" Imperfeições diárias"

    ©  Eduardo de Quina [2005]

 

 

 

Das coisas improváveis

-- Sobre "maias" saindo duma caixa correio abandonada. Porto. Rua do Mirante --

© Foto de origem e   arranjo digital - Levi António Malho  (2004)

 


 

 

 

 

imperfeições diárias

 

 

 

                                                 

“Repousei no teu corpo e não fui mais além

 

David Mourão-Ferreira

 


 

não digas nada na forma indecisa

deste desenho delicado em que um beijo suave

é, ainda, a indecifrável distância

que desce sobre ti para adormecer

 

 


 

na memória indecisa da separação do corpo

alguma coisa desabitada se tornou

o lugar onde começamos.

incapaz, as formas desirmanadas

caíam contra o filamento compacto

e a minha voz não era mais que desespero.

 

 


 

 

nada disto poderia olhar-me

mas que pode um corpo

contra o desejo de ser

ou o lugar das memórias.

 

nenhuma palavra pode, ainda, esta certeza,

sem temer que a própria voz

se torne a solidão petrificada

desta terrível compaixão.

 


 

  clandestinamente vamos os dois

no movimento eterno desta iluminação.

as palavras adivinham a solidão transformada

da noite devorada

em que se esquece o fogo

que, ainda, existe

neste interdito poema

onde leio cada morte

que se consome, ainda,

na separação clandestina

dos nossos corpos.

 


 

 

o caminho que encontramos

no interior do esquecimento

é apenas a tentação

do duelo que travamos

na vulnerável decadência

a que o corpo resiste

por não haver indiferença

na inclinação íntima do teu olhar

 


 

as coisas inúteis ou

estas palavras segregadas

neste quebradiço pedaço de corpo

que ocupa a estante onde me guardo

para adormecer na

infatigável transcendência de regressar, sempre,

ao lugar do costume

 


   

o infortúnio neste, imponderável, instante

do deslize imperfeito

neste regresso ao teu vulto.

de que é feita esta saída

quando alguém te arrancou de mim

a impureza do teu disfarce

ou o incompleto deslumbramento

da minha memória.

ninguém, já ninguém, pode ter

este desejo desesperado do teu

amor imperfeito na

extrema medida deste silêncio.

 


   

o pedido, inconstante, da tua voz

nesta certeza de quereres uma claridade

que, ainda, te trouxesse

a ansiedade doentia

de uma outra promessa

onde, ainda, assumisses

que já nada te pode trazer o teu corpo

e em toda a tua ausência

insinuas uma morte transitória

que te possa tranquilamente trazer a dor

 


 

o gesto trémulo e ingrato que se

move na minha direcção

para me dizer que ficaste à

minha espera no mistério

insondável do teu corpo.

não fui porque só agora me

encontrei neste corpo incompleto

e tombado diante de mim.

queria a tua promessa neste

silêncio que é, ainda, embalo

onde tudo recomeça de novo.

 


   

este mundo a preto e branco

da tua infância

mais que o simples recomeçar deste embalo

era a circunstância indefinida

segredo que, ainda, é teu

nestes locais impuros e disfarçados

em que nos devoramos a cada solidão

 


   

cúmplices de outra vida

aí se insinua o teu protesto

ou a minha morte incompleta

nos meus gestos mínimos

do encontro que marquei

para mim mesmo.

o último golpe onde caímos doridos

nos remorsos doentios

desta promessa de um corpo

que, ainda, pressente a tua memória.

 


   

tentei fugir da tua prisão

corpo imenso onde me sepulto

em espasmos de loucura

e volto sempre à noite que me procura

num corpo a corpo

entre milhares de sombras

em que caminho

prematuro desta existência

onde me acabo neste percurso

até onde ninguém sabe

 


   

espaço de memória

no desejo errado do teu retrato

que dento de mim se constrói

na prometida consecução de uma esperança.

 

era eu apenas a ausência da tua voz

procurando-me no amor deste deus

que te invade no equilíbrio

deste lençol que, ainda, traz a tua promessa.

 


   

embora tudo me encontrasse

no caminho súbito de uns olhos

perdidos na brisa onde

me foste prometida.

como um gesto no silêncio

deste amor imperfeito

onde alguém neste sonhar disfarçado

sabe ao que vens

alguém que não tu.

