OS IMPREVISÍVEIS ENCONTROS
--- Memórias de um "Museu Imaginário"
"(...) O asfalto estava pejado de carros que buzinavam sem tréguas. As motos subiam para cima dos passeios e abriam caminho por entre os peões. eu pensei em Agnès. Havia dois anos, dia por dia, que a imaginara pela primeira vez;estava então à espera de Avenarius numa cadeira de repouso do clube. Fora por isso que hoje tinha pedido uma garrafa de vinho. O meu romance acabara e eu tinha querido festejá-lo no lugar onde nascera a sua primeira ideia.
Os carros buzinavam, ouviam-se gritos de cólera. Numa mesma atmosfera, outrora, Agnès desejara comprar um miosótis, uma só flor de miosótis; desejara trazê-la diante dos olhos como último vestígio, mal chegando a ser visível, da beleza. ".
Milan Kundera, "A Imortalidade".
I - EXPOSIÇÃO TEMPORÁRIA - os "primitivivos".
Há, na vida, incomensuráveis ironias! O mundo da Criação abriu-se-me de forma insólita, num antiquíssimo Natal já desfeito na bruma da infância quando, num amanhecer mágico e gelado, sobre um fogão de lenha, num sapato sob a chaminé, estava um livro de colorir e uma caixa de lápis de côr, mesmo à beira dum "arremedo" de tanque de guerra, com lagartas em borracha, que cuspia umas vagas faíscas pelo canhão de "folheta", sempre que se fazia pressão no chão da cozinha...
Claro que passei a manhã a gastar a pedra de isqueiro escondida por trás dessa artilharia, imaginando índios ferozes, como nos filmes de Gary Cooper ou as bandas desenhadas de Roy Rogers, e eu a debitar metralha em todas as direcções dentro do monte de lata da imaginação.
Acabados os "fulminantes", com fastio, dediquei-me a aguçar meticulosamente os lápis de côr, em caixinha de cartão, de aparência análoga aos maços de cigarros que então se vendiam. O bico era mole e desfazia-se, a madeira que suportava o "crayon" esfarelava-se e o lápis só diminuia de tamanho na vertigem do aguçar, até se transformar num "coto" informe, mesmo para dedos infantis!
Lá pintei como pude umas inconsequentes figuras sem relação entre si, um urso polar, uma galinha, uma margarida, um lago com nenúfares que logo me fez trazer gulosamente à memória o desejo dum jogo de cartão da Majora, em opulenta exposição no "Bazar dos 3 Vinténs" numa esquina da R. de Cedofeita (ainda hoje, degradado e doente, lá permanece!), onde num aquário de cartolina se deitavam vários peixes de papelão colorido, uma sardinha, um goraz, um linguado, uma espécie de baleia (para mim, nessa altura, classificada como "o maior peixe do Mundo"), fauna aquática essa que terminava numa argola metálica que lhes perfurava um local algures entre as guelras e os olhos.
Então, com umas canas de madeira pintada a côr-de-rosa, aí com 15 cm. de comprido, descaía um pedaço de "fio do Norte" onde se suspendia um íman e os jogadores pescavam, um de cada vez, marcando-se a pontuação no fim!
Quanto à pintura a lápis de côr, gastou-se nessa manhã de Natal e o livro perdeu-se nas mudanças de casa que entretanto se deram!
As artes plásticas eram então coisa estranha, depositadas em museus onde se andava pé-ante-pé, com respeito e silêncio, como nos velórios, cochichando baixinho e, nunca por nunca, tocando em nada! Molduras enormes, de "torcidos e dourados", delimitavam esses incomensuráveis metros de telas, onde se presumia que estava "A Arte" e eu, indiferente, só pensava quando acabaria o martírio e ia jogar o pião com o Horácio, vender velhos livros a um alfarrabista, para tocar os proventos por bilhetes nas sessões de "2 filmes" no "Carlos Alberto", salão cinéfilo das "classes piolhosas" do Porto, bem próximo daquela sala mágica do "Cinema Paraíso"!
Arte, arte, eram as belas bandas desenhadas do "Príncipe Valente", do "Cavaleiro Andante", as aventuras de "Mortimer & Blake" em torno da "Marca Amarela", os irmãos Dupont de Hergé, a Castafiore e o foguetão de quadrados vermelhos e brancos na "Viagem à Lua" de Tintin e Milou. Pegava em papel vegetal e "copiava por cima", pensando na divina injustiça que dava às minhas mãos um balancear canhestro, língua ao canto da boca para ajudar à concentração do plágio, mas nem "copiando por cima" saía Arte!...
Aquilo era mistério profundo,talvez quando crescesse soubesse o "porquê"!
