AS ORIGENS DO SILÊNCIO
--- Sobre o que não sabemos.
" (...) Vou passar a noite a Sintra por não poder passá-la em Lisboa,
Mas, quando chegar a Lisboa, terei pena de não ter estado em Sintra.
Sempre esta inquietação sem propósito, sem nexo, sem consequência,
Sempre, sempre, sempre,
Esta angústia excessiva do espírito por coisa nenhuma
Na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada da
vida... (...)"
Fernando Pessoa, "Poesias de Álvaro de Campos"
I) - UM GRANDE FRIO DO ESPÍRITO
O imprevisto percorre as nossas vidas, uma mão vinda sei lá donde "dá e tira", sem que saibamos os porquês de certos ventos que nos levam para longe, como aquele pássaro que atravessou uma gélida noite de orações de Beda, o Venerável Beda.
Singular coincidência esta em que o "ser individual" se assemelha à "espécie", em que o sentido que preenche o destino dos homens se abre face aos imponderáveis da nossa ignorância sobre infinitos seres, infelizmente os mais importantes.
Como aqueles personagens de Pirandello "à procura de um Autor", o nosso "Eu", essa coisa óbvia que nos faz reconhecer como Corpo distinto do Mundo, aquele olhar, sorriso, ruga, que os espelhos nos devolvem, é uma "entidade múltipla", uma "arte combinatória", onde se cruzam os genes, as culturas, as paisagens, as vozes amigas que circundavam a infância, os livros, os sonhos, o caleidoscópio insondável da Natureza.
O "Eu" é, por conseguinte, uma multidão anónima que se esconde sob o nosso nome, um gelo fino sobre o grande Oceano subjacente e um ilimitado Céu.
Sabemos o "instante", o aqui, o agora. Flutuamos no Tempo com uma displicência de turista, mapa na mão, todas as ruas assinaladas, afinal de contas nunca nos perdemos, há sempre um Norte, uma estrada donde se vem, um caminho para onde se vai, o Universo não tem buracos, "quem tem boca vai a Roma"!
E, todavia, tanta certeza leva-nos a desconfiar.
Sei que o Tempo nem sempre se apropria como nós queremos, nós os que vivemos ao ritmo dos noticiários de trinta em trinta minutos, da "síntese do dia", da análise profunda do semanário, dos balanços de fim-de-ano, ou de década.
Mas que sentido faz "1 semana" ou "1 ano" para o "Sapiens-Sapiens" (designação que não revela grande modéstia nem falta de auto-estima, admita-se ...), que por aqui anda há 40.000 anos?
"Conhece-te a ti próprio!", dizia a máxima socrática.
Mas não está lá dito que basta um retrato "tipo-passe", frente-perfil, o necessário para o Arquivo de Identificação e Bilhete de Identidade.
O que afirmo é que ignoramos o essencial, de nós sabemos a sombra duma sombra, o nosso Eu é centrífugo, lança-nos para a rua, põe-nos cá fora a vêr quem passa, detesta companhia, não por misantropia, mas por incapacidade de se escutar.
Em fim de século, a consciência humana está saturada de "interpretações", de "interpretações de interpretações", abafada por signos, ausente do despojamento duma "nudez" que lhe é insuportável!
Porque há, no mais fundo de nós, um Enigma não resolvido, quer na vertente social e histórica, quer na dimensão individual, quer na "espécie" a que pertencemos.
Como figuras de banda desenhada, ou personagens de parábolas milagrosas, julgamos caminhar sobre as águas e desafiar o Vazio, só porque nos recusamos a olhar "para baixo" e nos agarramos uns aos outros, não necessariamente por razões de afecto, mas simplesmente porque estamos aqui, "apertados" na barca da História, porque não há outro local a não ser esse...
Mas o Tempo contém uma opacidade para além da nitidez do presente, do "instante - que - faz - sentido", mas resiste pouco aos espíritos claustrófobos, aos que afastam as estátuas dos egrégios avós, arrancam as amarras e se perguntam se o Mundo é um teatro ou o Teatro é que é o Mundo, o encenador nunca pode atender, o guião não está disponível, "talvez mais logo", como nas palavras do Senhor Godot de Brecht.
