" Acordo. Que disseram os outros? Aurora que, cada manhã, reconstróis o mundo; integral nos braços nús que conténs o universo; juventude, aurora do homem. Que me importa o que os outros disseram, o que pensaram, o que acreditaram. Sou Febo del Poggio, um bobo. Os que falam de mim dizem que sou pobre de espírito; talvez nem tenha espírito. Existo como um fruto, como um copo de vinho, como uma árvore. Quando vem o Inverno, as pessoas afastam-se da árvore que não dá sombra; comido o fruto, deitam fora o caroço; vazio o copo, vão buscar outro. Eu aceito. Verão, água lustral da manhã sobre membros ágeis; ó alegria, orvalho do coração. . .
     Acordo. Tenho diante, atrás de mim, a noite eterna. Eu dormi milhões de idades; milhões de idades eu vou dormir. . . Só tenho uma hora. Havia de estragá-la com explicações e com máximas? Estendo-me ao Sol, sobre o travesseiro do prazer, numa manhã que não voltará mais. "

 

 

MARGUERITE YOURCENAR, " Febo del Poggio "






1 - A ALEGRIA DE OLHAR

 

 

Quando, em 1642, Galileu morre, com 78 anos, apesar da condenação que pesava sobre o grande tratado " Diálogo sobre os dois Grandes Sistemas do Mundo ", os seus trabalhos não entraram num longo interregno de apagamento e silêncio, como seria usual esperar por comparação com casos semelhantes, designadamente Giordano Bruno, cuja vida e obra foram devoradas durante séculos nas cinzas da fogueira acesa no "Campo das Flores", em Roma, quando se anunciava a Primavera do ano da graça de 1600.
     Após a sentença que o obrigou a abjurar das convicções copernicianas e lhe ter sido confiscada a obra em que se confrontavam as teses cosmológicas de " antigos " e " modernos " , Galileu, com quase 70 anos, ainda tem lucidez para publicar a Ciência da Dinâmica, mantendo prestígio e amigos, alimentando até ao fim a capacidade de provocar afectos excessivos, flutuando entre o rancor e a admiração, numa biografia pessoal e científica que marcou a alvorada da Ciência Moderna. Não nos devemos espantar, portanto, que após a sua morte, os amigos pretendam erguer-lhe de imediato um monumento e que o livro proibido em 1633, circule clandestinamente na Europa culta, dois anos depois do decreto que o pretendia banir da face da Terra.
     Esta trajectória de controvérsia e paixão, que acompanhou toda a sua vida e se mantém na tona da história há quase quatrocentos anos, tem dado origem a um dos mais estimulantes debates que atravessaram as ideias filosóficas e científicas, isto é, a conhecida polémica da Razão e da Fé! Galileu tem sido esgrimido pelas partes em polémica com uma paradoxal virulência, oscilando entre uma angélica inocência e um heterónimo sulfuroso de Belzebú em pessoa. . .
     O que acontece é que estes estereótipos radicais não dão uma justa ponderação aos factos pois, apoiando-se em pormenores autênticos, esquecem deliberadamente outras dimensões tão reais como essas, susceptíveis de serem esgrimidas em sentido contrário. Portanto, nem mártir nem santo, mas homem complexo, temperamental, habitado por um extraordinário " daimon " que leva à coexistência das grandezas e misérias que, às vezes, devastam certas vidas!
     O seu primeiro livro, "O Mensageiro das Estrelas", vem a público quando Galileu tem 46 anos, numa altura em que o essencial da sua personalidade está formada, os projectos se encontram numa fase avançada, as grandes intuições tomam forma. E se bem que a validade duma obra não deva ser julgada pelo quotidiano de quem a fez, assim como a veracidade duma lei científica não impede que o seu autor seja assaltante de caminhos, nada impede que relacionemos Galileu com o seu tempo, deixando ao leitor o critério da ponderação destes elementos.
     Filho de Vincenzo Galilei, homem culto originário da baixa nobreza empobrecida, Galileu Galilei nasce em Pisa, em 1564, numa família com vagos investimentos comerciais, bem diferente da desvairada e louca constelação de afectos do seu admirador e contemporâneo, J. Kepler.   Sobre o pai de Galileu, afirma Arthur Koestler: " (...) foi um homem de notável cultura, com consideráveis sucessos como escritor e compositor de música, um desprezo pela autoridade e tendências radicais. Escreveu, por exemplo, (num estudo sobre o contraponto) : «Parece-me que aqueles que tentam provar uma afirmação confiando simplesmente no peso da autoridade, agem muito absurdamente» . (...) ".
     Frequentou a escola jesuíta do Mosteiro de Vallombrosa, perto de Florença, mas acabou por voltar a casa, a fim de se dedicar a assuntos comerciais, como era desejo do pai. Diga-se que a Companhia de Jesus vai exercer uma forte influência no destino de Galileu, quer no sentido positivo, quer no negativo, pois guarda inúmeros amigos nesta ordem religiosa, cujo espírito aberto e disponível para os temas culturais e científicos manifesta uma das mais curiosas vertentes do movimento da Contra-Reforma. As dificuldades económicas crescentes da família levam-no a abandonar a Universidade de Pisa, para onde tinha entrado aos 17 anos, após lhe ter sido recusada uma bolsa para prosseguir os estudos.
     Este facto deve explicar-se mais pelo temperamento pessoal de Galileu, pela tendência polemista que tinha como alvo preferencial os professores de formação aristotélica, a quem devia fazer a vida num inferno, do que a qualquer falta de capacidades intelectuais pois, com 20 anos, já tinha inventado o "pulsilogium" e intuído as leis do pêndulo.
     Regressado a casa, mantém um espírito autodidacta e potencia as suas notáveis aptidões experimentais no campo da mecânica aplicada e na produção de instrumentos especializados, entre os quais uma balança hidrostática, que dá origem à publicação dum tratado que circula particularmente entre personalidades amadoras destas áreas. Não tarda a ser recomendado a Fernando de Médicis, Duque da Toscânia, através dos bons ofícios do Cardeal del Monte, e a ser nomeado Professor de Matemática em Pisa, na mesma Universidade que, há quatro anos, através de manobras mil, tinha julgado lançá-lo para o anonimato eterno!
     Com 25 anos, Galileu entra pela porta grande do meio universitário, sob patrocínio real e em 1592, com 28 anos, é promovido a "titular" da cadeira de Matemática em Pádua, onde se manterá durante quase vinte anos. Podemos facilmente imaginar a alegria dos seus colegas docentes ao verem a fulgurante carreira de Galileu, ainda por cima sob os auspícios e o alto patrocínio de cardeais e príncipes. Galileu tem uma particular sensibilidade para ponderar a correlação de forças e não deixará de utilizar estes factores favoráveis para alguns ajustes de contas, que pacientemente irão alimentar o caldeirão de sentimentos em que a sua vida se move.
     Este longo período em Pádua é o mais fértil da sua existência, do ponto de vista da estruturação das descobertas e princípios que, a partir de 1610 e da publicação do "Mensageiro das Estrelas", irão dar origem a uma sucessão de obras-chave para a Ciência Moderna. Enquanto isto não acontece, o seu prestígio aumenta, os negócios correm razoavelmente, pois mantém uma oficina de produção de equipamentos sofisticados e começa a ser conhecido além-fronteiras, se atendermos a que Kepler se dá ao trabalho de lhe oferecer uma cópia do seu "Mistério Cosmográfico", vindo a público em 1597.