II. PISO 2 - "Sala das Memórias"
Cresci, como todos, nos dias intermináveis que antecedem os verdes anos, Liceus onde se "formava" para entrar nas aulas, corredores gélidos e marmóreos, contínuos com fardas azul e cinza, chefes e sub-chefes de Turma, que marcavam a giz no quadro os "MC" (Mal-Comportados) antes do Professor entrar, tudo em pé, no bolso fisgas e canivetes, caramelos comprados a um pobre homem que aguardava pacientemente a saída das aulas junto ao "Largo do Priorado", mesmo ao pé da velha igreja românica de Cedofeita, com um tira de couro luzidia por trás do pescoço, que agarrava uma caixa de madeira envernizada, com dois vidros-tampas por cima, sob os quais, embrulhados em papel celofane multicolor, espreitavam coisas açucaradas de mil-cores, do amarelo solar ao verde-bílis.
Todas estas iguarias se "propunham", quais donzelas do "Bairro Vermelho" de Amsterdam, à nossa inescrutável ganância de "doce"! Aquilo partia-se nos dentes, parecia grude que nos impedia na próxima meia-hora de abrir os maxilares, um "crac-crac-crac" fazia estalar os ouvidos e tudo por cinco tostões..
Arte era acertar com uma espingarda de setas nos alvos de papel da Feira Popular, o "Palácio", como então se chamava, em memória do velho "Palácio de Cristal", onde em miúdo alugava bicicletas com duas rodas de apoio atrás, nas manhãs de Domingo, e atravessava como uma bala as sombras frescas da "Avenida das Tílias", por entre barracas fechadas dos "Chocolates Regina", das tendas que faziam balões de açúcar, as "barbas-de-velho", e então já era o Alves Barbosa, o maior ciclista do mundo, só porque ganhava a "Volta a Portugal em Bicicleta"!
Apareceram então no Porto os primeiros "arremedos" de "Galerias", onde gente estranha, vestida "à Artista", perorava em gesto largo e linguagem bizarra, sobre a "violência" dum azul, o onirismo surrealista duma paisagem onde não havia nem árvores, nem flores, nem pássaros, mas simplesmente uns objectos "espongiformes", que se derretiam na diagonal das obras, como aqueles relógios viscosos de Dali.
Não, ali não entro! Que vou fazer junto daqueles olhares iluminados de "entendidos", ainda mais hostis aos de "fora do clã", que os guardiães caninos do "Soares dos Reis".
III. SALA 3 - "Exposição bibliográfica"
Arte era a Literatura, os "livros-só-de-ler", humildemente confesso que começaram por ser os da colecção "Búfalo" e "Bisonte", depois os policiais de Mickey Spillane, as aventuras extra-galácticas da colecção "Argonauta", o Júlio Verne entremeado pelo medonho facalhão de Sandokan, o Tigre da Malásia. Até que, um dia, numa promoção de livros, gastei 500$00, uma fortuna de 2 anos de mealheiro, e recebi em casa, pelo Correio, uma série de Romances, a verdadeira abertura da minha alma banal à Literatura. Como era normal na "geração de 60", comecei pelos "estrangeiros", que Portugal era uma "chumbada", e pronto...
Que espanto ao encontrar "A Pérola" e "A um Deus Desconhecido" de Steinbeck, "O Velho e o Mar" e "Por quem os Sinos dobram" de Hemingway, "Um Certo Sorriso" de Françoise Sagan, "A Ponte", de Manfred Gregor, "A Peste", de Camus, os longos romances de Roger Martin du Gard.
Corria para casa e, avaramente, quando o livro começava a chegar ao fim, lia cada vez mais devagar, para "poupar", para evitar que aquele sonho acabasse, que a vida regressasse à banalidade dos horários com Geografia, Físico-Químicas, Françês, Matemáticas, História, Guerra dos Cem Anos, Guerra dos Trinta Anos, coligações e batalhas, tratados diplomáticos, rios e Continentes onde nunca iria, modelos em madeira de cristais que eram "arrumados" na estranha taxonomia de "monoclínico", "triclínico" e "ortorrômbico"!
Então, na TV a preto e branco, o boletim meteorológico era feito a giz num Portugal de papelão, no Natal as mensagens de Angola, Moçambique, Guiné:
--- "Daqui, Manuel António, falando para seus Pais, Irmãos Amigos e noiva Maria do Céu, deseja Boas Festas e Novo Ano cheio de "propriedades"!
Nos estádios, aos domingos, Eusébio marcava golos de meio-campo contra tudo que tinha a forma de baliza e, no Palácio de Belém, Américo Tomás recebia as "famílias numerosas" do Ano, uma galeria de desgraçados carregados de filhos, hierarquizados por alturas, posando para o "Diário de Notícias", uma condecoração, uma fita por cima do fatinho coçado e um "cabaz de Natal" com um bacalhau, uns azeites, umas latas de atum e uma garrafa de espumante.