O nosso "presente" é, fundamentalmente, urbano, citadino, mediático, aldeia-global, "good news, no news...". Porque estamos à tona da História, os ritmos das Sociedades Industriais avançadas confundem-se com a aparência do único modo-de-estar possível, a fuga-em-frente é o caminho óbvio, parar é morrer, os acontecimentos precipitam-se e nós, pobres humanos, passamos uma "vista de olhos" para "estar-a-par", entender, mediatizados por profissionais da interpretação dos factos económicos, do agregado monetário "M3" do "BundesBank", das declarações do Presidente da Reserva Federal, das imagens do telescópio espacial Hubble, das matanças inenarráveis do "Ramadão" argelino.
Como se pode ver e falar disto tudo sem perplexidade e sem espanto?!
Drogados pelos "acontecimentos", caminhamos para uma certa insensibilidade face ao mundo, agarramo-nos aos nossos dias, recusamos o "non-sens" duma época convulsiva e turbulenta.
Que o processo histórico não obedece às regras da Geometria Euclidiana, já o deveríamos saber. Que não há "fundamento último", a não ser por consenso de vontades precárias, isso é que se revela mais custoso de admitir.
O que afirmo é simples. Avaliem-se as "temporalidades longas", escavem-se os "sub-solos da Civilização", meta-se a mão e a consciência bem fundo na História e então, no centro da "Luz", pressente-se um entardecer, uma ameaça de despojamento, um grande silêncio, uma espécie de "coisa nenhuma, um grande frio do Espírito.
A consciência do Tempo arrefece em direcção ao "zero absoluto" se, duma certa maneira, olharmos e pensarmos o "social", o "individual", o "humano", o "biológico" e o "material".
Tal como um "puzzle", estes conceitos parecem encaixar-se bem uns nos outros e, no seu conjunto, produzem um "Objecto-com-sentido". Mas o que pretendo é chamar a atenção para as "arestas" de encaixe entre as várias "peças" e constatar se essa superfície tridimensional desejada como "sólido perfeito", não é um cenário de Hollywood, preso por arames...
II - " AS TIME GOES BY "
Se partirmos das evidências primárias, dos fenómenos banais, ninguém contesta que a condição humana é uma combinatória entre o individual e o social, sendo bem difíceis de estabelecer fronteiras nítidas entre estes dois conceitos.
Aceite este pressuposto, comecemos pelo "objecto" mais próximo, aceitando que nada há "mais próximo de nós", que o "Eu" de cada um de nós.
Esse "Eu" tem um nome, um sexo, uma data de nascimento, um território, uma comunidade com a qual inter-age. A sua "Forma" resulta desse ajustamento que teve de fazer em função de "formas" que lhe pré-existiam ou que com ele co-existiam.
Aparentemente, sabemos quem somos, respondemos pelo "Nome" quando nos chamam, orientamo-nos nas cidades, fazemos compras, cumprimentamos com delicadeza ausente o vizinho de cima! Isto é, sedimentamos a nossa Vida numa constelação de referentes com nexo aparente, distinguimos as ilusões e sonhos das "horas despertas", ajustamos as rotinas do quotidiano entre limites tidos como razoáveis.
Mas se tentarmos mergulhar na nossa identidade, naquilo que faz com que sejamos esse "Eu", rapidamente seremos confrontados com algumas surpresas. O essencial de nós repousa numa espécie de "treva primordial", bastando para tal um exercício imaginário rudimentar. Claro que sabemos o "Hoje", talvez o "Ontem,", provavelmente a véspera da véspera. Mas, à medida que nos afastamos do "Presente", uma bruma levanta-se sobre os nossos dias passados, sabemos que "estivemos lá" ( senão, não estávamos "aqui" ...), mas algo de desconfortável irrompe, nos lapsos de Tempo esvaziados, nas horas, semanas, meses, anos, que não reconstituímos a não ser por uma síntese do "mais-ou-menos", "não me lembro bem", parece-me que foi "nessa altura", mas não tenho a certeza!
É verdade. As certezas diminuem, não porque sejamos inseguros, tímidos, mas porque a consciência é amnésica, deita fora, recalca, volatiliza os instantes, para erguer um edifício sintético auto-produzido onde nos protejemos das ondulações in-formes do Oceano antiquíssimo.
A verdade é que, quando procuramos, individualmente, as primeiras "imagens" da presença de "nós em nós", esse local do Tempo em que nos vemos como um "Eu", deparamos com um acontecimento interactivo, espécie de "flash" dificilmente datável, algo como um rosto de mãe que nos olha e afaga, uma sensação tépida, um balão colorido na nossa mão, um dia de chuva, um brinquedo, um rumor, um aroma, uma vaga percepção táctil.
