USOS E COSTUMES
O que é que transforma um sujeito normal numa ave de altas plumas? É fácil! Basta ter um equipamento, uma fardeta, um boné, um distintivo, que a coisa muda de figura. . .
Em Portugal, sempre foi assim. Não há profissão, atitude, idade, que escape a tais tentações.
Eramos pequenos e, à primeira aberta, vestiam-nos "à marinheiro", vá lá a gente saber porquê. Talvez o Mar, os descobrimentos, a Costa Atlântica, estejam por trás disto! Íamos a passeio, tirávamos retrato e todos ficavam contentes. Mais tarde, veio a moda dos calças "à golfe" e boné para os dias de escola, um abominável boné com tapa-orelhas para os dias de frio, em flanela cinzenta, ficávamos com ar pingado, triste como o longo Inverno em que nos encafuavam a carapuça.
Mas não era só na existência privada que tais usos prevaleciam. Cá fora, na "sociedade civil", como é moda agora dizer-se, isso era bem mais notório. Farda de polícias, de bombeiros a desfilar com machadinha e capacete polido, fraldas negras de abade, farda de contínuo dos liceus, cotim cinzento com botões de metal, farda militar, farda triste da Mocidade Portuguesa, mais bivaque pela cabeça abaixo.
E os espampanantes porteiros? ! Do Coliseu do Porto, casacão até aos pés, alamares, dourados, luva branca; do Hotel Infante de Sagres, a abrir e fechar portas; do mandarete, miúdo de recados com chapéu à turca! Batas de professor, batas de médico, fato-macaco de operário, manguitos de alpaca, de amanuense. Diz-me que vestes, dir-te-ei quem és! Era essa a lógica da simbologia do vestuário.
E os bonés? ! Boné de cauteleiro, com chapa em cima, boné de arrumador de carros, boné de polícia, enfiado até à reforma, que até deixava no cabelo o baixo-relevo da tigela da autoridade, boné de fiscal da Câmara.
Só o Poder anónimo se disfarçava. Os dois extremos dessa arte eram a PIDE, a "secreta", e os fiscais de isqueiros. É que era preciso licença para usar isqueiro, uma imponente cartolina que dizia: "República Portuguesa - Licença de Isqueiro"!
Salazar queria proteger os fósforos, a "Fosforeira Nacional", os "amorfos", como constava da caixa de fina madeira onde eram vendidos. Portanto, todo o lume que escapasse ao monopólio da Fosforeira, pagava licença. Um tipo até podia ser abordado na rua por um fulano que, redobrando a aba do casaco, dizia:
--- Fiscal! Ora venha de lá a licençazinha! !
Constava que a única solução para a multa, quiçá o Tarrafal, era acender sempre o isqueiro "debaixo de telha", pelo que se recomendava trazer no bolso uma lasca do telhado de casa, a fim de tornear o espírito da lei. . .
Portugal é, de facto, um país extraordinário.
15. 08. 92