" Paradoxos e Verdades "

  • Ainda sobre a "condição feminina".

 

    ©  Lúcia Costa Melo Simas ( 2013 )

 

 

 

Proximidade da Dor

 [ Conjunto de cactos sobre luz de Outono. (Pormenor ). Porto. 2009. ]

© Levi Malho

 


     

      Muito se pode estranhar, em alguns pensadores dos finais do século XIX, o afastamento completo, entre o trabalho que levavam tão a sério, e o esquecimento de que, mesmo ao seu lado, tinham uma companheira fiel e dedicada que consideravam bem inferior, ao ponto de as colocarem perfeitamente à parte dos seus problemas mais cruciais.

    O fenómeno é evidente em pensadores de toda a Europa mas no nosso país os casos são flagrantes. Se Schopenhauer é considerado o mais misógino dos filósofos, para quem está na índole das mulheres a obediência, este título tem de ser partilhado com muitos outros escritores.   Nas antípodas das críticas às mulheres temos o quase sempre esquecido, mas importante Feuerbach que insere na filosofia a temática do diálogo entre o homem e a mulher.

    Há autores que nos surpreendem pela rudeza e falta de bom senso, muito embora tivessem estado em lugares cimeiros na política e tenham ainda hoje o nome na memória do povo, mas que revelam uma falta de visão do feminino que muito nos faz refletir sobre os homens que mais divulgavam as suas ideias, aceites, sem protestos.

      Temos o caso espantoso do conhecido escritor, que ainda hoje é citado, se bem que, provavelmente, seja pouco lido e menos consultado com profundidade o político e escritor Oliveira Martins (1845-1894) tido como pertencente à geração de 70, se bem que não tenha estudado em Coimbra e fosse autodidata. Mais tarde, António Sérgio, António Sardinha e Eduardo Lourenço foram seus admiradores.

     As apreciações que Oliveira Martins tece, acerca das mulheres, recuam às instituições primitivas. Na sua época, sacraliza apenas o papel da esposa, na sua visão paradoxal da mulher.   No início dos tempos, assim escreve, não passou de escrava em todas as sociedades mas, na sua atualidade, só a reconhece como símbolo do “sacrário da vida”.   É uma geradora e nada mais.

    Este veredito é um dos erros mais aterradores para a condição humana na sua unidade. O mundo masculino é um absurdo histórico que herdamos da Grécia. Revisitar a Grécia em cada época produz uma revitalização de novas formas de interpretar o mundo. Eros e Afrodite, a deusa Dikê da Justiça, a orgulhosa Hera ou a deusa Atena mostram uma face da sabedoria grega. Apesar de tudo, Atena não era filha de mulher, pois seria só filha de Zeus que a gerara e dera à luz de uma sua coxa. Apesar de ser feminina na sua essência, colocava-se a deusa produto apenas do masculino.

    O mundo teórico de Oliveira Martins surge sem qualquer relação com a realidade que vivia. De facto, a sua orfandade e papel paternal sobre a família pode levar a que esqueça toda a ação e presença feminina no social. Já no seu tempo, as mulheres exerciam, em grande número, profissões no professorado e os colégios enchiam-se de meninas cuja cultura já tinha o seu peso. Se o exemplo de Alice Moderno, uma jornalista e escritora francesa que residiu em São Miguel, na sua época, foi vista como excêntrica, outras mulheres já marcavam a sua presença e temos de recordar que tivemos a rainha D. Maria II (1819-1853), denominada a educadora que procurou dar a melhor das educações aos seus filhos.

   Acrescenta ainda, estas anómalas palavras: “[A mulher] é um ser imundo, fraco e doente organicamente pelas regras periódicas e pela prenhez.” (O. Martins, p.48-50). Estas considerações, surgem em outras obras suas e, paradoxalmente pertencem a uma personalidade e a uma época em que, o sexo feminino, mostrava já claramente as suas capacidades intelectuais e abria caminho em áreas da ciência e da cultura. Oliveira Martins chega a escrever “o seu mister parece inferior. O homem tem-na como instrumento de prazer ou de criação (…) Hoje, quando reclama a abolição dos laços matrimoniais, a liberdade e direitos varonis, no seio de uma concorrência individualista em que só a pura força governa (…) que espera a mulher? (…) Farrapo depois do uso, mísera depois da beleza, abjeta depois de reinar pela paixão sensual.

