INTERVALOS
Meninos, hoje não sei que diga, que faça, que pense. Que ele há horas assim e nada há a fazer. Aliás, bem vistas as coisas, a maior parte da nossa vida é feita desses momentos que não são peixe nem carne, terra de ninguém onde não cresce ideia, viv'alma de sensação, estamos para aqui, como alforrecas ou esponjas, com os pseudópodes ao vento, esperando uma partícula alimentar trazida pelas correntes e, com desfastio, engoli-la!
O tempo que está marcado no relógio biológico, isto se não formos atropelados, assaltados, cairmos num poço ou presos pelo fisco, é gasto com displicência, como nas histórias de infância em que os reis saíam à rua e atiravam moedas à populaça só para mostrar que há no Poder um esbanjamento. . .
Tantas horas deitadas fora. Um terço da vida a dormir, essas ausências que prefiguram a morte, como tão bem disse a Marguerite Yourcenar sobre o sono do Imperador Adriano. E os tempos de espera: do autocarro, da consulta médica, do amor, na bicha do correio, na portagem da auto-estrada, espera que a sopa arrefeça, que os alunos terminem o ponto, que a caixa Multibanco responda ao pedido de 5 contos. Espera que passe a chuva, que venha o Sol, que a água do chuveiro aqueça, que o jantar esteja pronto, que a cassette rebobine.
Tudo bem somado, ficam umas aparas onde tudo funciona no máximo, somos nós próprios por 30 minutos, uma manhã excepcional, um, dois dias milagrosos se tivermos sorte. O resto é o "monco", a carcaça a ajustar-se e ranger, os miolos pudim flan, PLOF, PLOF, para um lado e para o outro, translúcidos, sintéticos, apagada e vil tristeza. Como se na cabeça não houvesse nada: "Menino! Não esteja na lua. . . ". Andas a dormir na forma.
Há, de facto, em tudo isto um enorme desperdício. Mas talvez seja a desproporção entre o nosso corpo e um espírito monstruoso que nos escolheu como morada. Se o deixarmos fazer tudo, parte-nos aos pedaços, enlouquece-nos, chupa-nos o tutano e depois deita-nos fora. Essas feras que estão cá dentro, o "Lobo das Estepes" do Herman Hesse, têm de ter trela curta e açaimo na dentuça. Portanto, ó corpo, refocila em laranjadas e chocolate, estira-te num sofá, enche a pança, palita o dente, ressona, grunhe. E de vez em quando, como quem acaricia um tesouro, abre as portas da alma, aspira-lhe o pó dos cantos, perde-te nas florestas e rios que por lá há. E leva um mapa, uma corda comprida e forte, walkie-talkies e radares, nunca abras todas as portas.
E regressa ao fim de meia-hora, ou mal sentires uma corrente de ar ou uma vozinha fininha a suspirar baixinho: "Anda cá! É só para te mostrar uma coisa. . . ". Pernas para que te quero.
29. 06. 92