TROPA FANDANGA

 

    De manhã. Sempre de manhã, desde há 15 dias, este gesto inútil mas bom de espapaçar a alma num caderno preto, de me deixar falar ao correr do vento, do que vem à cabeça, convenientemente filtrado pelo ferrete da consciência que nos sugere que mais do que se dizer o que se pensa, se deve pensar o que se diz. . .
    Tempo fresco, nevoeiros, as orvalhadas de S. João, noites em que se não vê um palmo à frente do nariz, a ronca do farol de Leça a gemer como contribuinte em tempo de imposto, altura das chamadas "festas populares", S. António, S. João, S. Pedro. Miúdos que ainda pedem um tostãozinho para a cascata, para o Santo em barro pintado, os matraquilhos, os pavilhões de farturas, carrocéis, manjericos, o diabo.
    Aqui, no Porto, o rei é S. João, o forrobodó a noite de 23 para 24 de Junho, agora temperada pelos plásticos que substituiram o alho porro e a cidreira, uns enormes martelos que fazem TAC, TAC, TAC, durante dias e dias, pré-anunciando dentro de uma década um festival "hooligan" dentro de portas! Pelo que, nestes últimos anos, fujo dessas multidões frenéticas de borga, de confraternização inter-classista, de chinfrim que põe a cabeça em água. Vejo os balões que sobem, os fogos-fátuos da criançada da vizinhança e aturo a radio-cassette-pirata duns marginais suburbanos que escolheram como pocilga a exacta horizontal da janela que dá para a rua.
    Um sapateiro que vive com a "gorda", uma hipótese de serralheiro que comprou um Ford Cortina cheio de luzes e a desfazer-se, umas "primas" de língua afiada a quem os autocarros da carreira 52 deixam à porta da viela, uns gajos que se põem em "bermudas" com palmeiras, compradas no Continente e deitam abaixo as derradeiras árvores dum quintal para construirem barracas com antena para a TV espanhola. Broncos, falsamente espertos, sub-produto tóxico do liberalismo que campeia, são sinal dos tempos que vivemos.
    Essa bicharada perigosa é o contrário dos "miseráveis" do Victor Hugo, ou dos explorados da terra dos romances de Redol que comoveram a minha adolescência e que eram honrados e justos, mesmo quando violentos. Esta cãozoada é simplesmente imprevisível e má, feixe de instintos de destruição, a sua lógica é o caos, riscar carros, rebentar sacos do lixo, matar andorinhas, mijar nas flores. Temo que não seja um problema escolar, que não haja recuperação, que nada mais reste senão açaimo e trela curta!
    É isto uma visão catastrofista, uma reaccionarada dum gajo que está bem instalado na vida, ou simplesmente a constatação duma imparável poluição sociológica no pandemónio que acompanha todos os fins-de-século? !

 

19. 06. 92