O GIZ

 

    Isto está a tornar-se um vício. Todas as manhãs, trazer o caderno e escrever, como o polícia de giro que passa pelas mesmas esquinas para "manter a ordem" ou, mais prosaicamente, para tomar nota da ocorrência.
    Estou sob tons de azul, não na alma, mas na roupa, como aquele personagem do "Yellow Submarine" de que falava o Sardo, nos tempos em que era fácil falar com ele. Azul que é a farda portista, dos "azuis-e-brancos", dos "Dragões", epíteto pseudo-feroz da comandita do Estádio das Antas.
    Mas o meu azul é outro. Portanto, nada de confusões. A verdade é que há certas cores que nos acompanham conforme o sítio em que nascemos, a profissão que temos, as ambições escondidas que acalentamos. Azul do mar, do céu, dos olhos, cinzento das brumas, dos granitos, das madrugadas frias, verde dos campos, dos panos de casino, das notas de banco. Branco das neves, das casas caiadas, dos hospitais, das batas. Negro da noite, do luto, da lingerie, das sotainas, da anarquia.
    Como sou professor, há duas cores profissionais na minha vida, o preto e o branco. O preto das lousas, dos quadros e o branco do papel, do giz.
    O giz. Esse pedaço de caliça com que se escreve é o meu facalhão de açougueiro, a ferramenta com que corto em bifes finos os lombos da Ideia, parafraseando e Eça! Acompanha-me desde puto, o giz. Primeiro nas lousas, essas coisas arcaicas da "primária", debruadas a madeira, onde se riscava com uns estiletes contas de somar e subtrair que se apagavam com cuspe e com os dedos.
    Na parede da sala um quadro negro, a pedra, como se dizia:
    --- "Menino! Salta à pedra! ! ".
    E lá íamos nós entre filas, com bata branca ou cinza, pequenos amanuenses, resolver o problema. Que alto era o quadro! Mal chegávamos lá acima. Para apagar, nesse tempo, havia uns esfregões, restos de panos cheios de buracos, rotos de tanto apagar que deixavam rastos em forma de semi-círculo de névoa, nuvem de pó que enchia os cabelos, as mãos, a roupa.
    Dizia-se que os quadros, para ficarem a reluzir, só com azeite! ! E a cerimónia de sacudir o pano? De exagerar até ao picaresco a limpeza?
    E aqueles compassos de madeira que tinham numa das pontas um agulhão de ferro que se abria para desenhar circunferências, ajudadas depois por uma régua quilométrica com uma espécie de "puxador" no centro?
    E quando o giz tinha defeitos, uma areia, e fazia CRRRRRRRRRRRRRRR! ! ! E a gente arrepiava-se até aos confins do cérebro. . . E uma unha que raspava no quadro e se partia? E o giz de cores com que se faziam desenhos?
    Hoje, nas aulas, a lousa já foi substituida por uma coisa verde e sintética, onde o giz não pega como nos tempos heróicos! O farrapo de apagar pertence ao passado, transmutado numa esponja, bem mais funcional, mas bem menos poética. Mantem-se porém o pó, a mão que fica branca ao fim de hora e meia de esquemas, círculos, garatujas, o polegar que abre fendas e fica raiado de negro por muita água que se lhe deite, uma sensação de aspereza indefinível que só quem está na profissão compreende. 
    Ah! O crime infantil de roubar giz, já me esquecia. Quem não surripiou 1/2 "pau" e o trouxe para casa? Para quê? Bem, para desenhar quadrados no chão, para fazer pistas imaginárias onde se jogava a "sameira", competição velocipédica feita a piparote com tampas metálicas de garrafas de refrigerantes. (Soube muito depois que o nome "sameira" resultava duma laranjada vendida aqui na região norte, de marca "Sameiro", nome dum monte, duma romaria e duma Nossa Senhora nos arredores de Braga! )
    Havia o direito a "3 toques" de cada vez. Se ia fora, isto é, saía dos limites, começava-se tudo de novo. Eis uma boa regra, uma moralidade clara, uma justiça simples e eficaz. Que pena não ser o Artigo 1º de todas as Constituições.

 

15. 06. 92