     O casamento é, para este historiador, a única forma de proteção feminina, de outro modo está condenada ao vício e à miséria. Curiosamente, porém, o matrimónio vem beneficiar muito mais o homem porque o seu fim é dar-lhe segurança e assegurar a sua liberdade. Se condena o divórcio é porque este muito prejudicaria o homem. Também ainda afirma que algum modo quando a sedução [pela mulher] entra no mundo, só serve para agradar ao homem e levar a mulher à mais desesperada das situações. A sua indignidade é de uma espantosa cegueira face ao mundo que o rodeava e onde a mulher já se movia no social. Deixa a maior perplexidade quanto à relação afetiva e de conjugalidade entre a sua esposa D. Vitória e ele, pois, apesar de tudo, este homem era casado. A constante atenção que dedicava ao marido afastava D Vitória da consciência de si? Nunca se terá atrevido a ler numa obra do marido?

 

     No seu Prefácio “As Instituições Primitivas”, 1º vol., escreve que a mulher deve sair da tutela do pai apenas para passar para a do marido. Além de ser débil e fraca, psiquicamente, para ele, a mulher não tem estabilidade, é um ser inferior.

     Pelo que descreve o anterianista, Tavares Carreiro, D. Vitória era a sua esposa e dedicadíssima. Se, por acaso, Olivéria Martins, olhasse à sua roda, com a atenção com que olhava para os seus autores preferidos, veria as tais mulheres “fracas e doentes” a cavar a terra, a labutar denodadamente em toda a ordem de trabalhos, a dialogar com os pensadores e intelectuais, artistas e académicos. Deve ter, pelo menos, ouvido, muitas vezes, falar ou até conheceu pessoalmente D. Carolina Michaelis de Vasconcelos enquanto esteve no Porto. Esta senhora, ainda muito jovem, ainda em Berlim, trocara correspondência com membros da “Geração de setenta” acerca de traduções e da literatura portuguesa. Por entre as senhoras que muito conviveram com Antero e o conheciam, figura a esposa de Oliveira Martins. Muitas e muitas vezes, o recebeu na intimidade da sua casa. Não havendo possibilidades de discussões profundas, entre esta senhora e o poeta filósofo, a sua lucidez não é de desprezar. Assistindo, tanta vez, às suas fases pessimistas, ouvindo, aqui e ali, frases dispersas, longos monólogos e discussões travadas entre ele e o marido, pode ver-se, numa só frase, o que pensava das dores do poeta, das suas filosofias e fantasias políticas:

 

      ------ “Pobre Antero! Bastaria ter nos joelhos uma ou duas crianças, seus filhos, com quem brincasse, e ficaria logo curado.”

 

     Ao conhecê-lo na intimidade, o que é diferente de quem conhece o prosador, poeta, filósofo, D. Vitória apreciava e entendia facetas, que não estão patentes nesses escritos e não definem o homem de carne e osso.

     D. Vitória, ao que é dado perceber, tinha um carácter boníssimo, assistindo, com abnegação, aos últimos momentos de vida de Oliveira Martins. Não tiveram filhos. Isso parece mostrar que a perspicácia feminina tinha mais uma razão de ser.

      Teófilo Braga, grande político e intelectual, revelou sempre grande amizade por uma das suas irmãs Maria José, a sua preferida, que recebeu esmerada educação num colégio inglês de Ponta Delgada. A sua personalidade afável conquistou muitas amizades femininas no meio social da época.  