Fugia daquilo tudo para o calor do Café "Diu", onde estava a "troupe" dos amigos, do "Diário de Lisboa", do bilhar "às três tabelas", das conversas pela noite fora, dos conhecidos que iam morrendo discretamente na Guiné, dos que desapareciam "a monte" para as Franças, as Bélgicas, as Alemanhas, assim escapando aos Editais trimestrais que decarregavam carne para canhão em Mafra, Tomar, Vendas Novas, Caldas da Rainha, quartéis onde se entrava para os próximos três anos e íamos parar aos barcos que partiam da "Gare de Alcântara", rodeados de familiares que nesse pedaço de pedra deixavam lágrimas que pesavam toneladas de amargura e silêncio.
Mas a Literatura salvou-me desse insólito Portugal, graças à "Cidade das Flores" do Augusto Abelaira, ao riso dos "Cotovelos de Vénus" de Santos Fernando, ao "Diário" de Sebastião da Gama, ao sarcasmo profundo das "Farpas", à melancolia irónica de "Fradique Mendes".
Afinal, a Arte estava ali, naquelas palavras magistrais, nos livros em segunda mão, na perfeição inicial dum parágrafo, dum adjectivo, duma figura que sintetizava uma época que agora vislumbro com a nostalgia dos 50 anos, mas onde não gostaria de regressar.
Descobri que estava "do lado dos Livros", das bibliotecas, do prazer de abrir com faca as páginas fechadas que me levariam a Samarcanda, ao "Deserto dos Tártaros", à Indochina de Malraux, aos quartos fechados de Sartre, à Alexandria turbilhonar de Lawrence Durrell.
Andava em "Filosofia", porque "Direito" não era possível, era só Coimbra, era longe, era caro, não podia ser e acabei por amar o que tinha. Os pré-Socráticos, a História da Arte, as "Culturas" não-sei-quê, não-sei-que-mais, acabando com um diploma em Latim, manuscrito de pergaminho, onde se pendurava um selo de lacre envolto em caixinha vagamente prateada, presa a uma espécie de fita de comenda, com o azul-de-Letras.
IV. PISO TÉRREO - "Fechado para obras".
Tanta Filosofia deu em ser colocado como professor de "Língua Portuguesa" na "Ramalho Ortigão", 22 horas mais 6 extraordinárias, três contos por mês, 10 meses ao ano até, nem sei como, aceitar ir para a Faculdade de Letras dar aulas, sempre pagavam doze meses ao ano o que, por acaso, era exactamente coincidente com o número de vezes que tínhamos de entregar a renda ao senhorio.
Foi-me entregue, entre outras coisas, a "Estética".Então, a Arte, falar da Arte, transformou-se num ganha-pão, agora era eu o Professor e estava do lado de cá daqueles rostos que ainda ontem se sentavam ao meu lado, nas mesas de tampo verde do velho edifício junto ao "Hospital de Santo António". Li livros e mais livros, e encontrei nesse "Museu Imaginário" a pintura,a escultura,a arquitectura, o urbanismo. Com eles me casei, como naqueles matrimónios contrariados da época feudal, decisão tomada por outros, viver com uma "estranha" e, miraculosamente, ano após ano, descobrir que nem sempre o Amor é um "coup-de-foudre", que se pode construir aprendendo diariamente que um afecto também nasce com a lentidão que levou a levantar das areias do deserto o templo de Karnak!
Bisontes de Altamira e Lascaux, frescos cretenses com o insuportável azul de golfinhos e princesas com tranças, as estatuetas de Tanagra e Mirina, o entrelaçado vertiginoso do Islão, os granitos comoventes do Românico, a luz de Giotto por entre névoas de ouro, as flores de Boticelli, o intimismo de Vermeer, os desenhos agrestes de Beardsley, as cabeleiras pré-rafaelitas de Rossetti, as noites com estrelas-lírios de Van Gogh, as ancas doces da Polinésia de Gauguin, os circos azul e rosa de Picasso, a pureza branca, amarela,de Mondrian, os sonhos de Chagall, o esbracejar convulsivo de Pollock.
E tudo aquilo me perseguia, o "daimon" que atravessava aqueles espaços, a indizível alegria, a calma, o sofrimento e a impotência das Palavras em "dizer" essas mil vozes que por aí andam desde o princípio do Mundo!
Até que descobri e aceitei que há mistérios insondáveis dentro de nós, que a Razão não é tudo, que há murmúrios e lugares que ignoramos, que todo o Sol define o contraste duma Sombra, que essa sombra varia com as horas, os anos e as gerações. Dessa Sombra irrompe uma espécie de Rumor, vindo de sítio-nenhum, algo que eternamente nos escapa e nos deslumbra.
Hoje, perdidas as certezas dos verdes anos, sei que a imortalidade se perdeu na alvorada de todos os "Mitos da Criação". Para nossa consolação, em memória desse tempo perfeito, deixaram-nos o canto de Orfeu e a alegria de Pã. Nas nossas vidas, em hora imprevisível, qual "Aparição", seremos visitados, talvez, por uma inexplicável Alegria.
Porto, Fevereiro de 1997