     Apesar de sabermos das suas convicções íntimas em defesa de Copérnico, nesta altura, nas suas aulas, continuava prudentemente a não sustentar essa posição, preferindo divulgar as ideias astronómicas e cosmológicas aristotélico-ptolomeicas. É isso que se expressa numa carta de Agosto de 1597, dirigida a Kepler, em agradecimento ao livro que este lhe enviou: " (...) Resta-me acrescentar que lerei o seu livro com tranquilidade, certo de nele encontrar as mais admiráveis coisas, e farei isso com a maior alegria já que adoptei a mensagem de Copérnico há muitos anos, e o seu ponto de vista permite-me explicar muitos fenómenos da natureza que certamente ficariam inexplicáveis, de acordo com as hipóteses mais correntes. Escrevi muitos argumentos a favor dele e em refutação da perspectiva oposta --- que, todavia, até agora não me atrevi a trazer a público, assustado pelo próprio destino de Copérnico, nosso professor que, apesar de ter adquirido fama imortal junto de alguns, é ainda para uma multidão infinita de outros ( pois tal é o número dos loucos ), objecto ridículo e desprezível. Certamente, atrever-me-ia a publicar de imediato as minhas reflexões se existissem mais pessoas iguais a si; como não há, suster-me-ei de tal fazer. (...) ".
     Este receio de Galileu não tem ainda suficiente justificação pois, por enquanto, a Igreja católica, designadamente a sua hierarquia mais esclarecida, apoia e discute Copérnico, mantendo a política que tinha seguido ao estimular, durante longos anos, a publicação desse texto que será causa remota de tanta controvérsia.  O motivo fundamental da prudência de Galileu deve procurar-se mais do lado das reacções oriundas dos meios aristotélicos universitários, que aguardavam o mínimo deslize para desferirem ataques, do que dos círculos afectos à Igreja. " (...) Até ao ano fatal de 1616, a discussão do sistema de Copérnico era não só permitida, mas estimulada por eles --- sob a única limitação, que consistia em confiná-la à linguagem da ciência, e não tergivesar para assuntos teológicos. A situação foi claramente sintetizada numa carta do Cardeal Dini para Galileu, em 1615: «Pode escrever-se livremente enquanto nos mantivermos fora da Sacristia. ». (...) ".
     Nos próximos dez anos, até à altura da publicação do primeiro livro, Galileu continua as investigações de física, prossegue a docência e desenvolve o telescópio  que está na origem das extraordinárias observações relatadas nesse texto.
     Após a vinda a público do "Mensageiro das Estrelas" e da abundante argumentação de natureza experimental sobre os factos astronómicos, onde se destaca, sem dúvida, a descoberta dos quatro Satélites de Júpiter, as discussões vão aumentar de intensidade, pois não faltaram aqueles que negavam a existência dessas "monstruosidades" celestiais. Galileu está no seu terreno favorito, convencido da razão que lhe assiste e detendo uma vantagem estratégica face aos seus adversários, não perde nenhuma oportunidade para fazer vingar as suas teses e ajustar contas com um mundo académico que jamais o tinha aceite de boa vontade!
     Eram então levadas a efeito demonstrações da Luneta que abrilhantavam serões de convívio e debate sobre assuntos filosóficos e astronómicos. Era frequente que nenhum dos convidados conseguisse ver coisa alguma através de tão estranho "tubo", quer devido à falta de treino de observação, quer pelo facto da sua construção ser ainda relativamente rudimentar. Claro que havia sempre duas atitudes possíveis: a primeira, a daqueles que se consideravam "modernos" e de espírito aberto às novidades da Ciência, sempre haveriam de murmurar um comentário laudatório, mesmo que só tivessem visto umas vagas luzes nos céus; a segunda, situada no campo oposto, vociferava aos sete ventos o infame logro, atribuindo-o a motivos de ilusão de óptica e aberrações oriundas de tão ordinário instrumento!
     Foi o que aconteceu num convívio-demonstração que teve lugar em Bolonha, por fins de Abril de 1610, poucas semanas após a publicação do livro, onde ocorre o famoso episódio atribuido a Cremonini e Libri, professores de Filosofia em Pádua, que se recusaram a olhar pela Luneta, pois tal facto seria por si mesmo uma forma de admitir que "alguma coisa de novo" pudesse ser visto através dela...
     Ora, dado que uma das facetas do temperamento de Galileu o leva a entender que a vingança é um prato que se serve frio, não é de admirar que, aproveitando-se do facto da morte do Professor Libri, tenha feito constar a seguinte opinião: " (...) Libri não optou pela observação das minhas ninharias celestiais enquanto estava na Terra; talvez neste instante o faça, agora que foi para os Céus. (...) ".
     A controvérsia arrasta-se durante meses e o único apoio recebido vem-lhe de Kepler, com quem mantinha uma vaga correspondência que remontava a 1597 e que, na altura, era um matemático e astrónomo de grande prestígio. Publicou uma "carta aberta" em defesa de Galileu, intitulada "Conversa com o Mensageiro das Estrelas", na qual faz boa fé nas afirmações por todos contestadas e onde traça espantosos planos para o futuro, bem típicos da sua alma agitada e genialmente paradoxal. " (...) Não haverá falta de pioneiros humanos quando dominarmos a arte de voar. Quem teria pensado que a navegação através do vasto oceano era menos perigosa e mais calma do que nos apertados e ameaçadores golfos do Adriático, ou do Báltico, ou dos estreitos Britânicos ? Vamos criar navios e velas ajustados ao éter celestial, e haverá muitas pessoas sem medo das vastidões vazias. Entretanto, preparemos para os bravos viajantes dos céus, mapas dos corpos celestiais. Eu fá-lo-ei para a Lua e tu, Galileu, para Júpiter. (...) ".
     Aproveita também Kepler para, pouco depois, em Agosto de 1610, pedir a Galileu que lhe ceda uma luneta análoga à que este usou, de forma a que possa testemunhar de viva alma essas extraordinárias novidades, pelo que ficamos a saber que o seu depoimento na "carta aberta" não se apoia na observação, mas na convicção dos afectos, atitude bem pouco científica, no presente contexto. " (...) Despertaste em mim um grande desejo de ver o vosso instrumento de forma a que, finalmente, eu possa usufruir como tu do espectáculo dos céus. Pois entre os instrumentos aqui à nossa disposição, o melhor amplia só dez vezes (...) Não quero esconder que cartas de vários Italianos chegaram a Praga negando que esses planetas possam ser vistos através do teu telescópio. (...) ".
     Galileu aproveita para divulgar este providencial apoio, apesar de nunca enviar a Kepler a luneta que ele tanto desejava, com a desculpa de ter oferecido a melhor que possuia ao Grão-Duque da Toscânia e de, entretanto, estar a fabricar outras novas!
     Finalmente, por alturas de Setembro, Kepler recebe, emprestado por alguns dias, um telescópio pertencente ao Duque da Bavária que se encontrava de visita a Praga, conseguindo então testemunhar pessoalmente a veracidade das afirmações de Galileu. Também astrónomos Jesuítas, entre os quais o prestigiado Padre Clavius de Roma, confirmam os factos, assim contribuindo para o crescente triunfo de Galileu nos meios intelectuais italianos, reforçado depois pelas observações das fases de Vénus e de duas luas em Saturno.