    Nota-se também que, a relação afetiva de Teófilo Braga e a sua esposa, D. Maria do Carmo, através do espólio das cartas que trocaram, denota uma cumplicidade e entendimento que a diferença de sexos em nada perturba e só se completa. Os trabalhos e investigações de Teófilo Braga sofreram severas críticas, por via das intrigas de intelectuais com nomes sonantes. Curiosamente, sua relação com as mulheres não traz o ferrete de superioridade. Foram muitas as figuras femininas com quem manteve correspondência e até com uma sua prima que vivia na ilha de Santa Maria com quem tem grande afinidade. Está ainda por rever a sua obra poética e pioneira em diversas áreas etnográficas e outras.

 

      A geração de setenta não inclui mulheres pela cegueira masculina e o seu constante domínio sobre o outro sexo. Seria de toda a justiça recordar que D. Carolina Michaelis de Vasconcelos, antes de vir para Portugal, já se correspondia com muitos dos elementos dessa geração.  Por grande ironia da história, a cozinha, a creche e a igreja, não são um lema hitleriano. Era já uma velha tradição europeia, cumprida à risca, na generalidade do social. Para maior complexidade do jogo masculino, lançava-se-lhes o anátema do ridículo e da fragilidade mental, pois as pobres mulheres sofriam a acusação de só se interessarem por futilidades, serem beatas e incultas. O jogo resulta porque os atores representam, sem consciência do sentido que se oculta por trás do que julgam ser, uma vida livre ou natural.

    Curiosamente as mulheres defendem, com toda a sua falsa consciência da realidade, um conformismo e uma tradição que as escraviza. Inconscientes da violência sofrida, as mulheres apoiam diligentemente as diretrizes masculinas dos homens que as governam. O ferrete e a condenação das “outras” reforçam o poder masculino, criando um muro hipócrita de vítimas.

      O cuidado com as crianças pequenas adequava-se à sua infantilidade, à sua tagarelice e ao seu sentido prático da vida. Mas, essas mesmas crianças, ao atingirem um certo raciocínio, eram-lhes retiradas, para serem educadas virilmente. Isto não significava honra, dignidade sabedoria e conhecimentos. Incluía também educação sexual que nada tinha de casta e íntegra. Se não eram os próprios pais, eram os seus amigos que os iniciavam na vida sexual nos prostíbulos de cada época. As infelizes prostitutas serviam de educadoras nas artes que as mães e irmãs dos jovens não podiam ser. Se, em casa, a integridade da esposa era uma “arca sagrada”, no prostíbulo além de se tornarem devassos, as consequências podiam ser terríveis. Com a convivência íntima com essas infelizes “escravas do prazer” como Antero lhes chama com naturalidade, nos seus versos, ou então em Paris as intitula “flores do asfalto” (…) Que têm elas que assim nos endoidecem?/Têm o que mais as almas apetece… /Têm o aroma irritante e acre do vício”. Assim também escreve Oliveira Martins, nos seus textos, “para agradar e seduzir”, causavam doenças horríveis, transmitidas às pobres esposas e até com consequências para os filhos inocentes.

     Eis o círculo dantesco em que se moviam as mulheres.

 

    Criava-se um medo e ódio entre a própria feminilidade, cavando-se um fosso entre dois tipos de vítimas que, devido à submissão dos dominados, nunca se revoltavam. Os dois lados desconheciam-se mas temiam-se mutuamente. A hipocrisia social dos opressores mantinha uma ideologia que não dava aso a revoltas. Sabe-se que as ideias dos dominantes não causam revolta, não só por falta de meios, mas fundamentalmente pela interiorização da moral e dos costumes dos opressores.    Quantos homens, atacados por doenças que, na altura, não tinham cura nem tratamento, chegavam até à loucura e nunca se soube a causa real do seu mal.

