Filosofia e teoria dos jogos

Sobre o trabalho filosófico

 

 

 

 

1. FILOSOFAR E CONFLITO

 

 

"(...) Agora é a raça de ferro. Nem cessam,de dia, de ter trabalhos e aflições, nem, de noite, de serem consumidos, pelos duros cuidados que lhes oferecem os deuses. Mas,no entanto, algum bem será misturado aos seus males (...)".

 

HESÍODO, Trabalhos e Dias (109-201) [1]

 

 

 

      Provavelmente, neste exacto instante, algures no mundo civilizado, uma campainha toca numa escola qualquer. No alvoroço imperceptível desse estímulo secular, professores saiem e entram, atravessam corredores ou escadas iluminados pelo sol cheio da manhã, tardes cinzentas, noites/dias caídos do néon, inóspito, aquele que faz duas sombras quando dobramos esquinas. Pelos mesmos ou outros corredores, os restantes actores da comédia do ensino avançam para o local administrativamente determinado, espaço insólito onde o labirinto do "ensinar-aprender" assumirá a face banal duma sala de aula.
     Aí, o professor é o corpo histórico da "disciplina" que lhe foi atribuída ou que lhe compete . Isto é, as estratégias e discursos que vai explicitando decorrem duma convicção tácita da real existência dum segmento razoavelmente determinado do conhecimento humano, detentor dum NOME, socialmente aceite como correspondendo a um espaço bem delimitado da imensa quadrícula onde as especialidades disciplinas erguem bandeira e fronteiras, como entes territorializados que acabaram por ser! Assim, o discurso que a sala de aula consente está de acordo com os porta-vozes dos diferentes "territórios" que vão subindo à tribuna segundo os ritmos escalares do trabalho humano, retalhado aqui de acordo com os insondáveis desígnios dum "horário" em que as disciplinas-slides erram como fantasmas em busca dum texto que as torne coerentes "enquanto conjunto".
      As disciplinas que melhor se "defendem" dentro deste contexto são naturalmente aquelas que historicamente se assumem como preenchendo um espaço bem determinado, socialmente reconhecido, eventualmente fornecedor de bens e serviços que directa ou indirectamente possam vir a ser contabilizáveis numa vertente de ordem profissionalizante e/ou produtiva. Neste caso, professores e alunos estarão em última instância "justificados" na óptica razoável do trabalho eventualmente penoso ser condição preferencial para a obtenção de "performances" num mundo altamente competitivo, ávido de certidões e diplomas e que lança como "heróis" o frenesim dos predadores "Yuppies", os "golden boys" eternamente jovens e de saúde de ferro, novos olímpicos dum "jet-set" de aroma vagamente neo-maçónico, em que "avental" e "compasso" são substituídos pelo "modem" e pelo "telefax"!
     Assim, nas chamadas "ciências exactas", bem como em algumas "ciências humanas" a relação ensinar-aprender está potencialmente estabilizada dentro dum razoável consenso sobre aquilo que se visa fazer , tratando-se sobretudo de delinear estratégias pedagógico-didácticas orientadas para o "sucesso" na apredizagem, para a aferição hierarquizada na realização dos objectivos propostos à partida, posicionando-se os "trabalhos" que decorrem da relação professor-aluno corno procedimentos tecnicamente aperfeiçoáveis e socialmente reconhecidos como "úteis" pela comunidade.
      Sugere-se aqui que a relação "ensinar-aprender" transporta implicitamente no seu território profundo um sistema de convicções que frequentemente faz parte do "impensado" da área disciplinar do "saber" a que se reporta, daí decorrendo consequências que podendo tudo discutir raramente questionam a própria "placa" sobre a qual a discussão se situa. Assim sendo, forçoso é reconhecer que o campo "disciplinar" da Filosofia será virtualmente convulsivo ao ser enquadrado num estatuto duma virtuosa "igualdade democrática" como mais uma "cidadã-disciplina", estatutariamente portadora dos mesmos direitos e deveres cívicos na "república do Saber".