 

 

2 - OS OVOS DOS BABILÓNIOS

 

 

     Galileu sente que os tempos lhe são favoráveis e a hora do triunfo público se aproxima. A convite dos Médicis, instala-se em Florença na qualidade de "Filósofo e Matemático Principal", é recebido em audiência pelo Papa Paulo V, eleito para a "Academia dos Linces"  e publicamente homenageado pelo poderoso Colégio Jesuíta de Roma.
     " (...) passou em Roma a Primavera seguinte  1611  . A visita foi um triunfo. O Cardeal del Monte escreveu numa carta: «Se ainda estivessemos a viver sob a antiga República Romana, creio firmemente que teria havido um obelisco erigido na capital em homenagem a Galileu.». A selecta «Academia dos Linces», presidida pelo Príncipe Federico Cesi, elegeu-o como seu membro e ofereceu-lhe um banquete; foi neste banquete que a palavra «telescópio» foi pela primeira vez aplicada à nova invenção. O Papa Paulo V recebeu-o em audiência amigável, e o Colégio Jesuíta de Roma honrou-o com várias cerimónias que duraram um dia inteiro. O astrónomo e matemático principal do Colégio, o venerável Padre Clavius, principal autor da reforma gregoriana do calendário, que de início se tinha rido do "Mensageiro das Estrelas", estava agora inteiramente convencido; assim acontecia com os outros astrónomos do Colégio, os Padres Grienberger, Van Maelcote e Lembo. Não só aceitaram as descobertas de Galileu, mas melhoraram as suas observações, particularmente sobre Saturno e as fases de Vénus. Quando o director do Colégio, Cardeal Belarmino, os interrogou sobre as suas opiniões oficiais a propósito das novas descobertas, eles unanimemente confirmaram-nas.(...)".
     Até 1623, altura em que o Cardeal Barberini é eleito Papa, sob o nome de Urbano VIII, Galileu mantém uma actividade frenética e uma popularidade crescente, entremeada de polémicas, debates com os aristotélicos, bem como dos primeiros problemas com a Inquisição que terminam com o Decreto de 1616, que resultou duma denúncia feita pelos Dominicanos do Convento de S. Marcos.
     Nesse decreto o nome de Galileu nunca é mencionado,  certamente devido à interferência favorável dos seus inúmeros admiradores situados nos mais altos escalões da hierarquia eclesiástica, sendo a principal vítima o pobre Copérnico, cuja imediata prisão foi sugerida pelo Bispo de Fiesole, que bem espantado ficou ao ser informado que o relapso astrónomo tinha cometido a inconveniência de morrer há quase setenta anos! !
     O episódio que está subjacente a este incidente, conta-se em poucas palavras. Houve um jantar na Corte dos Médicis onde, para além de inúmeras personalidades, estava presente a mãe do Grão-Duque, Cristina de Lorraine, que era conhecida pelo seu temperamento fogoso, teimosia e gosto pela oratória. Presentes também vários professores, entre os quais o Padre Castelli, matemático em Pisa e o Doutor Boscaglia, mestre de Filosofia. Foram estes os interlocutores duma conversa de salão liderada pela Grã-Duquesa Cristina, desejosa de investigar a fundo o estranho caso dos "Planetas Mediceus", a fim de saber se eram algo de real ou uma obscura burla visando fins
inconfessáveis. . .
     Acalmada a Duquesa com as considerações dos Professores Castelli e Boscaglia, favoráveis à realidade desses astros, mesmo assim parece que o Doutor Boscaglia teria deixado cair alguns comentários venenosos ao ouvido dessa singular senhora, sugerindo que apesar dos Satélites lá deverem andar pelos céus, certo seria que grossa asneira era sustentar que a Terra se movia em torno do Sol, contra o que constava das Santas Escrituras.
     Galileu, que não estava presente no jantar, sabe das novidades por uma carta de Castelli. " (...) em primeiro lugar deve saber que, enquanto estávamos à mesa, o Doutor Boscaglia teve a atenção de Madame por algum tempo; e, concedendo como verdadeiras todas as novas coisas que descobriu nos céus, disse que só o movimento da Terra tinha em si algo de inacreditável, e não podia ter lugar, em particular porque a Santa Escritura era obviamente contrária a esta perspectiva. (...) ".
     Ciente do seu prestígio e com contas por ajustar face à turbamulta que contra ele conspirava na sombra, resolve contra-atacar na forma duma carta-aberta, primeiro dirigida a Castelli e, mais tarde, numa versão final intitulada "Carta à Grã-Duquesa Cristina". É esta carta que motiva a denúncia ao Santo Ofício, feita pelos Dominicanos de Florença. A 7 de Fevereiro de 1615, o Padre Lorini faz chegar ao Cardeal Sfondrati a seguinte queixa: " (...) Todos os nossos Padres deste devoto convento de S. Marcos são de opinião que a carta contém muitas proposições que parecem ser suspeitas ou presunçosas, como quando afirma que a linguagem da Santa Escritura não significa o que parece significar; que em discussões sobre fenómenos naturais, o último e mais baixo lugar deve ser dado à autoridade do texto sagrado; que os seus comentadores erraram muito frequentemente na sua interpretação; que as Santas Escrituras não devem ser associadas com nada, excepto com assuntos de religião. (...) que falam em termos desdenhosos dos antigos Padres e de S. Tomás de Aquino; que estavam a espezinhar toda a filosofia de Aristóteles que tem sido de tão grande importância para a Teologia escolástica; (...) quando, digo, me tornei consciente de tudo isto, decidi dar conhecimento a Vossa Senhoria do estado das coisas, de forma a que o Senhor, no seu Santo zelo pela Fé possa, em conjunto com os seus muito ilustres colegas, providenciar soluções, conforme pareça aconselhável. Eu, que entendo que aqueles que se auto-proclamam Galileicos são todos homens tranquilos e bons Cristãos, mas um pouco arrogantes e presunçosos nas suas opiniões, declaro que não sou movido por nada neste assunto, a não ser por zelo da sagrada causa. (...) ".
     A "Carta à Grã-Duquesa Cristina" manifesta o brilhante estilo literário de Galileu, a sua vertente irónica, argumentativa e polemista, defendendo os postulados do "saber Moderno", ao mesmo tempo que entra no terreno perigoso do confronto da Ciência com a Bíblia, afirmando que esta não deve ser interpretada literalmente e que, antes de se condenar uma proposição da física, deve-se demonstrar que não está rigorosamente fundamentada, tarefa que cabe àqueles que entendem serem essas afirmações falsas. Isto é, numa manobra táctica de grande sagacidade, transporta o "ónus da prova" não para quem afirma, mas para quem nega!
     " (...) Há alguns anos, como Vossa Serena Alteza sabe, descobri nos céus muitas coisas que não tinham sido vistas antes da nossa época. A novidade dessas coisas, assim como algumas consequências que delas se seguiram, contrariaram noções físicas usualmente aceites entre filósofos académicos e atiçaram contra mim um não pequeno número de professores --- como se eu tivesse colocado nos céus essas coisas com as minhas próprias mãos, a fim de aborrecer a natureza e derrubar as ciências.