E antes?!...
Esse "antes", para nós, é inexistente.
No nexo causal, a Razão diz-nos que "teve de lá estar", e nós com "ele", claro. Mas, por mais que nos esforcemos, "ele" desapareceu para sempre. Um desmaio hipnótico da nossa Memória é tudo o que resta e ninguém se lembra de ter nascido, do desconforto da primeira respiração, do momento em que o nosso corpo se "separou", para sempre, em direcção aos limites de si próprio.
Descobrimos então que não somos autónomos, que não "nos pertencemos" senão por um acto de Vontade, que dependemos totalmente dos outros, daqueles que nos dizem que "aquilo-aquele-aquela" éramos nós, aí está um retrato amarelecido pelo tempo e a gente acredita, não há outro remédio!
Tenhamos, por conseguinte, consciência que não estamos a fazer outra coisa senão "acreditar", "ter fé", "crer", jamais nos sentiremos como "presentes" a tudo "isso", ninguém nos peça responsabilidades, declarações, compromissos de honra. Moral da história: na nossa "auto-psico-génese" somos estruturalmente passivos,[] flutuamos numa espécie de vento que jamais saberemos donde veio.
Resta-nos admitir que esse "testemunho" é credível, que tudo isto é normal, sempre foi assim, é nossa condição, um pormenor insignificante, um detalhe neurótico, nem vale a pena pensar nisso. Só um espírito desconfiado se lembraria de tão bizarras divagações. Só nos faltava mais esta. Ora! Ora!
Dir-se-á, todavia, que talvez tenhamos seguido um caminho excessivamente particularizado. O "Indivíduo" é in-significante, o que conta é o "Eu" no contexto social, isto é, as Civilizações e a História "longa", pois essas colmatarão as lacunas das "histórias individuais".
Mas também esta tese nos revela algumas surpresas, quando nos movemos em direcção ao "equivalente social" da auto-consciência individual.
Todas as "Histórias Universais" são uma espécie de triângulo equilátero invertido, do ponto da vista dos dados informativos. Tanto faz serem em três volumes, como em vinte volumes, a proporção mantém-se. Para o mais remoto "Passado", a distância vertiginosa do "Presente", na "Pré-História" (designação altamente discutível...)[] os assuntos arrumam-se, com aparente lógica, mas em "espaços expositivos" curtos. Nos dez volumes hipotéticos da nossa imaginária "História Universal", Grécia e Roma aparecem lá para os fins do 2º tomo, na melhor das hipóteses. Depois, um/dois volumes para o "Período Medieval" --- às vezes o "Renascimento" ainda cabe aqui --- e os restantes cinco volumes para os últimos cinco séculos e em proporções inversas de páginas relativamente à distância que nos aproxima dos séculos XIX e XX.
Esta análise tem excepções, mas creio representar uma realidade de fundo, que não é culpa de qualquer "avareza" dos editores, mas do simples facto da pulverização e extinção de "documentos-monumentos", à medida em que nos encaminhamos das Sociedades Industriais para o "Mundo Camponês", e deste para a sua origem, no Médio-Oriente, há aproximadamente 4.000 anos. Para "trás", ficam 36.000 anos de Caça e Recolecção, as coisas tratam-se já não na escala do "século", mas do "milénio", a imprecisão cresce de forma logarítmica, não há livros, os papiros desfazem-se em pó, as pedras partiram-se, as estações arqueológicas procuram fragmentos de plâncton no oceano do Tempo. Algumas "inscrições", um maxilar, uma rótula, nos dias bons, um crâneo, temperados pela ajuda da paleo-botânica mais o "carbono 14", são o melhor que a nossa Ciência prestigiada consegue arregimentar ao gigantesco vazio de Informação.
E nem sequer podemos ter esperança no progresso dum "Conhecimento Futuro", pois estamos perante fenómenos irreversíveis em que, quando muito, preencheremos mais algumas lacunas, produziremos mais alguns modelos teórico-interpretativos, mas a verdade que se impõe é a duma ignorância de fundo face ao nosso "nascimento social", do ponto de vista da Espécie.
