A FRONTEIRA DA LUA
--- Uma convicção cosmológica no Mundo Antigo.
"(...)Imaginemos um jardim, com centenas de árvores das mais variadas, milhares de flores das mais variadas, centenas de frutos, de ervas das mais variadas.Se se dá o caso de o jardineiro desse jardim não conhecer outra diferenciação botânica que não seja a de «comestível» e «erva daninha», então não saberá lidar com nove décimos do seu jardim, arrancará as flores mais encantadoras, abaterá as árvores mais nobres ou pelo menos há-de odiá-las e olhá-las de través.Assim age o Lobo das Estepes para com milhares de flores da sua alma.(...)"
HERMAN HESSE,"O Lobo das Estepes".
I - PARA ALÉM DAS NUVENS
A aspiração de crescer é uma tentação a que mil vezes os gregos escaparam. Habituados a espaços duma escala inteligível, que um olhar enquadrava, neles geriram o singular destino e estilo que foi o seu. Estados à escala de cidades, rodeados de objectos urbanos, instituições ou ideias, praças ou teatros, era aí que o caos do mundo se detinha, o sentido da cidadania e da política se confundiam.
Uma paixão nunca abandonada pela procura duma "ordem humana" que trouxesse um pouco da perfeição dos céus ao "perpetuum mobile" da História explica a minúcia, a quase obsessão com que desenharam os "mundos ideais", as cidades-como-devem-ser para que o pensamento se liberte e o filosofar, o governar, o criar deixem aberto o caminho superior da meditação e da contemplação. Esse almejado e prestigiado ócio, estrada real da liberdade.
Mas o tempo raramente cumpre os desejos daqueles que o prendem com laços e fitas e nenhuma cultura inventa os seus sonhos sem trilhar as sombras que o acaso ou o destino algures se comprazem em tecer. De Tales a Sócrates a filosofia descobre que a paixão da física celeste pode enredar-se nos assuntos da cidade, nas nuances sobre a "origem das ideias", a justeza das Leis, a retórica dos discursos.
Em Platão, o vigor da eterna batalha da Filosofia já não esconde alguma amargura e desencanto, um não-sei-quê se desprende das lutas de Sócrates com os interlocutores e a frescura das ideias e do filosofar dos fundadores pouco mais é que a perdida inocência dum tempo que foi mas já não é. Lentamente se abre uma era de desconfiança, de pálidas certezas, confrangedoras, mas tão admiravelmente humanas.
A Academia e o Liceu debatem-se com o presente e o passado e revelam mais dois "estilos" do que dois "mundos" incomunicantes. Nas suas salas ou jardins, na comunidade dos adeptos e aprendizes, nos seus livros, nas suas colecções, a Filosofia complicou-se e reconhece que entre os homens e o mundo há muito mais que o cristal incorruptível do pensamento.
Perca-se a Terra, solte-se o desencanto do "relativo", do "possível", do "talvez", do meio-termo, mas continua a persistir o intocável, o próximo-distante que é o reino dos Céus, essa máquina cósmica que nos cobre e protege, astros-deuses, desafiando-nos desde os inícios do tempo. Tudo muda, tudo se transforma, mas para além das nuvens e dos meteoros, nesse local-fronteira imediatamente acima da Lua, a regra que perdura vem dos séculos dos séculos e o seu segredo escapará ainda ao claro-escuro que doravante se entretecerá nos jogos da razão.
A partir duma certa altura todos são devedores dos Pitagóricos, no que à estrutura do Cosmos diz respeito. Após as hesitações da Escola de Mileto quanto à forma, localização e comportamento do insondável reino celestial, e se excluirmos a curiosíssima perspectiva de Anaximandro com a sua interpretação de natureza geométrica e com o seu quê de pré-gravitacional, são as leituras oriundas dessa singular comunidade para-filosófica que estabelecerão as regras do jogo a que poucos escaparão.
As regras são precisas, radicais e com reduzido número de variações na sua configuração. Astros esféricos, órbitas desenhando círculos perfeitos, a crença na natureza perfeita dos mundos para além da Terra, a aposta da escrita cósmica remeter para uma combinatória geométrica e matemática. Tudo o que reduz o alcance das aparências titubeantes dos movimentos planetários a ilusões que remetam para a perspectiva do observador ingénuo, vai na direcção da longa ascese que prepara o conhecimento verdadeiro, aquele que vislumbra as harmonias numéricas e assim trilha o caminho da contemplação e do pensamento feliz!