     Logo, o "defeito" da Filosofia decorre dum mecanismo análogo ao que institui o corpo de "virtudes" das restantes disciplinas. O seu primeiro desajustamento visível é o desconforto que a curto prazo se gera no jogo do "ensinar-aprender" frequentemente atolado num pântano de equívocos, onde triunfa um sentimento de culpa sem rosto, processo em que se transita de veredicto ao mínimo "estremeção" das desventuras da História. Isto é, na mansão filosofal, há actualmente a bizarra estranheza quântica de se poder ler no edital afixado à sua porta, com equivalente clareza : "Todos inocentes!" / "Todos culpados!"
     Digamos que é indisfarçável um mal-estar na Filosofia, nos seus professores, nos seus alunos. Porque é "difícil", porque se "reprova", porque o seu corpo está sempre noutro lugar, porque tece e destece, desencanta e esvazia a ideia de que todo o trabalho tem compensação, todo o crime tem castigo. Porque anda às voltas, diz e desdiz, desinquieta sem alternativa, rouba as poucas certezas que restam num mundo ansioso por uma "coisa" que permaneça na voracidade da mudança, do correr sempre para outro lugar, outra máquina, outro emprego, outra casa.
     Na sala ao lado, ou na hora imediatamente anterior/seguinte, a Filosofia sabe o "cerco" dos outros saberes, que têm manuais que definem coisas, em que o "capítulo II" avançou face ao "capítulo I", em que há "objecto" e "método", "progresso", horizontes que permitem demarcar distâncias, triangulações, cálculo!
     Com algum custo se reconhece então não ser a Filosofia uma Ciência , quando o "espírito do tempo" [2] parece dar reconhecimento duma forma enfática aos "saberes" que visam ou concretizam esse modelo encantado de compreender o Mundo. O discurso filosófico identifica todos os lugares vazios que a história do pensamento lhe foi reservando, esses territórios sem fim que legitimavam, sem crises de consciência ou sensação de invadir casa alheia, que Tales falasse da "água" como origem de todas as coisas, que os filósofos discutissem teoremas, previssem eclipses, dessem corpo, forma e "som" à música das esferas, como desejavam os pitagóricos. [3]
     Mas a História da Filosofia é um registo de lentas migrações para outro lugar fora do pensamento unificado que sonhou na origem. A Razão que com ela viu o horizonte infindo, rapidamente escolhe a via analítica, sensata, fragmentária. [4] Aposta no optimismo do possível, no caminho seguro feito de tentativas/erros, deixando que o futuro reconstrua um dia o sonho primitivo. E porque as "ciências" que vão crescendo transformam o mundo e o povoam de esperanças, de objectos sedutores, serão os seus "modelos", as suas insígnias, os seus discursos que irão ocupando a ribalta da História. Até ao momento em que cabe à filosofia "justificar-se" perante as Ciências, lutar por um lugar ao Sol, bater-se agora pela sua sobrevivência, tentar responder às desvairadas gentes que de dedo apontado lhe perguntam "para que serve"...
     Os ensaios de resposta nunca saciam os. "sujeitos" que transportam as perguntas, pois a essa questão não se pode, em sentido real, dar satisfação. É preciso reconhecer aí a face perversa dum novo-riquismo mal disfarçado que anseia por um "branqueamento" de todas as sombras e de todas as hesitações que inelutavelmente o filosofar comporta.
     É também este peso, esta voz silenciosa, "mal-dita", que o professor de Filosofia arrasta dentro de si. Voz que por vezes se dissolve na sua própria, qual gênio maligno e que o leva a um mal-estar na relação ensinar-aprender, dando corpo a uma sensação de "non-sens" perante um mundo de profissões e de batas-brancas que parecem saber sempre para onde vão e o que é que fazem! Aqui nascem os profissionais sem fé, de mal consigo e com o mundo, impacientes e inquietos, Savonarolas potenciais mal o interliocutor vira costas.
     Mas se a Filosofia parece não chegar a sítio-nenhum é porque ela, mais do que uma "teoria dos alvos", é a "arte das trajectórias", labirinto de caminhos em que as ciências se erguem à medida em que os incidentes da viagem ou a fadiga dos dias nos compelem a pernoitar. Se isto se esquecer, tudo se perderá. Será então, finalmente, uma disciplina.