Para trás dos 40.000 anos, a cegueira aumenta e os dados diminuem. 100.000 Anos para o "Sapiens-Neandertal", três a dez milhões de anos para a Antropogénese, a passagem da floresta à savana, "Erectus", "Habilis", "Ramapitecus", pequenas luzes na grande noite. Só memória de palavras talvez ditas, só crescimento do Silêncio!
III - " O FEITICEIRO DE OZ "
Sem sustentar, de forma alguma, a inexistência de efectivo progresso na consciência que vamos construindo sobre o Mundo, pois é óbvio o extraordinário desenvolvimento da informação que sobre ele conquistamos, pretende-se chamar a atenção, no presente texto, não para "aquilo que se sabe", mas para o que se "continua a não saber".
Nesta matéria há duas posições paradigmáticas a considerar, que se sustentam num pressuposto de base diferente. A primeira, admite a total "transparência potencial da Natureza" e a adequação essencial da consciência humana para a descoberta dos seus limites, tudo dependendo duma questão de Tempo, em que o Futuro ocupa um papel sistematicamente positivo, em direcção a uma espécie de "Teoria-do Tudo" ("TOE").
Uma outra atitude, apesar de com esta compartilhar uma dimensão de racionalidade do "Real", admite a possibilidade de "limites ontológicos" à total desvelação do Universo, por não estar provado que a Natureza foi "construída" como um "puzzle" para o "Homo Sapiens" pacientemente colar e pendurar na parede, no "final" da História...
Repõe-se aqui, num contexto amplo, a questão do "antropocentrismo" e duma espécie de boa-consciência quanto ao facto do Universo estar dimensionado para se adaptar preferencialmente às espécies "cerebralizadas", no conjunto das quais o "Sapiens-Sapiens" se apresentaria como predestinado à conquista do "segredo final".
Não digo que não desejaria que tal se verificasse, mas tenho de reconhecer que tal "voluntarismo" pode não se adequar à "estrutura profunda do Mundo", se é que este conceito é viável!
Nesta ordem de ideias,uma breve reflexão sobre a Biogénese e Cosmogénese, pode revelar alguns elementos curiosos.
Não discutirei aqui a hipótese da existência duma "unidade de fundo" no interior daquilo a que se chama a "Vida", conceito bem mais complexo do que parece, se atendermos ao que se tem passado nos últimos 30 anos. A separação abissal entre o "vivo" e o "não-vivo" (matéria/vida), é actualmente um reino de sombras, em que o limiar é guardado pela insólita estrutura dos "vírus".
Perante estes, é bem difícil de responder se são ou não "seres vivos" pois, apesar de partilharem com a "vida normal" o facto de serem possuidores dum código genético, essa longa sequência de "ADN" desvelado na 2ª metade deste século por Watson e Crick, a verdade é que, na ausência de outras células que "parasitem", os vírus comportam-se como entidades inertes, sem autonomia replicativa, incapazes, portanto, de se "multiplicarem".
Na hierarquia da biogénese, apresentam-se como uma entidade "minimalista", mas onde o essencial, "menos qualquer-coisa", está presente.
A verdadeira dificuldade está em compreender como "se passa do "não-vivo" ao "vivo", pois apesar da experiência de Stanley Miller[] revelar a possibilidade de complexificação dum meio químico rudimentar poder originar macro-moléculas duma grande complexidade, através duma "ars combinatoria" já suficientemente provada, a verdade é que tal experiência nos leva somente à "ante-véspera" da Vida e à síntese de alguns "compostos" constituintes do futuro código genético.
Mas não nos iludamos, dado que ainda não foi possível "criar e/ou sintetizar" laboratorialmente um ser vivo "pleno", por mais simples que seja...
A biogénese lança-nos para estratos cronométricos de duração extremamente longa, pois, em vez dos 12 milhões de anos que nos levam dos "Ramapitecos" ao "Sapiens/Neandertal", necessitamos de enquadramentos temporais que remetem para as "eras geológicas" e a formação do planeta Terra.
Admitindo 4.600 milhões de anos, como um tempo consensual para a idade da Terra, a biogénese pode ser um fenómeno arcaico, que remontará há 4.000 milhões de anos.
