O BILHETE

 

    Tínhamos nomes afectivos, diminuitivos, chamamentos de ternura, ordens rápidas, arregalares de olho em tempo de asneira, mas a nossa identidade era indiscutível, sabíamos quem eramos e isso parecia-nos fácil, óbvio, natural.
    Só que essa era a lei da intimidade, da fralda e chupeta, quando muito do tempo de calção e bota de pneu. Aos 9/10 anos, altura em que chegavam as admissões aos liceus, como os franganotes das ilhas Trobriand, vinha o momento da iniciação, a altura das cerimónias de contacto com as repartições do Poder-A-Sério, aquele que ultrapassava o polícia de giro, ou o representante das trevas, que era o "Homem das Barbas" ou o "Homem do Saco".
    E era através do magno problema da identidade, questão filosófica tormentosa e indescernível, que eramos transportados ao 1º patamar da vida política. Tínhamos de tirar o Bilhete de Identidade, quer gostássemos quer não. O acto administrativo mobilizava fortes movimentações logísticas que sempre começavam com a fotografia-para-o-bilhete-de-identidade. Portanto, ida ao fotógrafo.
    Nada de "Polaroids", "Photo-Maton", essas modernices que nos dão ar de celerados em que ficamos arrelampados como quem contemplou os cofres do Banco de Portugal. Eram lojas com fachada, as mais espampanantes, ou com esguio corredor que dava para a antecâmara, as mais modestas.
    Espalhavam-se pela cidade em locais estratégicos, sítios de passagem, e tinham umas vitrinas onde se expunham as excelências da arte de Daguerre. Meio-corpo, corpo inteiro, cena de família, cena de devoção, tom sépia, retoque de cor, tudo era possível nos baldes alquímicos do fotógrafo!
    Bébés nús em cima duma colcha, com guizo na mão, de rabo pr'ó ar, à beira duma coluna de madeira; meninos da comunhão, vestidos de branco como o Liberace, terço de prata e missal, olhavam o LONGE, com um ar de pureza mística nada consentâneo com os esfolões que se avistavam nos joelhos; cenas de Ele-Ela, ele em pé, ela sentada em cadeirão, ele com a mão no ombro dela, como o leão do Sporting a possuir a bola de futebol; "gangs" familiares distribuidos segundo um plano inclinado, ao centro, sentados, os chefes-da-tribo, atrás as filhas solteiras, ao lado os casados, no chão e nos extremos, a criançada. Tal qual como a deslocação em savana dos grupos de babuínos, que põem sempre à frente, atrás e aos lados, aqueles que primeiramente seriam comidos por fera escamugida do capim.
    Bem. Entrava-se, penteávamos o cabelo num esconso onde havia um espelho a desfazer-se, uma escova e um pente e depois, pé ante pé, por soalho de tábuas, entrávamos no estúdio. Sala sombria, dominada ao fundo por um banco de piano e um cenário de adereços onde imperava o cadeirão, a coluna e o biombo. À entrada, soleníssima, a Máquina em tripé de madeira. Um enorme caixote rectangular de belo encerado, delimitado pela lente brilhante em tubo escuro à proa, e por um enorme canudo de flanela negra, à ré!
    Fora de cena, uma voz dizia:
    --- Ora, vá-se o menino sentando, que eu já lá vou! !
    Entrava, trazendo nas mãos uns quadrados de madeira e vidro, as "chapas", que eram encafuadas na máquina, por trás da qual o homem se sumia, enfiando a cabeça no útero de flanela, rodando manípulos, fazendo afinações, iniciando a função.
    Saía e, após fazer correr umas cortinas de pano branco na claraboia de vidro, por onde entrava luz coada como no limbo, dirigia-se a nós para a "composição da postura".
    --- Ora vamos lá a esticar essas costas!
    --- Cabeça para cima! !
    --- Pescoço quieto!
    As suas mãos seguravam-nos queixo e testa até ficarmos levemente de perfil, tesos, como se pendessemos dum gancho invisível seguro aos extremos do Mundo.
    --- Agora, não se mexa! Senão estraga-se tudo! ! . . .
    Ia outra vez, afobado, para dentro do tubo de flanela, mexia e remexia manivelas e lentes, preparava os derradeiros ademanes. Depois, punha-se ao lado da máquina, segurando uma bisnaga de borracha presa a um tubo que ia dar à lente:
    --- Vamos lá! Pode sorrir! Mas não se ria! . . .
    --- Olhe mais para aqui!
    --- Nada disso! Então menino? ! Que não saímos daqui hoje. .
.
    Teso como um carapau, desconfortável, apertado pelos colarinhos e gravata, já suava. Até que, finalmente, a Voz dizia:
    --- Agora! Agora! Quieto! !
    --- PLAC! PLAC!
    --- Pronto, já está!
    --- Pode descansar, mas não saia daí. . .
    É que o fotógrafo ia ver, não sei como, se as "chapas" estavam em condições. Caso contrário, começava tudo outra vez.
    --- Avé-Maria, cheia de Graça! Fazei com que isto acabe, que as fotografias estejam boas! !
    --- Pode ir-se embora, menino! Passe daí a oito dias!
    --- Obrigado Santa Filomena, Nossa Senhora de Fátima, Nossa Senhora de La Sallette. Estava a ver que não era desta!

    Oito dias depois lá tínhamos as fotos, guardadas em carteirinha com papel vegetal, todas iguaizinhas, brilhantes e polidas. Que estranho olhar-nos "cá fora", como se fossemos outros.
    Em casa as opiniõs dividiam-se entre o saber se "se estava Bem", ou se "se estava com ar pasmado". Mãe e Tia gostavam sempre, que rico menino, olha que bem que ficou.
    Finalmente entrávamos no Arquivo de Identificação com papéis, selos, atestados, mais as famosas fotografias, num edifício sombrio e imundo, a abarrotar de gente. Eramos medidos, tiravam-nos a impressão digital como se tivessemos assaltado o museu Soares dos Reis, mandavam-nos assinar o nome e, após isso, uma tesoura enorme recortava a fotografia até às dimensões minúsculas do quadrado legal desenhado no Bilhete! Ficávamos sem ombros, sem peito, sem braços, o golpe era dado pelas carótidas. Aquilo até doía!
    --- Irra! O Estado não é para brincadeiras! Olha-me só para aquela tesoura! !
    Lavávamos as mãos para tirar a tinta em lavatório sebento, todo manchado de azul, com um naco de sabão que escorregava nas mãos. Para as limpar, uma toalha contínua com 3/4 metros, girava sem fim desde a fundação da nacionalidade.
    Quando um mês depois recebíamos o livrinho encapado a preto, o almejado Bilhete de Identidade, olhávamos para aquilo com respeito. Ai, se eu perco o Bilhete! República Portuguesa, esfera armilar, Cidadão Nacional.
    Ora então sou um Cidadão! Isto manda "ventarolas". Nada que se pareça à pelintrice da cédula pessoal. Isso é coisa de miudagem. Agora é que sou um português a sério. Heróis do mar/Nobre Povo/Nação Valente/e IMORTAAAAAAALLLLL! ! /

12. 08. 92


 

  • © Levi António Malho   -  Regressar a   " De Literatura, um pouco..."
  • Actualizado em 13.04.2001
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