     Manifestando um apreço maior pelas suas próprias opiniões que pela verdade, pensaram negar e desaprovar as novas coisas que, se cuidassem de observar por eles mesmos, os próprios sentidos lhes teriam demonstrado. Para tal fim divulgaram várias acusações e publicaram numerosos escritos cheios de vãos argumentos, e cometeram o grave erro de os misturarem com passagens tiradas de locais da Bíblia que não conseguiram compreender apropriadamente. (...) Não só contradições e proposições distantes da verdade podem aparecer na Bíblia, mas também graves heresias e loucuras. Porventura seria necessário atribuir a Deus pés, mãos e olhos, assim como outros afectos corpóreos e humanos, como a ira, o arrependimento, o ódio, e até por vezes o esquecimento das coisas passadas e a ignorância das futuras. Por essa razão, parece que nada de físico que os sentidos e a experiência apresentem diante dos nossos olhos ou que demonstrações necessárias nos provem, deve ser posto em questão (muito menos condenado) a partir do testemunho de passagens bíblicas que podem ter diferentes sentidos por trás das palavras. (...) Se conclusões físicas verdadeiramente demonstradas não precisam de ser subordinadas a passagens bíblicas, (...) então, antes que uma proposição física seja condenada, deve ser provado que não está rigorosamente demonstrada --- e isso deve ser feito não por aqueles que sustentam ser verdadeira a proposição, mas por aqueles que a julgam falsa. Isto parece muito razoável e natural, pois aqueles que entendem que um argumento é falso podem muito mais facilmente nele encontrar falácias que os homens que o consideram como verdadeiro e conclusivo. (...) ".
     Apesar de Galileu ter saído incólume e aparentemente triunfante deste primeiro embate com a Inquisição, a verdade é que tinha entrado numa área de debate onde os seus adversários o pretendiam colocar, empurrando-o para uma escorregadia disputa teológica, a prazo responsável por um processo que manifestamente desagradou a significativos sectores da hierarquia da Igreja que muito o admiravam.
     Entre 1616 e 1623, altura em que chega ao papado Urbano VIII, Galileu trabalha com um objectivo determinado, no sentido de provar a veracidade do sistema coperniciano e a sua superioridade teórica e prática face ao modelo de Ptolomeu. Tal prova apoiar-se-ia numa "teoria das marés" e seria um argumento objectivo que visava demonstrar o movimento da Terra,  quer em torno do seu eixo, quer em torno do Sol, assim garantindo a consistência do heliocentrismo de Copérnico.
     Apoiava-se na ideia segundo a qual, durante a noite, a combinação dos movimentos de rotação e translacção levaria a que a "terra firme" se movesse mais rapidamente que durante o dia. À noite, as duas velocidades (rotação e translacção) "somar-se-iam", pois tinham o mesmo sentido, enquanto que, de dia, "subtrair-se-iam", dado terem sentidos diferentes.
     Resultado: à noite, a água do mar ficava "para trás", explicando-se a maré-baixa e, de dia, avançava a água face à terra, resultando na maré-alta. Ideia engenhosa, mas falsa que, para além do mais, não explicava o motivo que levava à existência de duas marés cheias diárias e destas variarem na hora em que atingem a sua máxima plenitude!
     Galileu, consciente desta questão, explicava a segunda maré-cheia por causas secundárias, desvalorizando-a no conjunto da teoria, com a argúcia que lhe é usual. A incongruência desta linha de pensamento em alguém que é o grande teorizador das Leis do movimento é um facto que nos deixa perplexos, e só pode entender-se no contexto duma militância coperniciana que, por vezes, lhe tolda a lucidez necessária. E talvez também por uma desvalorização dos seus adversários a quem, com algum excessivo auto-convencimento, trata como se fossem sócios permanentes duma confraria de imbecis. . .
     Nesta ordem de ideias, é muito certeiro o comentário de Arthur Koestler: " (...) a falácia do argumento reside no seguinte. O movimento só pode ser definido relativamente a algum ponto de referência. Se o movimento é referido ao eixo da Terra, então, qualquer parte da sua superfície, terra ou água, move-se dia e noite com velocidade uniforme, e não haveriam marés. Se o movimento é referido às estrelas fixas, então encontraremos as modificações periódicas do diagrama, que são as mesmas para a terra e o mar, e não podem produzir diferença de «momento» entre a terra e o mar. Uma diferença no «momento» , que provoque um «avanço do mar» só poderia acontecer se a Terra recebesse um impacto duma força externa --- digamos, colidindo com outro corpo. Mas quer a rotação da Terra, quer a sua revolução anual são inerciais, isto é, auto-perpetuam-se e, desta forma, produzem idêntico «momento» no mar e na terra; e uma combinação dos dois movimentos continua a resultar no mesmo «momento». A falácia do raciocínio de Galileu consiste em ele referenciar o movimento do mar ao eixo da Terra e o movimento da Terra às estrelas fixas. (...) ".
     Nos anos subsequentes, Galileu não abandonou esta demonstração viciada e continuou a atribuir-lhe uma importância estratégica decisiva, de tal forma que o seu famoso "Diálogo" esteve para chamar-se "Diálogo sobre o Fluxo e Refluxo das Marés" !
     Mas antes da publicação desta obra, em preparação desde há longo tempo, vem a público, em 1623, "O Experimentador" ("Il Saggiatore"). É um ano de percas e ganhos, do ponto de vista da correlação de forças favoráveis e desfavoráveis. Do lado negativo, a morte de Cosme II e do Cardeal Belarmino, lider espiritual dos Jesuítas; do lado positivo, a substituição de Paulo V por Urbano VIII, a quem Galileu dedica o seu novo e polémico texto.
     "O Experimentador" foi, em última estância, resposta a uma conferência publicada pelo Jesuíta Padre Horatio Grassi, sobre a natureza dos cometas, onde eram ditas coisas bem acertadas, mas na qual nunca era citado o nome de Galileu. Este prepara de imediato uma apropriada retaliação, presente no "Discurso sobre os Cometas", formalmente da autoria de Mario Guiducci, um antigo aluno, por trás de quem, na sombra, se sente a mão de Galileu.  O Padre Grassi,  ciente da origem do ataque, melifluamente responde ao livro de Guiducci com "Balanço Filosófico e Astronómico" (1619) onde, ignorando o autor formal do "Discurso sobre os Cometas", diz de Galileu o que Maomé não disse do toucinho!
     Desta feita, "O Experimentador" não perdoa, desfazendo com requintes de ironia e malvadez, tudo aquilo que Grassi sustentava sobre cometas, projécteis ou alternativas às teses de Copérnico, designadamente o modelo cosmológico de Tycho Brahe. É, aliás, a propósito da "teoria dos projécteis" que se cita uma magistral passagem, que referiremos sem mais comentários. O motivo da disputa radicava numa afirmação do Padre Grassi que sustentava que os projécteis eram submetidos, quando voavam, à fricção do ar, ficando a sua temperatura mais elevada. Para argumentar a favor desta tese, citou um Grego do séc.X, um tal Suidas, que dizia serem os Babilónios capazes de cozer ovos, fazendo-os rodar no ar muito rapidamente numa funda!
     Naturalmente, Galileu defendia exactamente o contrário. " (...) Se Sarsi deseja que acredite, de acordo com Suidas, que os Babilónios cozem os seus ovos fazendo-os girar em fundas, assim o farei; mas devo declarar que a causa deste efeito é muito diferente daquilo que sugere. Para descobrir a verdadeira causa, raciocino da forma que se segue: «Se não atingimos um resultado que outros efectivamente conseguem, então deve acontecer que nas nossas operações nos falta alguma coisa que produz tais resultados. E se só houver uma única coisa que nos falta, então essa coisa pode ser a verdadeira causa. Neste momento não nos faltam ovos, nem fundas, nem gente robusta para os fazer rodar no ar; todavia, os nossos ovos não ficam cozidos, mas simplesmente arrefecem ainda mais depressa se acontece que estejam quentes. E uma vez que nada nos falta a não ser sermos Babilónios, então, ser Babilónio, é a causa da cozedura dos ovos e não a fricção do ar. » (...) ".
      