 

 

2. FILOSOFIA. IN-DISCIPLINA. JOGOS.

 

 

"(...) Pai Licambas, que coisa é essa que disseste? Quem te tirou o siso? Dantes era equilibrado: agora, para muitos concidadãos, és motivo de riso."

 

ARQUÍLOCO DE PAROS (séc. VII A. C.) [5]

 

 

     Eis na Filosofia a ideia de "construção sistematicamente inacabada", domínio onde impera o "provisório", o "frágil", o nódulo de interrogações, os labirintos de Jorge Luís Borges ou a biblioteca de Umberto Eco. Aos professores de Filosofia pede-se uma espécie de "quadratura do círculo", uma transformação da "insularidade" da disciplina-ilha na consciência de uma "lógica do arquipélago" e, por fim, a visão dos arquipélagos assentes em placas tectónicas continentais e oceânicas flutuando sobre o magma que por sua vez não "flutua" sobre coisa nenhuma !
     Pois para tudo isto ser possível, para dar rosto ao sonho ancestralmente actual de entender o mundo com sabedoria integrada, não pode a Filosofia assumir-se no estrito enquadramento dum estatuto de "disciplina", refugiando-se nos meandros de uma história própria que tendem para a banalização de uma antologia de "respostas" que fazem parte dos "curricula" e do perfil socialmente aceitável duma educação mundana! Quer isto dizer que o "profissional de Filosofia" tem de escapar à tentação da boa gestão do património herdado por 25 séculos, assumindo o papel de cicerone duma visita-guiada com turistas à força como interlocutores.[6]
     O filosofar não é facilmente compatível com as "horas marcadas" administrativamente. Ou é uma estratégia mental que em toda a parte pode e deve imprevistamente irromper ou não é nada!
     De resto, a dupla filosofar-filosofia é uma outra forma de dizer Ciência, entendida aqui como preocupação "sintética" de re-agrupamento e re-integração das "ciências-disciplinas" enquanto seres locais, nascidos por razões tácticas que decorrem da possibilidade de manipulação delimitada dum território arfficial. A preocupação da Filosofia é uma dimensão simultaneamente extrovertida-introvertida do "cérebro Sapiens", eterno movimento de vai-vem que um dia viu a luz do sol numa paisagem onde se escutavam os ecos da guerra de Tróia e a memória das artimanhas de Ulisses. É um pensamento aberto ao mundo, à experiência, que não recusa, antes exige, a meditação.
     Mas, entendamo-nos com as palavras. Não se está aqui a postular uma espécie de "esvaziamento Zen", uma via que à partida desvaloriza toda a ilusão de mundanismo e exterioridade, um recolhimento-aceitação no oceano inominável duma "verdade" para além de todos os combates.
     Pelo contrário, a Filosofia supõe uma acção sobre o mundo, um desejo infindo de perscrutar os seus enigmas, encontrar os seus ritmos profundos, as "constâncias" que perpassam pela multiplicidade dos corpos, as "leis gerais" que pautam a variação caótica dos entes singulares. Isto é, a atitude filosófica não perspectiva o reino da experiência como uma espécie de "canto tóxico" que nos levaria à despossessão de um estado de consciência em que a lucidez só se atinge pela via dum despojamento, antes sugerindo ser na diáspora do conhecimento que ganham verdadeiramente sentido os estados de meditação/contemplação.
     Esta dimensão dupla/dúplice da Filosofia é muito dificilmente transmitida no seu contexto escolarizado, o que significa que a sua principal virtude se pode transformar na mais manifesta das carências. O "trabalho filosófico" rapidamente degenera em actividade dolorosa e fatigante, espécie de parente distante da punição bíblica que resultou da tentação imprudente pela árvore do conhecimento!
     Num certo sentido a lógica que envolve o ensinar/aprender Filosofia, o seu envolvimento urbano/industrial, a pleiade de solicitações face a bens materiais e culturais "pronto-a-vestir", desenvolve uma espécie de surdez funcional aos apelos profundos que aqui se desencadeiam. Filosofia/filósofos sentem-se por vezes a pregar no deserto, exemplares raros de uma espécie em vias de extinção, cuja derradeira hipótese de sobrevivência parece ser apelar à consciência ecológica dos poderes fáticos no sentido de conservar vivos (e já agora, de preferência, bem alimentados!!) esses "mastodontes" duma era Jurássica da História Sapiens.