As variações, como já se viu, são reduzidas, mas significativas. Lembre-se a posição de Filolao e o seu "fogo central", de simbologia estético-religiosa, mais a sua obscura "Anti-Terra" que harmonizava a cumplicidade da "tetractis" com a face do mundo, ao forçar o universo a cumprir a mística do "número 10". Mas sobretudo atente-se que esta deslocação e as honrosas motivações que a possibilitam, tolera e exige que a Terra saia do centro e que ocupe, por conseguinte um lugar equivalente aos restantes planetas, eternamente singrando na esfera e trajectória circular que lhe compete em torno desse "trono de Zeus" que compensa e equilibra no centro cósmico esse outro "fogo exterior" que se estende para além do derradeiro limite inteligível das estrelas fixas.
Digamos, pois que o essencial foi descoberto cedo. Platonismo e aristotelismo aceitam a lógica de tais princípios, ainda que utilizando universos conceptuais distintos, como são os que distinguem o registo alegórico do Timeu, da leitura mais inteligível e fria dos céus de Aristóteles. A solução encaminha-se em direcção do poder das matemáticas e das combinatórias geométricas em torno da pressão do "dogma do círculo". Daqui resultará uma solução complexa e habilidosa, um compromisso entre as "aparências" provenientes da observação e as Leis imutáveis que a condicionam.
Tal caminho conduz a uma desmultiplicação das esferas planetárias, cujo número é condicionado por determinantes que não passam por qualquer verificação experimental, tratando-se somente de encontrar uma construção que enquadre as trajectórias errantes numa série adequada de sucessivas esferas de dimensões pensadas para servir cada um dos astros conhecidos. Com Eudoxo e com Aristóteles esse número pode aproximar-se da escala das dezenas! Daqui para diante o modelo está estabelecido e o seu expoente superior irá confluir para a escola de Alexandria, na obra de Claudio Ptolomeu.
Porém, não esqueçamos que até aí chegarmos alguns séculos e significativos acontecimentos irão modelar o mundo antigo.
II - O SONHO DE ALEXANDRE
Um ponto de viragem será associado à figura de Alexandre, o príncipe macedónio, cuja vocação de conquista levará os gregos para além dos seus limites estratégicos. Educado em terrenos aristotélicos, aspira a uma civilização que rompa os limites da "polis" ou, melhor ainda, que estenda as suas regras a uma escala territorial que nunca foi a sua. Digamos que Alexandre é um conquistador cosmopolita no sentido etimológico da expressão. Mundo à imagem da Cidade. Cidade como resumo do Mundo. Ao modo grego, claro.
Sabe-se a eficácia momentânea do seu projecto. A rapidez do seu triunfo, a amplitude que nos mapas do mundo se deixa colorir pelos sonhos de Alexandre. Da India ao Egipto um império se desenha.
Mas o Império não é o modo grego de estar no mundo, pela lógica de confusão, mistura, essa escala das coisas para além do limiar do razoável. Tudo unir na amálgama de mil vozes, mil usos, mil deuses pode parecer um sonho digno, um desejo de modernidade, uma fraternidade universal. Mas é também uma paixão que ignora o possível e cada conquista dos generais de Alexandre é uma fissura irreparável nos mármores do Partenon, uma porta aberta à incerteza e ao caos nas ideias e nas almas.
Falta aos gregos a dimensão de gestores dos grandes espaços, das redes de poder burocratizadas, do cimento de coesão que o Direito Romano admiravelmente saberá distribuir por entre a "pax" das legiões. A morte prematura de Alexandre, se parece ir ao encontro da máxima segundo a qual "aqueles que os deuses amam morrem jovens", deixa como primeiro legado um problema impensável à escala da "polis", isto é, a repartição dum imenso território, repetido orgulho e maldição de toda a conquista.