 

3 - FORÇA DAS MARÉS

 

 

     Naturalmente, com tudo isto, as relações com os Jesuítas estão a atingir o seu ponto mais baixo e a instituição que o teve como antigo aluno e onde mantinha inúmeros admiradores, dificilmente esquecerá este vendaval oriundo duma inteligência agressiva e brilhante. Mais uma razão para Galileu receber com dupla alegria uma carta em que lhe é sugerido que o novo Papa gostaria de o receber pessoalmente. " (...) Juro-lhe que nada agrada mais a Sua Santidade que a menção do seu nome. Depois de falar a seu respeito durante algum tempo, disse-lhe que você, Estimado senhor, tinha um ardente desejo de o visitar e de lhe beijar o pé, se Sua Santidade o permitisse, ao que o Papa respondeu que isso lhe daria grande prazer, se não fosse inconveniente para si. . . pois grandes homens como você devem poupar-se, a fim de que possam viver o maior tempo possível. (...) " .
     Em 1624, Galileu é recebido em sucessivas audiências por Urbano VIII, onde é carregado de elogios, presentes, medalhas, terminando com uma "carta de recomendação" que o deixa numa situação favorável perante as crescentes ameaças decorrentes de antigas e velhas polémicas. Parece ter sido no decurso desta convivência que Galileu obtém o consentimento para levar a bom termo o projecto do "Diálogo sobre os dois grandes Sistemas do Mundo", onde se poriam em confronto as duas teses cosmológicas e se sustentaria a defesa de Copérnico.
     Lembre-se que o seu pensamento e obra estavam em posição muito difícil desde a deliberação da Inquisição expressa no "Decreto de 1616", mas tudo leva a crer que entre o Papa e Galileu se tenha estabelecido um "acordo de cavalheiros", sendo-lhe permitido sustentar as teses de Copérnico, desde que estas fossem abordadas como uma "hipótese matemática" que interpreta certos factos, mas sem lhes dar um perfil de verdade indiscutível, pois a omnipotência de Deus pode ter subjacente ao mundo leis e princípios jamais acessíveis à mente humana!
     Diga-se que as relações entre estes dois homens têm muito de adulação mútua e gerarão equívocos entre personalidades tão singulares, que atingirão um ponto de conflito dentro de alguns anos. São, a este propósito, interessantes as observações de Arthur Koestler: " (...) Maffeo Barberini  Urbano VIII  era uma espécie de anacronismo: um Papa Renascentista transplantado para a época da Guerra dos Trinta Anos; um homem de letras que traduziu passagens da Bíblia para hexâmetros; cínico, arrogante, desejoso de poder secular. Conspirou com Gustavus Adolphus, o herético protestante, contra o Sacro Império Romano; e ao saber da morte de Richelieu, observou: «Se existir um Deus, o Cardeal Richelieu terá muito por que responder; se não existir, fez muitíssimo bem. ». Fortificou o Castelo de S. Angeli, e fundiu canhões a partir dos tectos de bronze do Panteão --- que deram origem ao epigrama: «O que os bárbaros não fizeram, Barberini fez. ». Fundou o «Gabinete da Propaganda» (para missionários), construiu o Palácio Barberini, e foi o primeiro Papa a consentir que um monumento a si próprio fosse erigido durante a vida. (...) A sua famosa declaração de que «sabia mais que os Cardeais todos juntos» só era igualada por Galileu ao dizer que, por si mesmo, tinha descoberto tudo o que há de novo no céu. (...) Em 1620, tinha escrito uma ode em honra de Galileu, intitulada «Adulatio Perniciosa» (...) Tinha ido ao ponto de prestar homenagem à memória de Copérnico --- numa audiência com o Cardeal Hohenzollern em 1634, após ter-se tornado Papa --- e acrescentou a observação que «a Igreja nem condenou, nem nunca condenará a sua doutrina como herética, mas somente como negligente» . (...) .
     Sentindo-se apoiado ao mais alto nível, Galileu dedica-se afanosamente ao trabalho, que fica concluído em Janeiro de 1630, um pouco antes de completar 66 anos. São inúmeras as peripécias subjacentes à autorização de publicação, o indispensável "Imprimatur", a que todas as obras estavam sujeitas.
     Os trabalhos tipográficos deviam ocorrer em Roma e, na Primavera de 1630, é novamente recebido pelo Papa, que lhe confirma não haver problemas em abordar Copérnico, desde que a argumentação se mantenha num plano estritamente hipotético, coisa de Filósofos e Astrónomos, tratada com a devida elevação!
     A obra passa para as mãos do Censor Principal, o Padre Niccolo Riccardi, a quem o Rei de Espanha chamava "Padre Monstro" devido à sua enorme barriga. . . Era um homem que guardava afecto por Galileu, ainda que, no fundo do coração, achasse que essas disputas cosmológicas eram coisa de loucos que não tinham mais que fazer, arrumando na mesma prateleira Aristóteles, Ptolomeu e Copérnico, confraria nebulosa cuja cegueira metafísica os impedia de ver que " (...) a derradeira verdade era que as estrelas são movidas por anjos. (...) ".