     Se a virgindade feminina do que então se dizia ser a riqueza da “mulher honrada”, era protegida, já nos jovens era tida como ridícula e, muito cedo, iniciavam-nos em práticas sexuais, quer pelos próprios pais, quer por amigos deste, pois se tratava de algo próprio da sua “natureza”. Qualquer jovem, que se casasse, seria muito ingénua se tivesse a pretensão de desposar um homem virgem. O que mostra o paradoxo e o ridículo do social, sempre ocultos sob o manto da hipocrisia.  
    Será sempre de recordar que as doenças venéreas e, muito em particular, a sífilis eram uma maldição que caía sobre cabeças inocentes e culpadas. A morte, ou a loucura era o trágico fim corrente, nos casos mais graves. Por hipocrisia, atribuía-se a loucura a causas hereditárias e outras que manchavam nomes de famílias inteiras, acusadas inocentemente de perturbações mentais.    A duplicidade da moral, existiu até ao nosso tempo, se bem que cada vez mais, as fendas revelem uma verdade que tem séculos de existência    Os paradoxos e as contradições sociais escondem-se habilmente. As armas do ridículo e da exclusão são um manto de fantasia sobre a dura realidade. Mas, no meio das contradições sociais o que revela o maior paradoxo que a dominação pela violência simbólica de Pierre Bourdieu, que apenas teve o mérito de trazer o tema para o nosso tempo. Esqueceu-se porém de fazer notar como é a mulher quem pode, como dominada, agir contra as outras mulheres e provocar as divisões que tornam qualquer forma de vitória impossível. As vítimas divididas são mais fáceis de dominar. No lar as mulheres, temem perder privilégios e receiam os riscos, as mulheres ditas “as outras” são desprezadas e humilhadas. Assim não pode haver concórdia e o jogo equilibra-se. Ainda fica melhor quando as campanhas femininas investem contra as pobres mulheres “sós” a que dão anátemas e de ambos os lados o muro da exclusão cresce. A mulher escritora, durante muitos séculos, escrevia a favor dos seus dominadores, marcando bem claro o lugar da mulher, no lar, domesticada e em luta por uma moral que, se estivesse consciente, descobriria que divide para melhor subjugar. Lentamente porém, o espelho começou a ficar fosco e a imagem que refletia era a de uma mulher fragmentada, em papéis que lhe roubavam a unicidade. A mãe, a viúva e a menina, as mais frágeis e dependentes, podiam ser exaltadas, ou veneradas com algum recado. Desde que a “casa” fosse o seu centro. Mas o risco esteve sempre no conhecimento, num conhecimento não pelos livros bons para as meninas e esposas, mas sim os livros que os homens escreviam sobre as mulheres e o sexo feminino não devia ler.  Os livros das revoluções, das ciências, os livros escritos para homens que como Antero, poeta do “eterno feminino” e das contradições, o pessimista Schopenhauer, o “homem de bem” e político considerado que foi Oliveira Martins, o despeitado Nietzsche que odiava as mulheres depois de ter sido recusado várias vezes por Lou Salomé e colocou na sua obra, “Assim falava Zaratustra”,  a sua melhor terapia, com toda a dureza dos seus aforismos. "Quando vamos ter com uma mulher leva-se o chicote” escreve. Mas, na vida real, fora ele quem dera um chicote à jovem. que o não usou.

    Já no século XX, ainda com esperança, mas que toca por tanto atraso, Charles Combaluzier escrevia, curiosamente sensibilizado pelo infantilismo religioso, pelo nível arcaico da justiça, pela violência ao nível planetário que, afinal, a humanidade está nos seus primórdios.     Se, o século XX, como muitos queriam, foi o século da criança, não parece que tenha acontecido. Antes pelo contrário, as crianças não são respeitadas, nem cuidadas como seres em formação, mas submetidas a deformações da sua personalidade entre muitos outros males, do trabalho infantil, aos meninos soldados. Mas também não foi século da mulher, pois a sua dignidade tem muitas formas de ser ultrajada até mesmo por uma escravidão de milhões e milhões de mulheres são tratadas como animais ou como crianças grandes, por vezes mesmo inferiores a estes. Teremos de aceitar o desafio que o pensador nos lança e que é este:

    A humanidade só o será plenamente quando a mulher for humana a tempo inteiro.
    A Mulher vai nascer, a Mulher nasceu”
. Só depois disso, é que o caminho da condição humana será realmente humana na sua duplicidade.