É sobre os seus mais próximos amigos e chefes militares que recai o prosseguimento do sonho, agora mais condicionado por uma atitude defensiva e realista que visa a consolidação no terreno duma lógica do possível. No território egípcio, abre-se a porta à dinastia dos Ptolomeus. Para além da Lua, os astros perfeitos continuam por enquanto imunes aos jogos mutantes e corruptíveis a que se entregam os homens.
III - ALEXANDRIA.CIDADE ABERTA
É com Ptolomeu Sotero, o general coberto pela sombra protectora de Horus, que uma ideia grega vai ocupar um poder até então entregue aos "deuses vivos" que escolherem o Egipto como morada. Verdade seja dita, sempre os gregos olharam para esse lado do Mediterrâneo, esse local simultaneamente acolhedor e ambíguo, como um espaço sedutor, onde um saber vindo dos confins do tempo se acumulava com uma espessura só possível num reino vocacionado para a eternidade.
Desde a escola de Mileto até Platão muitos foram aqueles que, pressionados por uma ideia de conhecimento que visava uma abertura aos outros, introduziram o gosto da viagem como uma virtude da Filosofia. Entre outros, o Egipto era local de estadia quase obrigatório. Muita coisa aí foi apreendida e reciclada pela cultura urbana subjacente ao filosofar, pois o "milagre grego" é mais uma ars combinatoria que um acto de rotura sem retorno face ao património de informação do mundo antigo.
Não se tratava de fazer do poderoso império agrário uma Grécia desproporcionada, missão em si mesma contraditória e impossível. Mas de criar um estilo híbrido, na intersecção de dois modos de vida que supõem uma bifurcação de caminhos civilizacionais e mentais. O compromisso abre portas à dimensão urbana, patamar mutuamente aceitável pelas duas culturas. Está aberto o projecto de Alexandria, obra desmesurada a que os novos poderes dedicarão atenção prioritária. O nome da cidade não engana. É a homenagem viva ao Conquistador que a possibilitou!Mas é mais do que isso.
Contrariamente ao hábito corrente do desenvolvimento urbano das sociedades camponesas, mais dependente dum crescimento afectivo e desordenado do que duma demarcação no território das linhas de razão, Alexandria visa um desejo de "ordem" cujas raízes mergulham na "polis" e que só arquitectos e engenheiros são dignos de planear. É uma tarefa que mobilizará os recursos gregos sob o patrocínio dos primeiros Ptolomeus.
Deste modo a Cidade cresce com um objectivo de fundo helenístico, esse grande desejo de mistura de muitas vozes, múltiplos encontros que o acaso tece. Cidade marítima, entreposto de projectos, de línguas, de deuses, mal sonha o milénio de grandeza e devastações que a aguarda. Duas instituições míticas com ela nascem e que se transformarão num dos grandes símbolos do mundo antigo. Ambos superiormente patrocinados pelo poder, concretizam o melhor dos sonhos gregos e da sua particular relação com a Teoria e a experiência. O Museu e a Biblioteca.
Recolhem a experiência de instituições como a Academia platónica e o Liceu aristotélico e do gosto de convivência, de ensino e de Escola nelas suposto, mas dotadas de meios materiais manifestamente superiores, ao que tudo leva a crer. Talvez que o paradigma dominante seja o aristotélico, designadamente pela intensidade que nelas manifesta um saber experimental, empírico, prático, sempre olhado com alguma reserva por toda a tradição platónica.
O Museu deve ser pensado num sentido muito amplo, a meio caminho entre o sentido mais estrito que hoje damos ao termo e a instituição multidisciplinar que abarca o essencial das áreas do saber, da Astronomia à Botânica, da Geografia e Matemática à Zoologia e Medicina. Verdadeiro centro de investigação e pesquisa, nele são previstos espaços para uma pleiade de estudiosos que nele operam em termos quase profissionais. Nem um Zoo faltará para ir de encontro à vocação englobante que o preside!
Quanto à Biblioteca, que se julga ter recolhido um fundo bibliográfico pertencente ao próprio Aristóteles, acumula um património de informação invejável por muitos séculos. Patrocinada pelo poder real como centro de afirmação cultural, para ela foram recolhidos, arquivados e duplicados dezenas de milhar de livros, que atrairam estudiosos de toda a parte, e transformaram os bibliotecários de Alexandria numa das personalidades mais prestigiadas do mundo antigo, de tal forma que passam a ser encarregados da educação do príncipe.
