CANTIGAS D'AMIGO
Morreu ontem Tony Williams, só então lhe soube o nome, o vocalista dos "Platters", um conjunto nascido em meados da década de cinquenta nos "States" e que arrasava festas, bailes, estações de rádio, do Kentucky à Beira Alta. "Only You", The Great Pretender", "My Pray", "Smoke get's in Your Eyes", quem não se lembra? !
Voz romântica, aguda, acompanhada pelos ajudantes com coros, /PA, PA, PA, PAAAAA, /Only You/Can make the darkness bright/. . . , a menina dança, dizia-se timidamente após atravessar o salão em direcção ao friso de cadeiras onde, cochichando, em alvoroço e risinhos, se aglutinavam as meninas, belo caracol, bem bonitas e perfumadas, sapato de meio tacão e misteriosos "frou-frous".
As festas-baile lá aconteciam aqui e além, por aniversário mais marcante, nos carnavais, nos "réveillons", em casa particular, onde o acaso dos conhecimentos podia levar ao convite. Não havia ainda a
familiaridade de agora entre sexos, este forrobodó tu cá, tu lá. Damas e cavalheiros viviam em jaulas separadas, olhando-se através das grades com um misto de curiosidade e suspeita.
No salão de baile, como nos "rings" de boxe, cada adversário tinha o seu canto. A arbitragem ficava a cargo de parentes de piquete, não fossem as coisas descambar no exagero. O epicentro era sempre uma mesa com o "pick-up" e o monte de discos de 45 rotações, com as novidades musicais. Havia os "slows", sempre apetecidos para as marés passionais, o cabotino "cha-cha-chá", o descabelado "twist" e o sempre espectacular tango!
O problema era saber dançar, marcar o passo certo, não nos enganarmos e transformar a bailação num confronto de arranques, ele para um lado, ela para o outro, o horror duma calcadela, faça favor de desculpar! Para o piso deslizar bem nos sapatos engraxados, era uso espalhar nos soalhos ácido bórico, à custa do qual, na casa do Horácio, me esparramei a todo o comprido mais o par de ocasião, tendo ficado corado de vergonha durante meses.
Até chegamos a comprar um "livro de dança", daqueles que têm esquemas feitos com pés marcados nas páginas, setas e números, diagramas de tangos, rumbas, calipsos, valsas, a panóplia integral. E treinava-se com quem? ! Com uma vassoura, uma cadeira? Ora o diabo, que nos metemos em boa, dizia o Horácio enquanto folheava o Tratado da arte dançante. O melhor é fugirmos aos tangos, alegando necessidade de fumar e beber laranjada e avançarmos pr'ós "slows" que sempre são menos exigentes, já que basta agarrarmo-nos com unhas e dentes ao par e praticamente não sair do sítio, um para a frente, dois para trás, um para o lado.
Às onze da noite as meninas retiravam-se, à meia-noite acabava o baile, a gente refervia de paixões, amores fatais, os discos espalhavam-se nas mesas, Peppino di Capri, Françoise Hardy, Marino Marini, Paul Anka.
Regressava a penates, toca a arrumar o fatinho de ver a Deus, a gravata de belo recorte, o sapato rebrilhante de graxa. Nas profundas do cérebro, misturado com os aromas a pó-de-arroz e as memórias dos "frou-frous", ouvia-se ainda: "Oh! Yes! I'm the Great Pretender! ! "
15. 08. 92