     Este sentimento difuso mas real em inúmeros profissionais da Filosofia, desencadeia singulares técnicas de sobrevivência, que oscilam entre o símbolo do "guichet" e o do "cruzado". O primeiro concretiza a banalização absoluta do filosofar, a atitude que murmura interiormente dia após dia: "quem quiser entender que entenda, não fui eu quem fez o programa, são horas de ir almoçar ...". A segunda corresponde a uma visão iluminista de "missão", em que o filósofo-pregador deve "salvar" da condenação à inconsciência eterna uma imensa legião de impenitentes que parecem apostados em devorar com logarítmica avidez todos os signos da panóplia de venenos que amolecem a alma! Uns e outros, por razões bem diferentes entre si, tomam a Filosofia insuportável.
     Qualquer destes "arquétipos" configura a face visível dum desajustamento de fundo nos objectivos da Filosofia enquanto aparelho institucionalizado no sistema de ensino. 
     O aparente "insucesso" das estratégias do trabalho filosófico, decorre também de temporalidades diferenciadas nos ritmos de aprendizagem entre disciplinas de índole científica estritamente considerada e a confusa multidão das chamadas "ciências humanas". [7] Estas últimas (ciências humanas) parecem desejar, no seu "arranque" epistemológico para obterem um lugar ao sol, instaurar "ab initio" um efeito de distanciamento drástico da Filosofia, de tudo aquilo que instaura uma dialéctica infinda de posições-contraposições do seu reino de luz e sombras.
     Neste sentido, as ciências humanas tendem a deslocar-se para o paradigma de "eficiência construtiva" das ciências exactas
, esforçando-se por encontrar rnetodologias matematizáveis que lhes consintam a breve prazo uma "lei", uma equação, um gráfico, um projecto de laboratório. E, tal como nas histórias de infância, pode-se dizer: "se assim o pensou, melhor o fez!".
     De tudo isto decorre que a Filosofia, os seus projectos e intenções, já só à força cabe no planeamento urbanístico da república do saber, quer na sua vertente de "ciências exactas", quer no edifício pintado de fresco das "ciências humanas". A derradeira tentativa de colagem a este comboio em velocidade crescente consiste num afunilamento epistemológico do filosofar e da Filosofia, salvando a pele como "consciência crítica" das ciências, espécie de preceptora que se deixa sentar à mesa nos dias de festa em que saem à liça as pratas e os cristais. Nos restantes 360 dias que coma na cozinha...
     É por isso fácil entender que perpasse por vezes nos profissionais de Filosofia um profundo desânimo que os coloca numa posição defensiva e inquieta, enquanto aguardam, de reforma curricular para reforma curricular a degola dos horários e dos empregos. Esta "sensação" de espaço tolerado leva a algumas defesas menos felizes perante a triste necessidade de públicas justificações, cujo estado-limite é o de transformar a Filosofia numa espécie de pulverizador perfumado que se volatiliza lentamente no quotidiano dos saberes mundanos.
     Quanto à chamada argumentação "sólida" cai-se no estafado "local previligiado para o desenvolvimento do espírito crítico", convicção com o seu quê de mecanicista, como se a "racionalidade crítica" fosse um músculo e a aula de Filosofia um ginásio que combateria com unhas e dentes o respectivo atrofiamento!
     Ora a aspiração de racionalidade é o âmago da original vocação da Ciência e da Filosofia e, neste sentido, o "espírito crítico" é necessariamente posto à prova e exigido em todo e qualquer domínio "científico" estritamente considerado. A questão que se está a desencadear é antes outra: sendo a estratégia da "Razão" uma diáspora analítica sobre o caleidoscópio do mundo, como agir para não esquecer a aspiração unificadora e integradora que um dia compeliu à viagem histórica do conhecimento?
     Neste sentido se pode afirmar que cabe à Filosofia um papel de reactualização permanente desta "memória perdida", desta vontade de reendereçar sistematicamente a multidão-ordenada mas solitária dos conhecimentos "cientificamente organizados" para uma dimensão integradora e sintética que ganha corpo numa sabedoria em perpétua reconstrução.