O conjunto destas instituições permitiram que em Alexandria se atingisse o que hoje se designa como "massa crítica" de investigação, de tal forma que no seu período de máximo esplendor (séc. III-I a.C. ) aí se encontram personalidades de inequívoco relevo. Entre outros, Euclides, o matemático, Eratóstenes, o geógrafo que pela 1ª vez sugeriu uma medida espantosamente precisa do diâmetro da Terra, Aristarco, o astrónomo, que propõe um sistema heliocêntrico, cuja precoce modernidade só será recuperada na obra de Copérnico.
As observações astronómicas cada vez mais precisas e detalhadas, acentuavam uma questão que já tinha sido equacionada desde os primeiros pitagóricos até Platão e Aristóteles, isto é, a constatação dos movimentos "errantes" dos planetas, a variação periódica do seu tamanho aparente ao longo do ano, e a necessidade de compatibilizar estes dados sensitivos com a racionalidade meta-lunar do dogma dos movimentos circulares e uniformes. A solução-tipo consistia em atribuir um papel fundamental à Astronomia Geométrica como via de interpretação das peculiaridades da Astronomia de "observação".
O resultado é irem-se constituindo modelos cosmológico-geométricos progressivamente complexos que explicam com crescente barroquismo a intocável precisão do reino dos Céus. A obra de Ptolomeu é o corolário final destes esforços, cujo sucesso é indesmentível, quanto mais não seja pelos quase 1. 400 anos em que se manteve à tona da história do pensamento astronómico.
IV - PTOLOMEU.A MÁQUINA CÓSMICA
Não se julgue que a teoria de Ptolomeu (séc. II) só deva ser vista como uma "velharia", o resultado exemplar dum bloqueio epistemológico, uma incapacidade de ver as coisas como são, por carência de espírito objectivo-experimental, característico da Ciência moderna pós-renascentista. Que é um acumular de erros e perversões que só a cegueira da razão permitiu manter durante séculos e séculos.
O sistema ptolomeico permite prever factos astronómicos com suficiente precisão, medir distâncias, elaborar cálculos com eficácia prática e os seus modelos e abordagem geométrica, apesar de ultrapassados pelo binómio Kepler-Newton, estão ainda bem presentes nas considerações de Copérnico, cujo sistema é bem menos simples do que as imagens redutoras que, por vezes, dele nos são dadas.
De Claudio Ptolomeu pouco se sabe da sua vida a das datas exactas de nascimento e morte, presumindo-se que tenha vivido no séc.II (100-170), por dedução feita a partir de alguns fenómenos astronómicos por ele observados e referidos nas suas obras. A Alexandria que Ptolomeu conheceu estava já distante do período de máximo esplendor dos séculos passados e vivia agora sob o ascendente dos conquistadores romanos, no tempo de Trajano, Adriano, Antonino Pio e Marco Aurélio. Os grandes investimentos culturais do tempo dos Ptolomeus tinham passado à história, apesar do continuado prestígio da cidade junto da elite culta, que continuava a usar o grego como meio de comunicação preferencial.
Ptolomeu, apesar de ser conhecido como astrónomo, não deixou de configurar o ideal eclético da cultura helenística ao cultivar a Geografia, a Óptica, a Música e a Astrologia. A sobrevivência quase integral das suas obras mais importantes, bem ao contrário do que é usual em tantos trabalhos desta época que estão reduzidos a fragmentos, citações indirectas, às vezes pouco mais que títulos, deve-se a circunstâncias afortunadas, onde se destaca o grande prestígio que o suas ideias adquiriram junto dos pensadores árabes, responsáveis em boa parte pela recuperação dos seus textos. Foi, aliás, a admiração destes intelectuais pelo trabalho intitulado "Grande Composição Matemática da Astronomia", que originou a designação de "Almagesto", provavelmente introduzida no vocabulário actual por astrónomos cristãos da Idade Média. A este tratado, escrito por volta de 142, segue-se um 2º livro de temática astronómica, intitulado "Hipóteses dos Planetas", provavelmente datado de 146.