Apesar da inexistência de fósseis que sustentem uma tal antiguidade, a probabilidade destas datações é verosímil, se atendermos a que os "vestígios efectivos" já apresentam uma complexidade que implica a eventual pré-existência de "organismos" que lhes são anteriores. Nesta ordem de ideias, é bem mais difícil entender "como se passa" do "não-vivo" ao "vivo" que aceitar, com alguma lógica, a transição das primeiras entidades dotadas de vida até à incomensurável diversificação das espécies e colonização biológica da Terra.
A profunda diversidade orgânica que a evolução nos revela, assentando sempre na plataforma básica do "código genético" e da monótona universalidade dos seus componentes básicos, sugere-nos que a "lógica da Vida" vai na direcção da "diversificação", nunca apostando tudo num único organismo/espécie, por mais eficaz que ele pareça nas suas correlações adaptativas com o respectivo biótopo.
Se no "darwinismo" e "neo-darwinismo", o Tempo e o Acaso, são os verdadeiros obreiros da "evolução-transformação" das espécies, não deixa de ser curiosa uma reflexão sobre um eventual "Sentido" que presidiria à biogénese. Há uma tendência usual de sobrevalorizar a "cerebralização" como a verdadeira chave da evolução, espécie de força motriz que "empurra" as Espécies em direcção à grande linha dos Mamíferos e destes à Antropogénese, no topo da qual o "Homo Sapiens" representaria a "saída" por excelência.
Sem negar que esta análise, aparentemente, é convincente e até "lisongeira", não podemos esquecer que a consciência e as informações que actualmente dispomos sobre a evolução das espécies, não justificam a total transparência desta interpretação.
A lógica da Vida, "se lógica tem", é "manter-se viva"! Nela não está inscrita a necessidade irreversível duma hierarquia "progressiva" em direcção aos "grandes cérebros" que, apesar de actualmente triunfantes, só podem reivindicar alguns milhões de anos de existência.[] Deveria servir-nos de exemplo qualquer visita a um Museu de "História Natural", onde jazem às dezenas, fragmentos e painéis sobre comunidades biológicas bem "sucedidas" e de duração prolongada, e que actualmente se reduzem à poeira das prateleiras...
Se os sistemas nervosos centrais complexos constituem uma vantagem adaptativa face a eco-sistemas em rápida mudança, pois não necessitam de "esperar" pelas mutações dos genes para se adequarem às rápidas transformações do biótopo, também é possível reconhecer que há uma espécie de "excesso" nessas "redes neuronais finas",[] sobre o funcionamento das quais "o que sabemos" é incomensuravelmente inferior ao que "ignoramos".
Numa outra perspectiva, há algo de "monstruoso" na maravilha que, de facto, é um cérebro "Sapiens"! É como se algo de "excessivo", teratológico quase, fosse entregue a seres instáveis, frágeis, sub-dimensionados para efectivamente "controlarem" esse instrumento evolutivo verdadeiramente excepcional.
Digo, por conseguinte, que um grande Enigma nos habita.
E um enorme "Silêncio" está dentro de nós, zona obscura, campo cego, presença indizível. Nada está escrito em sítio nenhum, garantindo-nos o "cume da Criação". A estrada do "humano" pode dirigir-se a "sítio-nenhum". Tal será lastimável, mas sei que esta afirmação é simplesmente um desabafo piedoso dum "cérebro Sapiens".
Tal como os corais que produzem os grandes recifes, no interior dos quais uma espantosa diversidade biológica inter-age e sobrevive, esquecendo que tal sobrevivência se deve à "Fronteira" que o próprio recife é, convém lembrar que o micro-mundo que aí existe é uma pequena "bolha" preciosa, cercada pelo incomensurável Oceano que, dia e noite, pressiona essa região excepcional.
Da mesma forma que não se "podem fazer omoletes sem se partir ovos", não se pode entender um "sistema vivo" sem pensar o "não-vivo" que o constitui. Apesar de não sabermos o que faz com que um "agregado molecular" seja um "ser vivo", a verdade é que sem "ele", sem esse conjunto inerte de componentes "materiais", nunca esse "sistema vivo" seria possível.
É natural que pensemos as "dependências materiais" da Biogénese, levando-nos tal meditação à paradoxal "infinita distância" e "infinita proximidade" de nós próprios. Neste derradeiro cenário, está prestes a entrar em cena, utilizando uma linguagem mecanicista e desactualizada, a execrável "Matéria"!
