"Os círculos invisíveis "

  •  Tirania e Banalidade

 

    ©  Lúcia Costa Melo Simas ( 2012 )

 
 
 
 
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   Véspera dos ventos

 [ Madrugada de Outono. Praia em maré-baixa. Le Touquet-Paris-Plage. França. 2011 ]

© Levi Malho - Imagem digital

 


 

 

  É estranho que, ao analisar o quotidiano que se vive, se descubra que não tenha o sentido que sempre lhe demos. A quotidianidade, como objeto de estudo, é recente na floresta das ciências. O filósofo Henri Lefèbvre, (1901-1991) interessado por temas atuais, prestou nova atenção ao dia-a-dia. Ao estudá-lo, ficamos no limiar da perceção do “dentro”, constituído por repetições, reconhecimento de sinais, gestos, rituais, banalidades que não se narram por os sabermos demasiado bem e serem demasiado sólidos.

Na ilusão da permanência, raramente damos conta de todas as mudanças ocorridas no nosso próprio interior, da infância à velhice. Por vezes, é o olhar do outro que nos acorda para a nossa própria mudança. A frase dirigida indiretamente a nós é definidora da mudança “Cuidado com essa criança aí” transforma-se em “Cuidado com esse velhinho aí” e assim o lado de fora confronta-se com o interior que tanto mudou de modo subtil no nosso próprio consciente. A ilusão da permanência veio de longe e para longe vai.

    Podemos ler jornais, revistas e conhecer mil e um aspetos de uma comunidade, mas, mesmo assim, ignoramos o âmago do vivido dessas pessoas.

Há tempos atrás, surgiu uma coleção de obras dos mais diversos autores com um tema em comum a unir esse conjunto: “A vida quotidiana”. Descrevia os usos e costumes de cartagineses, argelinos, russos ou outros, de acordo com uma época. Tornaram-se clássicos da história cultural. Mas no que respeita a uma filosofia da história teremos de escolher outra abordagem dos factos e os fenómenos do quotidiano. Há uma relação entre a História e o vivido, pois a Vida se escreve com vidas. Há sempre o véu entre o vivido e o texto, a biografia ou o diário, o que há de singular oculto até nos comportamentos institucionalizados.

    Nas margens da impercetível renovação esconde-se a grande narrativa, a História que restará mas é a outra, a invisível, que lhe dá existência.

    A grande urbe, após a revolução industrial, “inventou” a quotidianidade. Todos os comportamentos podem começar e terminar no domínio institucional. Milhões de seres humanos vivem institucionalizados, em meios preparados e burocraticamente definidos. O nascimento e a morte, com a institucionalização total, passaram para a quotidianidade e lado humano fica num plano obscuro.

   A quotidianidade não é inocente ou inócua. Resulta de uma estratégia mundial e do domínio de classe. O vivido foi disciplinado em hospitais, lares, hotéis, cadeias, empresas, escolas, centros comerciais ou outros e não há fuga possível ao institucional.  A teia social é tão forte e complexa que nada pode ser pensado ou realizado sem se institucionalizar. Só o vivido é impossível de se objetivar e se torna fonte de conhecimento oposto ao totalitarismo.

  No quotidiano, todos somos atores que representam a sua própria vida sem sequer pensar que também realizam a história no seu lado mais liberto e rebelde. Ao invés do jornal, revista,  livro, as informações obtidas por todos os meios que vão da família, ao professor, às leis de trânsito, regras de latim, ou ao vizinho do lado, a vivência do dia a dia é o lado obscuro e secreto da vida.

    Esse lado interior do quotidiano, que não se pode narrar, é que torna a ação, a interação, livres e criadoras. As instituições têm as normas que se conhecem, padrões comportamentais e culturais, sem precisar do lado humano porém isso não é o âmago da realidade vivida.

  Pode-se nem se dar conta do seu valor mas é o mais precioso do humano. Nesse espaço, qualquer ser humano está de “chinelos”, tem todo o à vontade e liberdade nos seus limites e o narrador, com os seus sapatos sujos da lama da grande narrativa, não pode entrar aí.  A quotidianidade é um conceito holístico e abstrato, já a realidade do quotidiano é o movente e subjetivo que sustenta o englobante da urbe e do sistema.

   A grande narrativa alimenta-se do que nunca sabe. O paradoxo é que se vive dentro mas narra-se “de fora” e não há elo entre os dois lados. O objetivo e o subjetivo são duas realidades opostas. Na narrativa, a mudança é o que aparece e interessa e não a corrente do rio. A História coloca o vivido em um “um qualquer buraco negro” e esquece que é aí que tudo acontece. Dir-se-ia que Simmel, Lukács e outros, ao falarem da vida da Vida parece que a cortavam às fatias e dissipam a relação do vivido ao pensado.

    O presente imaginário da narrativa é substantivado, mas vazio de verdade. Há uma amnésia social que muito desilude e intriga quem busca o âmago de cada época. Depois é curioso verificar a falta desses referenciais e pormenores banais mas que depois se tornam o mais valioso para o investigador. Na ocasião do acontecimento, omitem-se o subjetivo e a vivência porque é demasiado familiar, próxima e banal. Datas e referenciais, depois tão valiosas, falham quando se descreve o presente. Os referentes ocultos são por demais conhecidos mas serão os que a amnésia mais depressa apaga.