Nestes textos, mais do que absoluta inovação, faz-se uma síntese bem organizada dos inúmeros predecessores, visando uma unidade teórica de acordo com princípios bem estabelecidos, resultando numa versão final da cosmologia antiga, cuja solidez só será posta em causa muitos séculos mais tarde.
A associação entre Matemática e Astronomia patente no título, resulta da divisão aristotélica entre "filosofia teórica" e "filosofia prática", interessando particularmente a Ptolomeu a razão científica, isto é, teórica, na boa tradição grega. Os patamares desta "filosofia teórica" iam da Física à Teologia, passando pela Matemática, cumprindo a via de "purificação" dum conhecimento que vai do sensível ao imutável. Neste quadro classificativo, a Astronomia é um sub-campo das Matemáticas, a par da Geometria e Aritmética.
Desta forma, ganha consistência um modelo cosmológico apoiado em princípios, que compatibiliza a observação e as suas estruturas mutantes e erráticas com uma cobertura de racionalidade e eternidade que convém à perfeição dos objectos celestes. Tal é o objectivo visado pela "Grande Composição Matemática" e "Hipóteses dos Planetas".
As proposições da Física que sustentam a astronomia visam "(. . . ) Antes de mais, admitir que o céu é esférico e que se move da maneira que convém a uma esfera;que, pela sua forma, a Terra, considerada no conjunto das suas partes é, ela também, sensivelmente esférica;que pela sua posição, está situada no meio de todo o Céu, e que ela aí está como que no centro;que quanto ao assunto do tamanho e da distância, ela está para a esfera das estrelas fixas na mesma relação que um ponto;que ela não executa qualquer movimento que a faça mudar de lugar. (. . . )".
Não iremos aduzir os argumentos de Ptolomeu em favor destes princípios, mas somente salientar que tais proposições exigem que se transite duma Astronomia Física a uma Astronomia Matemática, espécie de modelo computacional cujas exigências de precisão levarão a propor soluções duma mecânica abstracta, na sequência dos caminhos já abertos por Eudoxo, Hiparco e Calipo.
Daqui resultam duas ideias fundamentais em que se apoia a construção de Ptolomeu. Por um lado, distinguir o "centro geométrico" do Mundo do seu "centro físico", que é ocupado pela Terra;por outro, imaginar que a revolução dos astros em torno do "centro" se faz em função dum "epiciclo", deslocação perfeita dum orbe no qual o planeta ocupa uma zona da circunferência que é arrastada pelo movimento circular e uniforme.
É naturalmente complexo apercebermo-nos das soluções geométrico-matemáticas subjacentes a esta engrenagem cósmica, cujo principal objectivo era "salvar as aparências", isto é, fazer reduzir a inconstância dos planetas a uma sucessão em cadeia de movimentos racionalmente aceitáveis que, vistos do centro do Mundo (a Terra) efectivamente seriam observados pelos "sentidos" como estando de acordo com princípios imutáveis.
Como a variação do movimento planetário obedece a padrões individualizados para cada um dos astros conhecidos, a solução genérica dos epiciclos terá de ser adaptada a cada caso particular. Haverá uma teoria do Sol, da Lua, de Mercúrio, de Vénus, de Marte, de Júpiter e de Saturno, obrigando a soluções "ad hoc" que acabam por desmultiplicar o número de orbes para o conjunto dos planetas, de tal maneira que o sistema ptolomeico ganha dimensões cabalístico-estéticas!
Mantém-se a "Teoria dos 2 Mundos" de proveniência aristotélica, distinguindo bem o reino do movimento, transformação, corrupção, vida e morte que habita a Terra, onde perpetuamente se transmutam ar, água, terra e fogo, duma região para lá das nuvens, onde se desenha a régua e esquadro a fronteira da Lua. É um Universo pequeno, controlável, inteligível, um Mundo à escala humana donde, bem vistas as coisas, se desprende uma certa doçura, bem distante do frenesim dos "pulsars", "quasars", super-novas, super-enxames de galáxias, "big-bangs" e radiações isotrópicas a 3º Kelvin.
Será pecado, em certas horas cinzentas, ter-se saudades dum erro ?!
PORTO, Setembro de 1993