As perguntas sobre a natureza da "Matéria" são talvez as mais antigas da História cultural daquilo a que se chama o "Pensamento Ocidental", cujas origens remontam à aparição do pensamento filosófico, nas cidades gregas da Ásia Menor, por volta do séc. VI A.C.
Se é um lugar-comum afirmar que a Filosofia instituiu uma passagem do "Mito" ao "Logos", talvez seja mais importante salientar a névoa que cobre este "local de passagem", acentuando que todos os grandes Mitos de Criação, anteriores no Tempo e deslocados no Espaço, por relação às origens da Filosofia, se posicionaram face à "matéria-prima" do Mundo, o que é outra forma de dizer a "Substância básica" que lhe está subjacente. Esta questão é a "nascente" de todos os Deuses e de todas as Religiões, uma vez que é bem difícil encontrar um "Mito de Fundação" que não tente responder ao problema da origem do mundo e das "redes causais" que presidem a uma historicidade que vai das "Origens" até ao "Quotidiano" da comunidade antropológica que sustenta, transporta, actualiza e vivifica o Mito.
O que o pensamento filosófico faz, nas suas origens gregas, é "naturalizar" progressivamente o problema, fazendo um esforço para separar o domínio do "Logos", do espaço das "Divindades", que se desloca para o domínio das convicções íntimas de cada um, assim permitindo a discussão construtiva sobre a natureza dos 1ºs princípios. Os Gregos debateram exaustivamente o problema da "substância primordial" ("arquê") e admitiram soluções monistas e "mono-substanciais" tais como a "Água" de Tales, o "Ar" de Anaximenes, o "Fogo" de Heraclito, o "Apeiron" de Anaximandro, os "Números" dos Pitagóricos, a partir dos quais por uma dialéctica descendente de cariz naturalista se partia da "Unidade Inicial" para a "Pluralidade Final" que actualmente contemplamos.
Este novo tipo de pensamento instaura uma "fractura" nas Consciências, pois a pluralidade das respostas sugere aos indivíduos um "campo de insegurança" e incerteza, dado ser óbvio que não podem ser todas Verdadeiras, mas podem ser, em última estância, todas Falsas, ou então, apenas delimitam fragmentos de Verdade que deverão ser postos à prova da Razão e da Experiência.
O pensamento grego percorreu quase todas as veredas possíveis deste "universo de dúvidas" e, à medida que a História da Filosofia se encaminha para o período áureo de Platão e Aristóteles, o problema da "Substância Primordial" complexifica-se, não se tratando agora de escolher A e/ou B, isto é, Ar, Água, Terra e Fogo coexistem[] numa vasta teia de relações que dão origem à "Física Antiga", nas suas diferentes versões.
O problema da "Matéria" é abordado de duas grandes maneiras, que divergem entre si, não quanto ao facto da sua "existência" no plano do Mundo, mas quanto à sua "natureza íntima".
Platão entende o Mundo como um "Ser Vivo" ("Zoon") dotado de "Alma", cuja "autoria" remete para o projecto de Bondade dum "Deus-Demiurgo" que deseja criar "algo" ( o Mundo) que se lhe assemelhe. Se tal Mundo deve ser Visível e Tangível, e por isso será composto de "Fogo" para o "iluminar" e de "Terra", para ser "tocável", não deixa de ser verdade que este mesmo platonismo tem sobre a "Matéria" uma posição de desvalorização e desconfiança quanto ao seu poder auto-subsistente, uma vez que a considera uma "prisão da Alma", um "simulacro" a ser ultrapassado, sob pena de habitarmos para sempre um reino de trevas e de sensações espúrias, que não levam a parte alguma. É esse o sentido do "Mito da Caverna"!
O verdadeiro Mundo apenas é acessível ao Espírito humano por uma espécie de "Psicanálise das Memórias arcaicas", em que a "Alma" recorda um "Tempo Primordial" durante o qual "contemplou" a verdadeira natureza das coisas, que reside, de facto, num "Mundo de Ideias e Arquétipos", sinónimos de perfeição absoluta, onde nada muda e nada se transforma. O Platonismo abre caminho a um "Conhecimento" entendido como depuração de sensações, consciência aguda das máscaras e simulacros da experiência empírica, via de despojamento mítico-religioso, processo ascético da Filosofia em direcção a um "Mundo Ideal".
