" Memórias de Alice - VII "
Pensar para o feminino
© Lúcia Costa Melo Simas ( 2013 )
Fim do Dilúvio e fora da "Arca de Noé"
[ Figuras femininas em "espelho ´'água" (Pormenor). Zona "ribeirinha" recuperada. Lisboa. 2012. ]
© Levi Malho
Por entre os pensadores que, de um modo mais ou menos consensual, viveram na Belle Époque, Georg Simmel (1858-1918) foi um intelectual prussiano, melhor dizendo, berlinense, por ter essa cidade por sua respiração e serenidade de dias compridos. A sua prosa multiforme e entre águas é de extrema dificuldade em traduzir irrepreensivelmente. Isso não pode deixar de acontecer num autor tão arreigadamente alemão, que até foi polémico entre os seus, e assim continua. Símbolo de uma filosofia idealista, já de transição, e de uma incipiente sociologia, os seus textos traduzem uma mente que se rebelava contra as mudanças do seu velho mundo. Escreveu muitos e diversos ensaios, semelhantes a “fragmentos existenciais”, que recordam Kierkegaard, e os quais com o tempo se tornaram apoios básicos para a nova ciência, a microssociologia.
Figura 1- Georg Simmel ( 1858-1918 )
Surgindo da filosofia, hoje é um autor de fronteira entre uma sociologia que se anunciava e um idealismo alemão que o sustentou.
A forte ambiguidade de classificação dos seus estudos tem um mérito muito especial: para além de uma visão da condição feminina bem polémica, servirá de ponte entre as correntes do idealismo alemão e os novos temas que o urbanismo crescente e a impessoalidade das relações institucionais criavam. Isso obrigava Simmel a enfrentar nostalgicamente, ainda com os olhos presos nos tempos de outrora que são sempre felizes, um novo conceito de cidade. A transição e a rebeldia, que estão no fundo do pensamento e no âmago dos seus textos, dá uma intemporalidade ao que escreve e explica bem que, se bem que sendo contestado e muito debatido, o seu pensamento mantém grande vitalidade.
Iniciava-se também uma época de novas aprendizagens femininas. A educação que antes era para as classes nobres passava a ser uma instrução alargada à maioria, de modo que ler e escrever eram já uma possibilidade feminina. Porém, não se pode entender isso ingenuamente pois as mulheres não tomaram a palavra. O homem fala para elas e por elas. Na realidade passam a dominar a técnica da escrita, mas não têm escrita própria e, muito menos livre.
Este autor não terá ideias muito originais na sua linha de pensamento. Mas é precisamente por estar na fronteira de duas formas de pensar a condição feminina que mais importa rever. Os defensores de Simmel são em número maior do que os que o contradizem. O fenómeno explica-se por ser um homem a falar para homens acerca da mulher. Arrasta uma série de ambivalências, de utopias e um desencanto enorme face à alteração do contexto da entrada em número crescente e avassalador da mulher nas atividades anteriormente destinadas ao homem.
Figura 2 - Pintura de um belo palácio de Berlim no século XIX
A cidade crescia e alterava-se bem como o viver dos seus habitantes.
A vida em Berlim decorria aparentemente fácil e tranquila, para alguém que, como este pensador, atravessou a vida, longe das lutas pela sobrevivência. Berlim não passava de uma pequena urbe e transformava-se a olhos vistos com grandes alterações, passando de ser uma das mais pequenas capitais da Europa para uma cidade de grande desenvolvimento e atividade. Mas os Simmel eram de origem judaica e, mesmo depois de convertidos ao protestantismo, parece que isso não ficou esquecido. Havia um surdo mal-estar que foi crescendo até ao terror dos nazis, mas as teses eugénicas tiveram forte impacto no ódio surdo e crescente aos judeus.
Foram muitos os casos em que, na futura Alemanha, as famílias judias procuravam aparentar um afastamento das suas raízes. George foi o mais novo de sete irmãos e não se pode considerar uma criança feliz com todas as doenças e mortes que o rodearam. Cedo ficou órfão, mas para grande sorte sua, foi protegido por um generoso tutor.
A sua vida manteve-se sempre um tanto à margem, inadaptado ou pouco acolhido entre os académicos, possivelmente com dificuldades em criar amigos, apesar da admiração dos discípulos. A sua vida de docência sofreu sempre revezes pois nunca foi aceite pelos colegas nem obteve cargos oficiais. Recusou-se a lecionar História e foi ensinar Kant, Schopenhauer e Nietzsche, entre outros. O gosto pela estética e mais ainda pela pintura em particular, que o seu tutor já cultivava, acabaram por o influenciar na sua filosofia. No final da vida, adotara uma estética panteística, influenciada pelos movimentos da pintura da época.
Ao ler os seus textos, temos a impressão de que observava a vida de uma varanda, longe das massas, debruçado sobre o formigueiro agitado das vidas que circulavam por essas ruas e avenidas, sem nunca parar, noite e dia, numa agitação que o espantava.
