticou e doutrinou crianças e jovens há outra visão. Os estudos da criança preparam-na para o que a sociedade precisa e não no respeito e interesses de cada um, por mais que os manuais insistam nisto.
    É muito curioso e dá que pensar que sejam os estudiosos de criminosos, de anormais, os defensores do eugenismo os grandes pioneiros de estudos e programas para a infância. Em Portugal tivemos o criminologista Ferreira Deusdado que também propunha a sua pedagogia, especialmente para meninas  e jovens senhoras às quais negava a capacidade de um ensino comum para os dois sexos, não apenas pela diferença mas mais porque as capacidades femininas são inferiores ao homem e, quanto mais a sociedade progredisse, mais se notaria a inferioridade da mulher.  Nos Estados Unidos, a escala de Binet Simon era para anormais e passou para os normais com funcionários destacados para verificar a sanidade mental de todos os que queriam entrar na América. O Dr. Howard Knox, médico e cirurgião e o Dr. Henri Goddard que fora diretor de uma instituição para jovens débeis mentais tal como Montessori iniciavam as suas atividades seguindo uma estranha premissa que recebeu caloroso aplausos.
     Ao contrário de Montessori, o grande visionário, filósofo e sacerdote católico Ivan Illich (1926- 2002), inverteu a questão. Afinal o que está a acontecer é muito simplesmente isto:  Quanto mais se gasta nas Escolas mais se destrói a educação. Infelizmente, a morte não permitiu que Illich pudesse ver os maravilhosos instrumentos e as tecnologias que já existem para todos aprenderem em todos os lugares e idades. Illich percecionava uma aprendizagem descolarizada e uma teia de meios de cada um poder desenvolver as suas aptidões fora da desgastada instituição.
    Repare-se que, em menos de 200 anos, os governos se apoderaram das instituições do saber, como polvos devoradores, que só beneficiam quem entra para o sistema. Habilmente, o Poder apoderou-se do saber.  Legislar, programar, burocratizar a Escola tornou-se a força dos governos e para os governos. Confunde-se educar com ensinar, ensinar com informar e a informação, é óbvio que chega, atrasada e distorcida ao discurso da Escola. 
    A racionalidade da escola é um meio da indústria cultural escolher direcionando o saber para um retorno em lucros em função dos interesses económicos que a indústria cultural precisa. Repare-se nos milhões que se gastam aparentemente para os alunos mas que só serve para melhor organizar esse polvo insaciável. A mão-de-obra é o capital investido e ninguém está atento aos critérios do que devora o polvo mas tem de dar lucros, capital e continuar a render, mesmo que o Poder perca a noção do real e o polvo esteja com dificuldade em encontrar consumidores.
    Para consumir mais é preciso dar modas, exemplos, publicidade em massa. Assim mais professores, metodólogos, especialistas, psicólogos, terapeutas, auxiliares, uma multidão de técnicos, administradores, pedagogos, inspetores, assessores de apoio, instrumentos, formações, ministérios, secretarias, médicos, tudo para que a Escola aparente a sua eficácia. E os alunos? Rebanhos com escassas horas de informações, avisos e adestramento sem falar nos tempos de ida e vinda e os tpc e outros meios artificiais-

 

 

Figura 2 - Seguro pelos braços do polvo o aluno vai para o rebanho

 

 

Repare-se naquele grito que soltam as crianças quando saem para o pátio! Já não soltam tais manifestações na adolescência. É o rebanho cativo de um polvo louco. No entanto, define-se o saber pelos anos passados na Escola
    Illich, na linha oposta a Montessori, afirma: “O trabalho, o tempo, livre, a política, a vida quotidiana e até a familiar dependem das escolas, no que concerne aos hábitos e conhecimentos que pressupõem em vez desses meios se converter na forma de meios educacionais”.
    A sociedade teve uma utopia e o seu tempo acabou.  De nada serve colocar mais e mais remendos numa velha e esfarrapada manta do que era a aprendizagem antes da revolução industrial. Há um mar de conhecimento  que o polvo desconhece e há os velhos programas de sempre, coloridos e adaptados, mas sempre na mira do capital investido e
    do lucro. Há anos que se ensina a não gostar dos trabalhos do campo, da terra, da chuva ou de jardins e a não gostar de trabalhar com animais. Pensar como um pequeno professor, eis o sonho de um dito “bom aluno”. Mas o mítico 20 é tabu e mito, até para o docente. Uniformizar é reproduzir as mentes não é aprender. Isso não de pode dizer que seja desenvolver as mentes com as capacidades que cada um possui.  É só pensar todos o mesmo e da mesma forma. Só isso merece palmas e aplausos dentro da caverna do sistema. O supremo céu deverá ser na terra quando, com um cartão mágico se pode percorrer um Centro Comercial inteiro e depois todo o brilho dos objetos se reflete num rosto reluzente de poder ter “tudo”. Ter tudo e não se nada…
    A apanha das uvas, da laranja, do milho e tanta maravilha da natureza são desprezadas porque não há quem queira um trabalho assim, dizem ser pesado e duro. A dignidade de uma pessoa mede-se pelo grau de ensino que supostamente atingiu e pelo Poder que o Saber lhe concedeu.