Nos bancos da Academia, oriundo da Macedónia, um aluno atento tomava notas, bebia estas ideias e estaria predestinado a suceder a Platão na direcção da Escola, como o mais qualificado representante do núcleo duro do Platonismo. Mas Aristóteles acabou por virar o Mundo ( "platónico" ) do avesso, expurgando para o "Nada" esse "Mundo das Ideias", substituindo-o por um empirismo dinâmico, de natureza experimental, considerando que a consciência humana encontrará as "Leis" ("Universais") através duma análise das "coisas particulares", dos entes individuais que a percepção nos fornece. Constrói um pensamento indutivo, antepassado directo da "estrada real" da Ciência Moderna, nascida no século XVII. A "Matéria" é indestrutível e, infelizmente, nebulosa e inacessível " em-si-mesma". Existe nas "Coisas-com-Forma" que têm em si, no presente, na actualidade ("Acto"), um determinado rosto e uma certa configuração, mas que estão abertas à "Mudança" e às "Transformações", isto é, à Temporalidade e à possibilidade de serem "Outras-Coisas" ("Potência"), por meio da incorporação doutras "Formas" na sua materialidade própria.
Com Aristóteles desaparece a eternidade perfeita de um "Mundo de Arquétipos" pré-existente, substituido pelo poder das Leis Universais descobertas pela inteligência humana por "abstracção" e "generalização".
A estas duas atitudes (Platónica e Aristotélica) deve juntar-se a ideologia "Atomista", esse materialismo antigo que vai de Leucipo e Demócrito até ao "De Rerum Natura" de Lucrécio, no qual o mundo é um conjunto de Átomos e de Vazio, infinita inter-penetração de elementos "simples", a que sabiamente presidem as Leis oriundas dum "Acaso" probabilístico, um perpétuo fazer-desfazer, que dá à Natureza um sentido de "realidade" e "precaridade", que abrirá portas ao Cepticismo Antigo e às Escolas de tipo "Ético", corporizadas nos Estóicos e Epicuristas.
O debate futuro em torno do problema da "Matéria" vem, em parte, destas posições e das combinações que entre elas se podem fazer.
A Revolução Científica do século XVII, articula duma forma singular as perspectivas atomistas, o espírito aristotélico e o "Realismo Intuitivo" do "Mundo dos Arquétipos" de Platão.
Admitamos que a linha mais "dura" das Ciências Físico-Matemáticas, está mais do lado duma síntese do "Atomismo" ( quanto à natureza da Matéria) e do "Empirismo sensitivo" de Aristóteles, do que do lado de Platão. Mas se pensarmos que esta posição se socorre de formalismos Geométricos e Matemáticos, que não "decorrem" de qualquer experiência indutiva, mas duma Intuição de axiomas auto-evidentes, então redescobrimos uma nova versão do "Mundo das Ideias" de Platão, sob a epiderme mutante duma Natureza aristotélico-atomista.
É exactamente aqui, neste local de "convergência paradoxal", que se ergue a obra e o pensamento de Newton, tornado o paradigma por excelência da Ciência e da Racionalidade dominante nos séculos XVIII e XIX, onde triunfam epistemologicamente as concepções "Iluministas" e "Positivistas".
As perspectivas neo-atomistas da "Matéria" encaminham-se para a ideia duma "simplicidade final" e irredutível do Mundo, tudo parecia "funcionar" bem e adaptar-se a este modelo, consentindo até algumas posições extremadas de optimismo arrogante quando, nos finais do século passado, alguns Físicos se lamentavam da "vida triste" que aguardaria os seus "futuros" colegas, pois o segredo do Mundo estava revelado para todo o sempre!
Mas a verdade é que, "sob o atomismo", uma "bomba" se escondia, abrindo portas ao renascimento das contradições e paradoxos que atravessam o pensamento científico do século XX.
A aparente "simplicidade" do Atomismo desdobrava-se numa incomensurável região "intra-atómica", onde "partículas elementares" emergem de todo o lado, fazendo reaparecer o "Reino do Múltiplo" no exacto território onde pareceria ter-se estabelecido para sempre o "Triunfo do Uno"!
A "trindade" electrão-protão-neutrão esvai-se num panteísmo infindável de novas "entidades", fazendo surgir a ameaça dum "Caos" fervilhante, onde antes um "Cosmos" parecia garantido para sempre.