     Leu o livro e achou que lá havia estranhos e bizarros argumentos. Apesar de consciente dos beneplácitos papais, tudo aquilo lhe parecia uma tortuosa e obstinada defesa de Copérnico. Para se defender, resolveu pedir parecer ao seu assistente, Padre Visconti, insistindo em que passasse a obra a pente fino e se fizessem alterações, de forma a cumprir-se o disposto no "Decreto de 1616". Por sua vez, o Padre Visconti deve ter-se apercebido do grande imbróglio em que estava metido e, fazendo uma ou outra nota de menor importância, devolve, qual objecto pestífero, o livro à procedência!
     O Padre Riccardi decide então meter mãos à tarefa e pede uma prorrogação do prazo para análise do texto, mas começa a ser pressionado por Galileu e os amigos, alegando a urgência da publicação. A partir deste momento e até Fevereiro de 1632 , altura em que estão prontas as primeiras cópias impressas do "Diálogo", os factos são uma magistral operação de prestidigitação.
     Diz Arthur Koestler: " (...) O resultado desta pressão foi que Riccardi consentiu num estranho acordo: para poupar tempo, concedeu provisoriamente o " Imprimatur " ao livro, na condição de que ele próprio faria a revisão, passando depois cada página revista ao tipógrafo. Devia ser assistido nesta tarefa pelo universalmente respeitado Príncipe Cesi, Presidente da Academia dos Linces.
     Mal este acordo foi concluído, Galileu regressou a Florença para escapar ao calor de Roma, na convicção de que regressaria no Outono. Pouco depois da sua partida, o Príncipe Cesi morreu. Algumas semanas mais tarde, irrompeu a peste, e uma estreita quarentena tornou difíceis as comunicações entre Roma e Florença. Isto providenciou uma óptima oportunidade para Galileu baralhar as condições sob as quais tinha sido concedido o "Imprimatur": pediu que o livro fosse impresso em Florença, fora do controlo de Riccardi. (...) A princípio Riccardi recusou permitir a impressão do livro em Florença sem o rever; pediu que Galileu lhe enviasse, para tal fim, o manuscrito até Roma. Galileu respondeu que os regulamentos da quarentena tornavam impossível o envio em segurança do manuscrito, e insistiu para que a revisão final fosse feita por um censor Florentino. Referiu o apoio do Grão-Duque (a quem Riccardi, como Florentino, devia obediência) . O Embaixador da Toscânia, Niccolini e o Secretário do Papa, Ciampoli, também insistiram na pressão. O Padre " Monstro " era um convidado permanente em casa de Niccolini; finalmente, foi a sua bela prima Catarina que o fez ceder, à mesa de jantar e após uma garrafa de Chianti. Concordou que o trabalho fosse impresso e revisto em Florença, excepto no prefácio e parágrafos conclusivos, que lhe deviam ser submetidos.
     A revisão era para ser feita pelo Inquisidor Florentino, Padre Clemente Egidii. Mas isto não era do agrado de Galileu, que propõe o Padre Stefani em vez de Egidii. Riccardi concordou uma vez mais. Evidentemente, o Padre Stefani estava inteiramente sob a influência de Galileu, uma vez que «foi às lágrimas» durante muitas passagens do livro, devido à sua «humildade e reverente obediência». Stefani fez poucas correcções, para salvar as aparências, e a impressão começou em 1631. (...) ".
     Esta esclarecedora passagem revela que, no fundo, o livro escapou às malhas da Inquisição, apesar de, formalmente, se terem cumprido os requesitos legais!
     Como se sabe, o texto desenvolve-se em forma dum diálogo que dura quatro dias, entre três personagens, Salviati,  Sagredo  e Simplicius, tendo como tema central, como o próprio título explicita, um debate em torno dos dois grandes Sistemas do Mundo, o Ptolomeico e o Coperniciano. Salviati é o "duplo" de Galileu e Sagredo aparece como o bom interlocutor, aquele que levanta dúvidas sensatas, mas que responde positivamente aos argumentos de Salviati. Quanto a Simplicius, está-lhe reservado o papel de defensor das concepções clássicas e é sucessivamente ultrapassado pela brilhante mente de Salviati que, uma a uma, desmonta as suas teses, para maior honra e glória de Copérnico. O primeiro e segundo dias são dedicados à refutação de Aristóteles, na generalidade e na especialidade, respectivamente. O terceiro e quarto dias vivem do debate de Copérnico e, fundamentalmente, duma prova empírica da sua validade, a famosa "Teoria das Marés", guardada como arma final, para fechar o quarto dia e derrotar os derradeiros alentos do pobre Simplicius.
     Apesar da argumentação brilhante e correcta de Salviati, particularmente nas concepções da relatividade do movimento, é verdade que Kepler continua a ser ignorado e a "teoria das Marés" mantém-se inconsistente como prova do movimento da Terra em torno do Sol.
     Aqui reside o ponto central da questão que vai desencadear um vendaval! Não só Galileu, sub-repticiamente, deixa de tratar o sistema de Copérnico como uma hipótese, pois dá-lhe uma "prova" (Teoria das Marés), torneando o acordo com Urbano VIII, como este se julga ver retratado, em parte, nas posições de Simplicius, cuja figura é uma espécie de antepassado do "Bei de Túnis", de que nos falava Eça de Queiroz. . .

 

 

  

4 - " VAE VICTIS "

 

 

