A CIGARREIRA
Meteu muito lentamente a cigarreia no bolso interior do casaco, com um gesto antigo de há muito perdido na roda dos alcatruzes dos usos e costumes. Usava chapéu, uns grossos óculos, um enorme casaco cinzento e umas calças que o apertavam já perto do estômago. Tudo o que fazia parecia passar-se num sonho, debaixo d'água, ou na Lua! Sabem, como aquelas imagens do astronauta Amstrong em 1969, em que quase se ouvia o respirar, de tão esvaziado e lento era o espaço que o rodeava.
Acendeu muito sorridente o cigarro na mesa à minha frente, acompanhado por duas senhoras, provavelmente a mulher e uma amiga, ainda tesas e frescas, apesar dos sessenta e muitos que deviam ter. Mandaram-lhe vir "meia de leite" e um bolo de arroz que deglutiu sem gosto, como quem toma remédio, lá terá que ser.
Só a cigarreira lhe iluminou uns olhos ainda azuis, afagava-a, carregava no fecho e olhava a fila de cigarros presos a uma fita de cada um dos lados. Escolheu cuidadosamente, rolou-o nos dedos, nem ouvia as conversas nem nada, só o fumo o distraía, olhava-o a subir, como aqueles opiómanos de Xangai nas bandas desenhadas do Oriente dos anos 20. Magríssimo, peles dum enorme pescoço saíam da gola do casaco como
quando as tartarugas da Joana se levantam à superfície da água.
Imprevistamente, um enorme contentamento percorreu-lhe a alma que vogava em Júpiter e na constelação de Orion, quando um miúdo que mal sabia andar e que chorava se lhe encostou à perna, enquanto os pais tomavam café ao balcão. Com mão trémula fez-lhe uma festa nos cabelos e o puto acalmou-se e, incrivelmente, deitou-se-lhe no peito. Riu baixo como se achasse natural aquele túnel que liga os extremos da vida, os que chegam e os que estão para partir.
"Sabes", diz a mulher para a amiga, "o Manel sempre teve esta coisa com as crianças, que não sei que descobrem nele. Adoram-no à primeira e pronto! ! ".
Não durou isto mais de um minuto, os pais puxaram-no, anda que temos de ir para a praia. Diz adeus ao senhor, vá lá.
Sairam e o seu rosto partiu imediatamente para os confins do Universo. Só as mãos afagavam a cigarreira de prata velha, quase amarelada. Ela e as crianças eram, para o Sr. Manuel, um recanto perdido do Éden que abandonamos quando, por obscuras razões, Deus se esqueceu de nós.
08. 08. 92