 


   

o que de noite se transforma

nesta historia que me faz chegar a ti

um resto de mundo ou

a comparação insolúvel

desta estranha semelhança

que vai passando ao

longe desta despedida

 


 

mais difícil que a inevitável palavra

a distância a que deixamos o rosto

naquele vulnerável auxílio

que defendíamos sem saber

que nos pertencemos

à passagem abandonada

em que nos repetimos de coragem


 

esses estranhos movimentos

exagerados na temporalidade circunstancial

que nos pertence apenas por muito pouco

e nos prolongam a incalculável memória

para que possamos, ainda, dizer quem somos

 


 

o reflexo, inconstante, da tua expressividade

no limite da existência

ainda para me mostrar o meu regresso

a este lugar, impuro, onde triunfei

para me perder no desvio

descontínuo da tua vivência

talvez tudo fosse um simples desejo

dessa figa marcada para

regressarmos, assim, à vida

 


  no corredor que nos leva

para onde já não íamos

essa coisa que nos dominava

mostrava-nos e recanto íntimo

da nossa miséria

 

já de joelhos pedimos perdão

e a dor erguia-se

na face de um deus

que já não sente

 


 

  o resíduo da tua imagem

era, ainda, o silêncio incompleto

da dissertação desesperada

de faltar apenas um encontro

na bloqueação permitida

do meu corpo

 


 

como saberei o que fazer

com esta tormenta antiga

que rebenta

na claridade vespertina

em que lembras a insatisfação

que a minha alma espera

na procura repousada do teu corpo

 


 

a verdade, da minha existência, condenou-me os olhos

levou-me confundido nos seus sonhos

e a cada espaço vejo a solidão feroz

que se resguarda incompleta

nesta inconsciente consciência

onde se anuncia um princípio cosmogónico

no interior aberto

onde tudo principia

 


   

um rumor que principia

no seguimento incompleto

que oscila intacto no renascer

milagroso do minha existência

 

apenas me via neste reflexo diário

onde as minhas mãos

não podem ir além da permissão

condicionada dos tumultos

 

já não pode haver verdade

neste rigor intacto

onde sou provisório no julgamento

constante da precaridade

 


   

a frágil condição da tua claridade

traz enrolados os meus desejos

deste conhecimento incompleto do teu corpo

quando, ainda, nos precisamos neste

refazer constante das perfeições onde, ainda,

somos angústia desta procura

 


 

a impura procura do teu regaço

onde posso, ainda, renascer

uma e outra vez

para que a seguir me possa abandonar

no terror da existência inócua

que um murmúrio último não

traga claridade a esta ausência


 

somos, assim, duas almas penadas

no sufoco último desta dança.

ainda somos capazes de dar as mãos

para um último regresso

a este lugar.

vamos para sempre

na condição última desta liberdade

 


 

crescemos os dois a fugir deste medo

a prisão diária desta simples condenação

crescemos os dois a fugir para o limite do mundo

só aí poderíamos alcançar a verdade verdadeira

desta perseguição diabólica onde

temos que renascer para podermos voltar à

claridade inconsciente deste desejo incompleto

 

crescemos os dois a fugir na mesma direcção

 


   

à tua volta cresce a vontade de dizer agora

de partir na incessante procura daquilo

que é, ainda, promessa escrita do

desejo que guardas até hoje

 

tudo passa por nós como que a dizer

que nada nos salvará, nem mesmo

a tua promessa escrita na nossa

memória de recordações

 


 

a re-invenção do espaço dentro

da minha memória conduz-me

novamente à insignificante vontade

de nos manter amarrados aos silêncios

 

na minha constante procura

talvez haja, ainda, um pequeno

resquício de lembrança das

palavras que um dia foram tuas

 


   

um resto de memória na

metáfora inadvertida deste discurso desarticulado

no resto desadequado da imagem

em que estamos para não vemos

esta tendência desordenada

que habitamos inadvertidamente

 


 

esse teu desejo que em mim é espera

é, talvez, a verdade que me

pode guiar neste desencontro

 

e precisava, outra vez, das tuas mãos

para poder continuar