     Em Agosto o livro é confiscado e Galileu convocado para se apresentar à Inquisição de Roma,   sendo nomeada uma Comissão para elaborar um relatório sobre o assunto, que faz uma listagem das prevaricações, mas não propõe nenhuma medida concreta. O primeiro interrogatório formal tem lugar a 12 de Abril de 1633 e, sem lhe ser revelada a acusação, melifluamente perguntam-lhe se sabe por que motivo ali se encontra. Galileu admite que tudo se deve relacionar com os seus "Diálogos" e, perante o decorrer da conversa, vai declarando que não era sua intenção defender Copérnico em termos absolutos. Perante esta evasiva, são nomeados três peritos, que fazem um 2º relatório de tonalidade muito perigosa para Galileu, insistindo detalhada e fundamentadamente nas linhas de acusação já referidas.
     Galileu, com quase setenta anos, sente-se vulnerável e abandonado! Já não são possíveis evasões retóricas ou habilidades palacianas. Os seus adversários estão ao mais alto nível do Poder e, desta feita, não lhe deixarão margem para recuar. Pretendem a confissão pública e completa. O seu objectivo não é matar, ou o pão e água duma enxovia sórdida, mas a humilhação pura e simples.
     Entre a primeira e segunda audiência, que tem lugar a 30 de Abril, há uma iniciativa privada dum Comissário da Inquisição, Frei Vicenzo da Firenzuola, que vai junto de Galileu, aconselhando-o a mudar de estratégia, para seu próprio bem. . .
     " (...) Finalmente, sugeri uma diligência, nomeadamente que a Santa Congregação me concedesse autorização para lidar com Galileu extra-judicialmente, de forma a torná-lo sensível do seu erro e a levá-lo, se ele o reconhecer, a uma confissão do mesmo. (...) Para que nenhum tempo fosse perdido, ontem à tarde entrei em contacto com Galileu, e após muitos e muitos argumentos e objecções terem sido trocados entre nós, pela graça de Deus, atingi o meu objectivo, pois trouxe-o à plena consciência do seu erro, de tal forma que ele claramente reconheceu que tinha errado e tinha ido longe de mais no seu livro. E de tudo isto deu testemunho com palavras muito sentidas, como alguém que experimenta uma grande consolação com o reconhecimento do seu erro, e estando também com vontade de o confessar judicialmente. Solicitou, contudo, um pouco de tempo de forma a ponderar o processo segundo o qual poderia mais adequadamente fazer a confissão que, no que diz respeito à sua substância, deve, espero eu, seguir-se da maneira indicada. (...) ".
     Na segunda audiência, Galileu lê a declaração entretanto redigida, temperando as palavras com a argúcia que lhe resta nestas difíceis circunstâncias, indo ao encontro das pressões dos Inquisidores. Aí admite que o seu livro pode ter ambiguidades que parecem contradizer as interdições à publicitação e defesa de Copérnico, mas não era a sua intenção, mas sim o contrário. Todo o clima é de alguém que está francamente assustado com o decurso dos acontecimentos e tem a sua margem de manobra reduzida ao mínimo.
     " (...) No decurso de alguns dias de contínua e atenta reflexão sobre os interrogatórios que me foram feitos no dia doze do presente mês, e particularmente se, há dezasseis anos, uma ordem me tinha sido dirigida por determinação do Santo Ofício, proibindo-me de sustentar, defender, ou ensinar por qualquer forma a opinião que tinha acabado de ser condenada --- do movimento da Terra e da estabilidade do Sol --- ocorreu-me reler o meu " Diálogo " já publicado, que há três anos não via, de forma a cuidadosamente verificar se, contrariamente à minha muito sincera intenção, teria, por inadvertência, saído da minha pena, alguma coisa sobre a qual o leitor, ou as autoridades, pudessem inferir não só algum vestígio de desobediência da minha parte, mas também outros pormenores que pudessem induzir a convicção que eu tinha desobedecido às ordens da Santa Igreja. (...) E devido a não o ter visto desde há muito tempo, apresentou-se-me, tal como estava, como um novo texto dum outro autor. Confesso livremente que em vários locais pareceu-me desenvolver-se de tal forma que um leitor ignorante da minha autêntica intenção, poderia ter razão para supôr que os argumentos aduzidos para o lado falso, e que era minha intenção refutar, eram expressos de forma a serem calculados, mais para recolher convicção pela força lógica do que pela facilidade de solução. (...) O meu erro foi --- e confesso-o --- de ambição desmedida e de pura ignorância e inadvertência. (...)".
     No final desse depoimento, Galileu sugere a possibilidade de acrescentar mais um ou dois dias aos "Diálogos" a fim de que a sua posição fique bem clara e todos se apercebam da bondade subjacente às suas explicações. Se este desejo era sincero ou mais um estratagema, nunca o saberemos. O Santo Ofício resolveu não dar seguimento a esta piedosa solicitação, pois quando a esmola é grande . . .
     " (...) E em confirmação da minha afirmação de que não mantive nem mantenho como verdadeira a opinião que foi condenada, do movimento da Terra e estabilidade do Sol --- se me forem concedidos, como desejo, tempo e meios para fazer uma demonstração mais clara, estou pronto a fazê-lo; e há uma oportunidade muito favorável para isso, dado que na obra já publicada os interlocutores concordam em encontrar-se de novo após algum tempo, para discutirem vários outros problemas da Natureza, não relacionados com o assunto debatido nos seus encontros.
     Como isto me dá oportunidade de acrescentar um ou dois dias, prometo retomar os argumentos já expostos em favor da dita opinião, que é falsa e foi condenada, e refutá-los da maneira mais eficiente que me seja concedida pela graça de Deus. Por conseguinte, peço a este anto Tribunal que me ajude nesta boa decisão e que me possibilite pô-la em prática....)
".
     Abatido e humilhado com este doloroso processo, Galileu, com setenta anos, apresenta a defesa numa audiência intercalar que tem lugar a 10 de Maio, apelando à magnanimidade do Tribunal, solicitando atenuantes decorrentes da sua particular situação pessoal. " (...) Por último, resta-me pedir-vos para levarem em consideração o meu triste estado de mal estar físico, ao qual, com 70 anos, fui reduzido por dez meses de constante ansiedade mental. (...) para além da perca de grande parte dos anos que esperava usufruir, tendo em atenção a minha anterior condição de saúde. Estou persuadido e encorajado a assim fazer, pela fé na clemência e bondade dos muito Eminentes Senhores, meus juízes. (...) ".
     Diga-se que a Inquisição não tinha usado com Galileu, para seu bem, dos aberrantes procedimentos que desencadeava para situações análogas. Mesmo nesta posição de elevado risco, Galileu é tratado com relativa consideração, pois " (...) não foi confinado às masmorras da Inquisição, mas permitem-lhe permanecer como convidado da Embaixada da Toscânia na Villa Médicis, até depois do seu primeiro interrogatório. Depois, teve de entregar-se formalmente à Inquisição, mas em vez de ser colocado numa cela, foi-lhe destinada uma zona com cinco quartos no próprio Santo Ofício, virada para S. Pedro e os jardins do Vaticano, com o seu criado pessoal (...) Aqui permaneceu de 12 de Abril até ao segundo interrogatório, em 10 de Maio. Então, antes que o seu julgamento terminasse, foi autorizado a regressar à Embaixada da Toscânia --- um procedimento muito invulgar, não só nos anais da Inquisição, mas de qualquer outro sistema judiciário. Contrariamente à lenda, Galileu nunca passou um dia de vida numa cela de prisão. (...) ".