 

Figura 3 - Há sempre uma ovelha que é diferente a estragar o rebanho!!!

 

   Mas não parece que é algo estranho, que todos os meninos, jovens e menos jovens aprendam todos o mesmo? Não há nada errado aqui? Será que já nem se dá conta do erro da uniformidade mental tal é a limpeza metódica que se fez a um pensamento que o coletivo não aprove? Tantos anos já se passaram e o grande Padre António Vieira seja ainda uma voz a pregar
    Se os carneiros e cabras são diferentes, gatos e cães também, como é que há um só programa e uma só medida para toda a gente? Estudar, desde os 5 ou 6 anos até aos 28 ou 30, para ter um estágio e depois talvez  um emprego que não é igual a ter trabalho é tão horrivelmente triste que nem espezinhar campos de flores. Dar vacinas e todos os meios para salvar as vidas de meninos miseráveis que depois morrerão de fome e sede aos 20 anos é uma das abomináveis lógicas que se segue sem pensar. Aprender é tarefa da vida inteira, a escola é a Vida que nos chama como a triste ninfa Eco chamava Narciso, mas este acaba sempre por morrer petrificado no seu interior que fica vazio.
    A teia da aprendizagem realiza-se bem mais na vida do que na Escola.  O insucesso da Escola é bem real. Entenda-se por Escola, a Instituição ao serviço da indústria cultural, com milhares de indivíduos treinados por treinadores para ensinar o que nunca fizeram.
    É o feudalismo na sua forma atual. O trabalho da terra, o trabalho produtivo através do qual todos os outros se tornam viáveis nos campos, nos mares, nos rios ou nas oficinas é dos servos e, o preconceito é tão forte para mulheres como para homens. É isso, o grande desprezo dessa nobreza dos iluminados por tudo o que se manifeste um grande risco para o seu poder. Quanto mais se enaltece a nobreza de um saber que esteja com a chancela de um Ministério de Educação, mais se desvaloriza qualquer conhecimento, valor ou arte que não esteja oficialmente dentro do sistema. O poder há muito que se apoderou das rédeas do saber. O velho e teimoso Sócrates está na escola, no que de pior teve, a sua ironia. Platão assenta arraiais no terror da sua cidade onde se expulsaria a poesia e a mulher ficaria sempre era uma escrava. A poesia de facto é quase um reino para alguns marginais e a mulher com esta forma subtil de múltiplas morais e papéis não tem ampliado tanto quanto se esperava da dita liberdade e igualdade de género. Pelo contrário, o polvo seduz a mulher pela malícia de lhe prometer beleza eterna à custa de se caricaturar a si mesma. A mulher de mãe passou a doméstica, cuidadora, professora ou enfermeira na sombra masculina. Depois mostra o lado mais forte que o sistema lhe oferece, o dionisíaco que faz da noite o grande espetáculo, do velho bacanal em doce estilo novo.

 

 

 

 

Figura 4 - Apesar de toda a subtil sedução, esta já é uma antiguidade ingénua

 

 

Como cantar o eterno feminino, a suavidade da mulher a sua serenidade, inteligência e beleza, se a boneca Barbie, e a última cantora ou manequim, com todos os seus esgares e pornografia sem freio, servem de exemplos e modelo a pobres ovelhinhas sem pastor?
    O discurso do polvo em cada ano começa por cantar bem baixinho mas lá para o fim, na saída do crivo e do funil não lhe escapará nenhum incauto.