    O absurdo da memória de curta duração é movimentar-se por entre referências que depois não interessam à memória coletiva.

  É paradigmática a explanação do quotidiano na renascença, cerca de 1584 num trecho de Abel Lefranc que descreve o diz ser um bom costume em várias cidades francesas. Parentes amigos e vizinhos combinavam levar as suas merendas, ora para casa de uns, ora para casa de outros quase diariamente. No inverno, já livres dos seus trabalhos, as pessoas reuniam-se e seroavam, sentadas às mesas, em alegres convívio após as refeições que sempre tornavam todos mais tagarelas e prazenteiros, por entre histórias e mexericos.

    Apesar de tanto pormenor destes encontros, nós não conseguiríamos conviver ali sem estranheza de todos. O mais importante e que torna as pessoas num grupo faltaria. Gestos, expressões, palavras, subentendidos e referenciais, sinais e toda a simbologia não estão indicados e esta narrativa que pretende estar dentro, está do lado de fora. O autor não se deu conta disso.

 

   Quando se entra num círculo de pessoas desconhecidas, ou abordamos um grupo de novos amigos, o embaraço é o de não saber interpretar  as aparência, as fórmulas educadas, gestos expressões e os signos e metáforas, junto com as imperfectíveis interações que são familiares entre eles que intuitivamente entendem. Ao procuramos a compreensão de sinais que nos guiem para interagir só temos as nossas analogias e cada um procura no próprio vivido, contrário ao dos outros, um modelo com risco de ser desastroso.

    O lado interior do vivido nunca surge nos relatos históricos que buscam as mudanças e as grandes explicações objetivas. Porém há, no íntimo do acontecimento um dentro que não tem outra designação possível, para referirmo-nos ao que não se pode passar para fora. Não é um segredo, mas é secreto.

   A racionalização da história da vida quotidiana faz desaparecer o humano para descrever uma série de rituais, de escolhas ou de regras de qualquer instituição, seja acampamento, taberna, asilo, ou outro, mas sentimos que não passa do cenário onde os figurantes se movem. É assim que o interior não existe nessas obas acerca da vida quotidiana do renascimento, dos maias ou do tempo de Homero. Escapa entre as páginas o “élan” vital do movente que lhe  rouba a parte livre dos seres humanos que existe no interior insondável. Se compararmos a quotidianidade a bonecas russas ou a uma cebola temos a resposta para o que não pode ser dito e apenas vivido. Nada se pode definir pelo que não é. Há como que o “númeno” de todo o fenómeno histórico da Vida que á a vida.

    Numa perspetiva fenomenológica o quotidiano é o transcendental para o sujeito que vive num conjunto familiar de acontecimentos mas não pode percecionar a realidade em si. O fenómeno, seja ele qual for, é uma forma da realidade para nós que deixa de fora esse númeno. Pode-se conhecer o fenómeno mas só pensar o númeno. Ironicamente o vivido tem um defeito. Transforma o momento em dias, meses, anos, esquecimento. Não conseguimos valorizar a banalidade e a repetição no quotidiano pela atenção às mudanças bruscas, ao que se diz acontecimento na mobilidade do real.

    A tarefa de explorar o repetitivo, o comum ou o banal leva a descobrir uma dinâmica oculta,  mas precisa de um olhar novo sobre o mais velho dos aspetos humanos. A repetição e o banal têm uma riqueza única. É uma revolução do olhar que altera as pontes e fronteiras entre o privado e o público. Contra todas as tiranias, este subjetivismo fechado dos grupos é a forma mais positiva de as afastar. Os grupos, as famílias, os amigos, associados, colegas e companheiros ajudam por um lado a uma permanência secreta mesmo nas mudanças. São eles que protegem do impacto da mundialização pois criam uma preparação ou resistência a mudanças bem como uma adaptação própria 

    A vivência interior permite que tenhamos a perceção de que há um mundo muito para lá da nossa experiência. A fenomenologia do público e do privado, do vivido e do narrado demonstra bem que os grupos e as interações pessoais, face a face, indiretas ou mediatizadas atingem o quotidiano pelo lado de dentro e do subjetivo.

    O risco da anomia reside agora numa rutura social entre os meios e os fins institucionais, a solidão de uma multidão que rebenta com os laços da interação humana no quotidiano. A teia social não se confunde com a trama humana. O  risco de desaparecer o sentido humano para surgir o grande sistema que tudo processa e tudo engloba, sem interrogações sobre o seu sentido está aí. Vigia no exterior..

   A prova da liberdade humana no seio do institucional totalizante está na perceção fenomenológica do fora e do dentro ou, com rigor kantiano do transcendente e do transcendental, valoriza as relações dialogantes dentro da vida enquanto a Vida, a que ficará na narrativa permanece no lado de fora.

    O dualismo do dentro e do fora a sua oposição e dialéctica é a única dinâmica que permite a luta contra todas as tiranias que dominam as massas, mas não o vivido humanizante e partilhado.