     Por outras palavras, a Filosofia é o local onde à partida está ausente a "preocupação disciplinar" e onde se pode e deve exercer uma certa sabedoria que se não pode reduzir ao conhecimento. Esta é a etapa "trabalhosa" da nossa maneira de estar no mundo, o caminho possível perante um universo que se desvela e esconde, a estrada real que resta perante uma Natureza onde cada surpresa",cada "imprevisibilidade", pode ser a face superficial duma harmonia profunda, de uma "legalidade por conhecer" ! [8]
     Para além disto e talvez por causa disto, permanecem ainda interrogações de primeira e última instância, aquelas que se dirigem para a "esfinge" que vislumbramos sob todas as leis, todos os sistemas, todos os mitos, esse algo que reverbera mesmo no limiar de uma equação ou de uma obra de arte.
     Porque parece o mundo jogar o nosso jogo? Porque existem "coisas" em vez de "coisa nenhuma"?
     É a Natureza uma espécie de "casino" a que presidem os deuses do acaso ou, como diria Einstein "o bom Deus não joga aos dados!"? Verdadeiramente, que destino nos está reservado? Seremos os produtores de um "sentido" sobre um fundo de "non-sens"? E porque milenarmente repetimos estas perguntas em vez de simplesmente flutuarmos à superfície dos dias? [9]
     Eis uma amostra do singular tesouro da Filosofia e de como é complexo fazê-la "passar" num mundo predominantemente determinado pela eficiência do presente, pela corrente ansiosa do quotidiano, por um ganho proporcional ao investimento feito. A temporalidade subjacente à Filosofia está em permanente batalha com aquilo que em nós é mais "humano", isto é, a pulsão que compele todos os corpos a um patamar de equilíbrio com o menor dos desgastes. Nesse sentido, o filosofar envolve uma in-disciplina, um afrontamento com o limiar da "desordem" que brota de tantas perguntas e tão poucas respostas, uma longa paciência para o combate ciclicamente renovado de uma guerra que todavia se não ganha!
     Por isso talvez o diálogo de surdos que tanta vez atravessa o aprender Filosofia e a "maldição" que pesa sobre os seus profissionais, compelidos a atravessar 2600 anos de História, náufragos num oceano de autores que dizem e desdizem fundamentadamente que as coisas tanto são assim como podem deixar de ser... E, humanamente, acabar por deixar a Filosofia enredar-se na História da Filosofia, quase reduzir-se a ela, a não ser no repetido apelo quanto à "necessidade de pensar pela própria cabeça" que, no actual contexto, nada mais é do que uma espécie de conselho piedoso análogo a "deve-se praticar o bem", "não nos devemos enervar" ou "deve-se comer muita fruta".
     O "efeito-Filosofia" é necessariamente retardado pois se, por um lado, a adolescência e o início da juventude são naturalmente "interrogativas" e se apresentam como "disponíveis" para o jogo do filosofar , por outro lado a aspiração voraz pela realização do reino dos fins obriga a tornear o dispositivo imprescindível de uma longa paciência, das bifurcações e hesitações que constituem o âmago da invisível rede do pensamento.
     Tal "paciência" está manifestamente fora de moda e em contraposição com o "espírito do tempo", razão suficiente para que à Filosofia cada vez mais se lhe exija que se justifique , na imensa desconfiança perante uma sinecura provinda dos confins da História, legião de sofistas pagos à custa da entropia do erário público.
     Não se peça à Filosofia aquilo que ela não pode dar e não forneçam àqueles que com ela vivem esperanças e ilusões que não devem alimentar!
     A Filosofia não é um trabalho no sentido comum do termo, na vertente "dolorosa/fatigante/cinzenta" que lhe é comumente associada. É algo de dispensável, inútil, supérfluo. Como um jogo que se joga mas pode deixar de jogar-se que a vida corre na mesma, e haverá a sucessão dos dias e das noites, as estações do ano e tudo.
     Mas se não se jogar esse jogo, esse caminhar sem se saber para onde se vai e quanto ou o que se vai ganhar com isso , esse prazer de um pensamento livre por efeito de si próprio, poderemos, como Creso, transformar tudo em ouro e sermos então uma espécie miseravelmente feliz, dormitando à sombra do fim da História. Todas as Ítacas nos passarão ao lado, todos os cristais se partirão e até os deuses, se existirem, saberão que uma pequena, uma ínfima parte de si mesmos, os abandonou para nunca mais!