Vive-se actualmente, quanto ao conceito de "Matéria", com a dualidade "corpúsculo-onda", pois a experiência ensina-nos que uma "partícula elementar" não possui uma "configuração" globalmemte bem delimitada no "Espaço-Tempo", apresentando-se com dupla face em função da manipulação experimental que sobre "ela" façamos.
Não se entenda esta "Indeterminação" como um mal, mas simplesmente como um facto paradoxal, experimentalmente demonstrado durante o século XX.
O debate aberto sobre o "Indeterminismo Quântico" remonta aos "anos 20/30", onde se salienta a posição de Albert Einstein, que jamais aceitou a "efectiva realidade" desse Indeterminismo, explicando-o como um "facto provisório", uma vez que existiriam "variáveis escondidas", que acabariam por clarificar esse paradoxo, uma vez detectadas através de meios teóricos e experimentais.
Einstein é um "filho" de Newton e, como tal, sustenta que há um "Absoluto" nas Leis da Natureza, não só porque "(...)o bom Deus não joga aos dados(...)", mas porque há um equívoco na opinião pública ácerca da expressão "Teoria da Relatividade". Tal Teoria, desenvolvida por Einstein entre 1905 ( "Relatividade Restrita" ) e 1915/20 ( "Relatividade Geral"), não é "Relativista" no sentido filosófico e epistemológico do termo, mas sim, pelo contrário, "Absolutista". A sua designação decorre duma espécie de homenagem a Galileu e ao seu "Princípio da Relatividade", um dos dois postulados fundamentais da "Teoria da Relatividade Restrita". É curioso saber que, por vontade de Einstein, a sua "Teoria" deveria designar-se por "Teoria do Absoluto"...
Os verdadeiros "relativistas", no sentido filosófico-matemático do termo, são os defensores da "Física/Mecânica Quântica", que assume uma Indeterminação de fundo na constituição íntima da "Matéria", que não resulta de qualquer "atraso" da Ciência, mas duma "propriedade essencial" do universo em que vivemos.
Apesar do debate continuar em aberto até hoje, é interessante salientar que, até à data, não puderam ser desmentidas as teses sustentadas pelo "Indeterminismo Quântico".
Nunca, como durante o século XX, se avançou tanto no conhecimento da "Matéria" e dos seus "constituintes". Os dados adquiridos levam-nos a romper o ciclo "presente e local" em direcção a um alargamento cósmico das questões levantadas sobre a natureza "atomista" da "Matéria".
Na verdade, nenhuma das moléculas e átomos que a "compõe" é, se assim se pode dizer, "deste Mundo"! A origem dos átomos leva-nos necessariamente para fora da Terra, em direcção às Estrelas, único local de "síntese" atómica actualmente conhecido. É no seu interior caótico e fervilhante que se preparam, durante séculos de séculos, os ingredientes que, um dia, fabricarão planetas, oceanos, algas, répteis, aves, a infinita diversidade da Vida.
Porém, um Enigma se resolve e outro irrompe, lançando-nos para o verdadeiro "princípio de Tudo". Sendo as Estrelas compostas fundamentalmente por Hidrogénio e Hélio, os 2 elementos mais simples e abundantes da cadeia atómica, a verdade é que não os produzem!
Assim sendo, a origem destes dois tipos de átomos transporta-nos para a antecâmara das origens do universo, em direcção ao instante em que se sintetizaram as "partículas elementares" (electrões, protões, neutrões, entre outras), a partir dum incomensurável "local" de instabilidade térmica, espécie de "barreira luminosa", que pouco mais nos permite que a construção de modelos físico-matemáticos compatíveis com uma razoável racionalidade, viabilizada em parte pela "prática" insólita dos grandes "aceleradores de partículas", onde se tenta recriar a fronteira para além da qual a nossa ignorância é quase total.
Os actuais modelos cosmológicos, apoiados na "Teoria do «Big-Bang»", dizem-nos que há 15 biliões de anos, do "Vazio Quântico", emergiu o "contínuo Espaço-Tempo", em condições de natureza explosiva-dispersiva, caos térmico, no interior do qual todos os dados se jogaram nos primeiros três minutos.
Isto ouvem as nossas pobres almas e, no limiar do espanto, reencontramos o mistério do Mundo e de nós próprios. A viagem do Pensamento ainda mal começou. Pode ser que, lá longe, o "Feiticeiro de Oz", nos consinta percorrer, com alegria, esta "Yellow brick Road"!
Porto, Março de 1988
(Levi António Malho)