SEMENTES

 

    Ficava numa esquina e sempre que por lá passava deixava-me ficar, intrigado, a olhar. Era uma loja de sementes, destas casas que se chamam "Horto Luís Moreira e Filhos" ou qualquer coisa parecida, e simulam aquilo que poderia ser uma Arca de Noé do reino vegetal. Dúzias de saquetas de papel colorido, finas e leves, geometricamente equilibradas por milagre de arrumação, faziam-me sonhar com o que seria o Paraíso antes do Pecado. Uma enorme HORTA onde, pela frescura das manhãs de Primavera cresciam, viçosas, aquelas imagens suculentas de abundância, aromas, sabores, cores. Coisas tenras, húmidas de regas, orvalhos, vá lá, duma chuva que tivesse caído durante a noite.
    Os desenhos e os dizeres eram incríveis. Alface "Bola de Manteiga", espargos de França, couve-flor de "fino sabor", hortelã picante, espinafres "fortificantes" e por aí fora. Era a multiplicação dos pães (neste caso, dos legumes! ! ) e daí vem a minha crença campónia nas sementes. . .
    Deitar uma coisa pequena à Terra, tapá-la e regar. Regar muito! Esperar, observar, esperar, regar. Um dia, uma ponta verde emerge, cambaleante, dessa mistura mágica, uma coisa frágil, precária. Ajudá-la a crescer, engordar, pensar num negócio à escala nacional, toda a gente ansiosa pela chegada dos cabazes, fazendo bicha à porta de casa, comprar uma quinta e adaptá-la com reformas tipo "Fidalgos da Casa Mourisca", passear pelas tardes observando milhos, feijões, provando a uva, acariciando com olho oblíquo oa pomares, a "criação", os gados.
    Nunca pensei que a abundância fossem as prateleiras de supermercado, mas a possibilidade do auto-abastecimento. Sai-se à horta, ao pomar, ao galinheiro e colhe-se. Duas pencas, quatro bons tomates, umas alfaces, ovos amarelos e, se tivesse coragem, uma gorda galinha para canja com todos os matadores! Só era preciso estar atento às lesmas e aos ladrões, vejam lá a santa inocência. . .
    Claro que nunca nada disto se realizou, mas que tenho secretamente jogado ao "faz de conta", isso é verdade. O acaso fez com que, tirando dois ou três anos, sempre tivesse um quintal, aí organizando com frustrações sem conta, semeaduras e colheitas. Caroços de tangerina, de magnório, feijões, milho, são periodicamente encafuados na Mãe-Terra e regados, regados, regados.
    Em regra não dá nada. Mas, às vezes, o milagre acontece e o meu contentamento não tem fim.
    --- Vês! Vês? ! Ora aí está. . .
    --- Isto numa outra escala, com uns bons adubos, terra fértil e muita água, era uma negociata da China! Adeus "Continente". Adeus "Euromarché". Vou-me abastecer à Horta, acabou a mama, grandes ladrões, estupores! !
    Mas o cume da paixão, a admiração profunda, são as árvores. Essas coisas belas como não há outras, a vida no seu estado mais sólido, troncos que afagamos, que respiramos, sinalizam os ciclos do Tempo, o ocre dos outonos, os botões de Fevereiro, as sombras de Agosto. O vento a passar pelas folhas, os ramos a ranger nas tardes de inverno, a frescura que sai do espírito bom que as habita. Subir às arvores, fazer uma casa nas árvores, saber que aquela árvore já cá estava quando nascemos e ainda cá ficará para depois, tanto depois. Árvore da Sabedoria, árvore do Pecado, árvore mágica de "A um Deus desconhecido" de Steinbeck. Sequoias, pinheiros, castanheiros-da-índia, cerejeiras, rododendros, azáleas, infinitos nomes de Deus. E já agora, seja-me permitido um pensamento doce para uma macieira "Star King" de quatro anos com 40 maçãs a engordar e ganhar cores de fazer crescer água na boca, para um chorão decrépito mas imortal, um pinheiro adoentado mas vivo, 2 jacarandás esguios mas terríveis, uma nespereira que promete e, por fim, para mais duas sementes de bela fruta que, às escondidas da Isabel e da Joana, plantei em local que não revelo. 
    Agora é só regar. Regar. Regar.

12. 07. 92
 


 

  • © Levi António Malho   -  Regressar a   " De Literatura, um pouco... "
  • Actualizado em 13.04.2001
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