Figura 3 - Varanda- (Quadro de Manet. )
Local privilegiado para guardar a distância e marcar a distinção entre o público e o espetáculo das massas
A separação entre o visível e o invisível faz parte da distinção burguesa
Voltado para o passado e surpreendido com as mudanças do presente os seus ensaios refletem uma nostalgia de tempos que findavam. Em 1909, interroga-se acerca do sentido do espaço para a sociologia e foca na vida urbana a sua atenção. O problema da função do dinheiro e a sua relação com os dois sexos leva-o a reflecções pessimistas[1]
Examina o dualismo entre um passado em que os vínculos pessoais normalizavam a existência e a vida nas metrópoles em que vigorava a filosofia do dinheiro. Para Simmel a cidade traz graves consequências para a personalidade. A rapidez dos novos ritmos, as constantes mudanças traria “intensificação e agitação nevrótica, resultantes da rápida e ininterrupta modificação dos estímulos externos e internos”. [2]
Tal como vê entre a cidade e a vida rural, encontra uma dualidade na sua visão do género, fruto de um social em transformação. Por isso, curiosamente, a sua análise da mulher enferma de uma incapacidade de ver com realismo a sua verdadeira condição. Parece estar alheio à entrada crescente de milhares de mulheres nas mais rudes e árduas tarefas nas fábricas, indústrias e trabalhos pesados da mais variada espécie.
A labuta na cidade exige grandes mudanças e um trabalho redobrado no feminino.
Figura 5 - Quadro de Júlio Pomar
A faina das mulheres tinham sempre as tarefas mais mal pagas e desprezadas.
Além do trabalho doméstico, recebiam salários de miséria por tarefas sem fim.
Às atividades domésticas, que não deixam de lhe pertencer, junta-se o trabalho nas fábricas, na indústria, no comércio, sem que a emancipação e a independência feminina tivessem grande força. Com a nova industrialização, a família deixa de ser centro de produção e o trabalho doméstico passa a ser considerado reprodutivo, enquanto só se diz produtivo todo o trabalho fora de casa e assalariado que, por norma, era o adequado ao homem, o fornecedor de bens para a família.
Com grande rapidez dá-se a desaparição dos vínculos pessoais e o valor da palavra dada. Agora há o anonimato, a impessoalidade e a circulação do dinheiro. Os novos hábitos trazem para a burguesia e para os novos-ricos maior conforto e mais consumo em que, inevitavelmente, mulher aparece.
Figura 6 - O braço forte da mulher domina dirige novos trabalhos, antes impensáveis para ela
Cruza-se uma desigualdade fortíssima no tratamento do género. Por um lado, as lavadeiras, costureiras, camponesas ou operárias labutam anonimamente, enquanto o fausto, a ostentação e a vida de lazer, servem para manifestar a capacidade masculina de sustentar luxuosamente a sua esposa e a família com todo o bem-estar que demonstram as grandes fortunas. Os gastos exorbitantes das mulheres, jóias, vestuário e demais adornos são a prova do poder do dinheiro e, a moda, um meio interminável de competição e distinção entre círculos que se reconhecem entre si.
A cultura e a omnipotência do dinheiro, que circula por todo o lado, é o meio de abordagem e de apoio para entender a condição feminina que se altera radicalmente no novo urbanismo. Os círculos em que se movimentam as pessoas afastam e aproximam de um modo impessoal as mais diferentes personalidades. Os estatutos sociais e as suas características demonstram uma nova diversidade de relações, mas impessoais pois desaparecem os laços particulares, e os valores que antes dominavam a sociedade.
Figura 7 - O luxo e a extravagância combinam para mostrar o poder simbólico.
O metal e a sua mobilidade dão novo aspeto à sociedade e a cada indivíduo O dinheiro é o que permanece e todo o resto circula, pois só ele é livre, passa mas fica sempre presente. Trata-se de uma força estranha à condição humana que une e afasta as pessoas. O bem-estar e até a felicidade materializam-se na posse do metal.
“Do mesmo modo que a maioria dos homens modernos precisa ter diante dos olhos, na maior parte da vida, o ganho de dinheiro como motivação mais próxima, forma-se a ideia de que toda a felicidade e toda satisfação definitiva na vida são ligadas, intrinsecamente, à posse de uma certa forma de dinheiro” . (Simmel, 1998, p. 33) [3].
Figura 8 - Invisível e presente, o dinheiro circula nos objetos de requinte.
A linguagem universal da moeda é entendida por todos. Por via do comércio –-- que com a modernidade é comércio global –-- o dinheiro aproxima pessoas. Mas também afasta, porque a relação social estabelecida por meio do dinheiro é meramente instrumental. A economia é o laço vital entre todos e os restantes valores sofrem uma queda que arrasta a dignidade do homem e da mulher. Pode tornar-se numa utopia de libertação, mas na realidade é um novo meio de escravatura global que se avizinha para milhões e milhões de seres humanos.
NOTAS:
[1] Simmel, Georg, O papel do dinheiro nas relações entre os sexos. Fragmentos de uma Filosofia do dinheiro, 2006. Textos: Filosofia do amor. São Paulo,
Martins Fontes, Brasil.
[2] Waizbort, Leopoldo. As Aventuras de Georg Simmel. 2006,São Paulo, ED. 34.
[3] Simmel, Georg. “O dinheiro na cultura moderna”.1998, In, Jessé Souza e B. Oëlze, orgs. Simmel e a Modernidade. Brasília, Editora UNB.
© Lúcia Costa Melo Simas (Texto) - Regressar a " Os "Trabalhos e Dias" "
© Colaboração na concepção da página - Levi Malho.
Actualizado em 05.Agosto. 2013
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