     Os dados estão lançados. Após um terceiro interrogatório, poucos dias depois, em finais de Junho, é-lhe lida a sentença que " (...) estava assinada somente por sete dos dez juízes. Entre os três que se abstiveram estava o Cardeal Francesco Barberini, irmão de Urbano. O «Diálogo» foi proibido; Galileu devia abjurar a opinião Coperniciana e foi sentenciado a «prisão formal enquanto o Santo Ofício entendesse» ; e nos três anos seguintes, devia repetir uma vez por semana os sete salmos penitenciais. (...) ".
     Após fazer uma síntese do historial do processo, a sentença conclui, afirmando:
     "(...) Invocando (...) o muito Santo nome de Nosso Senhor Jesus Cristo e da Sua Gloriosa Mãe, sempre Virgem Maria (...) com o conselho e parecer dos Reverendos Mestres da Sagrada Teologia e Doutores de ambas as Leis, nossos assessores (...) Dizemos, pronunciamos, sentenciamos e declaramos que tu, o dito Galileu, em função dos assuntos aduzidos em julgamento e por ti confessados, chegaste ao julgamento deste Santo Ofício veementemente suspeito de heresia, nomeadamente, de ter sustentado e acreditado na doutrina --- que é falsa e contrária às sagradas e divinas Escrituras --- segundo a qual o Sol é o centro do mundo e não se move de Este para Oeste e a Terra se move e não é o centro do mundo; e que consequentemente incorreste em todas as censuras e penalidades impostas e promulgadas nos sagrados cânones e outras constituições, gerais e particulares, contra tais delinquências. Das quais entendemos que sejas absolvido, desde que, primeiro, com coração sincero e inabalável fé, abjures, maldigas e detestes diante de nós as ditas heresias e erros e qualquer outro erro e heresia contrária à Igreja Católica Apostólica Romana, na forma por nós prescrita.
     E, para que este teu grave e pernicioso erro e transgressão não fiquem impunes e para que sejas mais cauteloso no futuro e um exemplo para que outros se abstenham de delinquências similares,   determinamos que o livro «Diálogo de Galileu Galilei» seja proibido por édito público.
     Condenamos-te à prisão formal deste Santo Ofício durante o tempo que entendermos, e para fins de salutar penitência, determinamos que durante os três anos que se seguem, repitas uma vez por semana os sete salmos penitenciais.
     Reservamo-nos a liberdade de moderar, comutar, ou retirar, no todo ou em parte, as ditas punições e penitência. (...) ".
     Terminada a leitura da sentença, é apresentado a Galileu o documento de abjuração, que deve ser lido por ele próprio em tribunal, antes de se encerrar definitivamente o processo: " (...) Eu, Galileu, filho do falecido Vicenzo Galilei, Florentino, setenta anos de idade, arrolado pessoalmente diante deste tribunal e ajoelhando-me diante de vós, Muito Eminentes e Reverentes Senhores Cardeais Inquisidores-Gerais contra a desordem herética em toda a comunidade Cristã, tendo diante dos olhos e tocando com as minhas mãos as Sagradas Escrituras, juro que sempre acreditei em tudo que é defendido, pregado e ensinado pela Santa Igreja Católica e Apostólica. Mas, (...) após uma ordem me ter sido judicialmente dada por este Santo Ofício a fim de que abandonasse simultaneamente a falsa opinião de que o Sol é o centro do Mundo e inamovível e que a Terra não é o centro do mundo e se move e que não devo sustentar, defender ou ensinar por qualquer forma, verbalmente ou por escrito, a dita falsa opinião, e após ter sido notificado que a dita doutrina era contrária à Santa Escritura --- escrevi e imprimi um livro no qual discutia a nova doutrina já condenada e acrescentei argumentos de grande força lógica em seu favor, sem apresentar nenhuma solução para eles, sendo pronunciado pelo Santo Ofício por veementemente suspeito de heresia, isto é, de ter sustentado e acreditado que o Sol é o centro do mundo e inamovível e que a Terra não é o centro e move-se:
     Por isso, desejando remover dos espíritos de Vossas Eminências e de todos os fiéis cristãos esta veemente suspeita justamente orientada contra mim, com coração sincero e fé inamovível, eu abjuro, maldigo e detesto os ditos erros e heresias e em geral todo e qualquer outro erro, heresia e seita contrária à Santa Igreja, e juro que no futuro nunca mais direi ou afirmarei, verbalmente ou por escrito, nada que possa dar ocasião a uma similar suspeita relativamente a mim; mas, se souber de algum hereje ou pessoa suspeita de heresia, denunciá-la-ei a este Santo Ofício ou ao Inquisidor ou Ordinário do local em que me encontrar. Mais ainda, juro e prometo cumprir e observar na sua integridade todas as penas que forem, ou venham a ser, impostas contra mim por este Santo Ofício. E, no caso de contravenção ( que Deus o proiba! ) de qualquer destas minhas promessas e juramentos, submeto-me a todos os sofrimentos e punições impostas e promulgadas nos sagrados cânones e outras constituições, gerais e particulares, contra tais delinquentes. Assim o queira Deus e estas Santas Escrituras, que toco com as minhas mãos. (...) ".
     Concluído o ritual de humilhação, principal objectivo do Tribunal, fecha-se um dos mais tristes capítulos da história da intolerância humana, com sérias consequências para o desenvolvimento do pensamento científico e experimental, quer na península italiana, quer em toda a Europa onde impera o espírito de vistas curtas da Contra-Reforma, deslocando-se essas forças culturais para as regiões de dominância protestante, no norte e noroeste do Continente, como bem assinalou George Gusdorf.
     Quanto a Galileu, recebe ainda uma certa complacência nas punições que lhe são impostas, se atendermos que a " (...) prisão formal transformou-se numa estadia na «villa» do Grão-Duque em Trinita del Monte, seguida por uma outra estadia no Palácio do Arcebispo Piccolamini em Siena onde, de acordo com um visitante françês, Galileu trabalhava «num apartamento coberto de seda e muito ricamente mobilado» . Depois regressou à sua quinta em Arcetri e mais tarde à sua casa em Florença, onde passou o resto dos anos da sua vida. A oração dos salmos penitenciais foi delegada, por consentimento eclesiástico, na sua filha, Irmã Maria Celeste, uma freira Carmelita. (...)".
     Encerrado definitivamente o "dossier" cosmológico, aproveita os últimos anos para redigir um livro que o deixará famoso, os "Discursos e Demonstrações Matemáticas sobre as Duas Novas Ciências", concluído em 1636, no qual regressa à sua vocação magistral que sempre foi a Ciência da Dinâmica. " (...) Como não podia ter esperança quanto a um «Imprimatur» em Itália, o manuscrito foi sonegado para Leyden e publicado pelos Elzevirs;  mas também podia ter sido impresso em Viena, onde foi autorizado, provavelmente com consentimento Imperial, pelo Jesuíta Padre Paulus. (...) ".
     Apesar de ficar cego aos setenta e três anos, prossegue os estudos e é visitado por amigos e discípulos, transformando a sua casa num forum de diálogo e infinita curiosidade pelos segredos dum mundo que, para ele, lentamente se desvanece. É o que diz, numa carta a Diodati: " (...) o teu amigo e servidor, Galileu, ficou durante o último mês definitivamente cego; de tal forma que estes céus, esta terra, este universo que eu, por maravilhosas descobertas e claras demonstrações, alarguei cem mil vezes para além das convicções dos homens sábios dos tempos passados, daqui para diante comprime-se num espaço tão minúsculo como aquele que se enche com as minhas sensações corpóreas. (...) ".
     A larga caminhada termina em 1642, pois as leis do movimento por si descobertas têm uma singular aplicação na vida humana. " (...) Os seus ossos, contrariamente aos de Kepler, não foram espalhados pelo vento;  repousam no Panteão dos Florentinos, na Igreja de Santa Croce, junto aos restos mortais de Miguel Ângelo e Maquiavel. (...) ".
     Um homem vai, outro vem. Numa obscura aldeia inglesa,  na noite de Natal deste mesmo ano, nasce Newton. Copérnico, Bruno, Kepler, Galileu, estão vingados. Nada a fazer. "Eppur si muove".

PORTO, Dezembro de 1993