 

Porto, 1989


NOTAS DE FIM DE TEXTO

 

 

 

[1] - ROCHA PEREMA, Maria Helena, "Hélade. Antologia da Cultura Grega", Instituto de Estudos Clássicos, Coimbra, 1963, p. 85

[2] - Título de uma obra de Edgar Morin em que se propõe uma análise global do mundo contemporâneo numa sociedade industrial e de cultura de massas. (Cf. MORIN, Edgar, "L’Esprit du Temps", Grasset, Paris, 1962.)

[3] - Não deixa de ser curioso chamar a atenção para o facto de ser em sectores de ponta do pensamento científico contemporâneo que se assista ao regresso da problemática filosófica, designadamente naqueles campos que decorrem do "dossier" aberto no início do século nas ciências físicas, quer na sua vertente relativista, que na perspectiva quântica. Interessante é assinalar expressões como idealismo quântico ou materialismo quântico. A este propósito, veja-se por exemplo: ORTOLI, Sven; PHARABOD, Jean-Pierre, "Introdução à física quântica", trad. do francês por Manuel Ruas, Dom Quixote, Lisboa, 1986.

[4] - Refere-se neste contexto o facto conhecido do "esvaziamento" histórico do projecto inicial da Filosofia , na medida em que as diferentes disciplinas que se vão autonomizando e constituindo em "História das Ciências" originam edifícios gnosiológicos que resultam da expansão teórica de módulos que criteriosamente delimitam sectores específicos da Natureza.

[5] - ROCHA PEREIRA, Maria Helena, "Hélade. Antologia da Cultura Grega", op. cit., p. 98.

[6] - Levanta-se aqui o complexo problema das relações entre Filosofia e História da Filosofia, os difíceis caminhos que evitem reduzir a primeira à segunda, o equilíbrio entre dois patamares instáveis que com grande facilidade mutuamente se destroem. Voltar-se-á ainda, no contexto deste artigo, a tal assunto.

[7] - Neste contexto, a temporalidade da Filosofia é duplamente enganadora. O seu primeiro patamar qualitativo pode ser entendido como um "retrocesso" dentro dos critérios que pautam as formas de saber orientadas pelo modelo de uma aquisição paulatina e sequencial de "informações". Só bastante mais tarde se está em condições de reconhecer as virtualidades desse desvio. A temporalidade da Filosofia é lenta e recursiva. (Cf. DAVIES, P. C. W.; BROMN, J. R. , "The Ghost in the Atom", Cambridge University Press, Cambridge, 1986. )

[8] - Ou até, como alguns pretendem, vir a considerar que a "ordem" é um fenómeno excepcional e local num universo estruturalmente caótico, o que corresponde à inversão da concepção optimista e cartesiana quanto ao valor e limites do conhecimento.

[9] - No fundo, trata-se de aceitar um papel "forte" para a componente Metafísica, fora de qualquer sentimento de raíz positivista!