CASTIGOS
Há imagens de gulodice e ambição que chegam para encher uma biblioteca. Desdes as garrafas de água de Jacinto aos sonhos de Bismark, dos "Diamonds are the girl's best friends" de Marilyn Monroe à geofagia de Napoleão.
Claro que, obscuramente, há coisas mais mesquinhas e incompreensíveis, que davam para um tratado de psicanálise como, por exemplo, desejar possuir uma máquina profissional de cortar fiambre, sempre atestada com os imensos lombos do "Isidoro" inglês, com folhas de papel vegetal ao lado para nos servirmos, tal qual como nas confeitarias.
Desde puto que isto me persegue, para grande espanto meu. Mandavam-me buscar 50 gramas "cortados fininhos, se faz favor", à pastelaria Universal e lá estava ela, a máquina diabólica, por trás do balcão, coberta com uma gaze azulada por via do mosquedo. Ficava a olhar, embasbacado, o homem a dar à manivela e o fiambre pr'a cá e pr'a lá, caindo em apetitosa fatia numa espátula de pau, bem cor-de-rosa, tirinha de gordura, já salivava antes de lhe meter o dente. A caminho de casa, abria o embrulho e tirava, à má fila, um pedaço. E nunca me saciava!
Ah! Quem me dera dez quilos de fiambre, salgadinho e saboroso, para como até estourar. . . Cresci, passei liceus e faculdades, casamento e filha, e o fiambre permaneceu nas minhas fraquezas. Nunca chega, nunca é demais.
No frigorífico, a reserva esvai-se. Tanto faz 300 gramas como 800 gramas. Enfio-o no pão, em "croissants", em tostas, em bolachas, às mãos cheias pelas goelas abaixo até ao limite do enjoo, até não poder mais!
Não adianta. Feita a digestão, às vezes só possível pelo milagre terapêutico do "Sal de Fruta" Eno, o remédio miraculoso, lá vem ela, a Vontade de Fiambre! Pronto, é uma cruz que tenho de carregar ao longo da vida, que é que querem.
Não há compra de víveres que não termine por 250 gramas de fiambre! Que miséria, esta toxicodependência. Sou um drogado, um "junkie" de fiambre. Para quem tem um nome judeu, como é o meu caso, sinto uma maldição bíblica a sobrevoar-me a alma, pois o porco é o imundo por excelência, o impuro-em-si!
Arderei, pois, no mais fundo dos Infernos e o mafarrico, para me atormentar, terá para toda a eternidade, junto da frigideira onde recozo a fogo lento, 150 gramas de fiambre acabadinho de cortar, eu a esticar o braço e aquilo a volatilizar-se nas labaredas sulforosas atiçadas por Belzebu em pessoa.
10. 08. 92