PERFEIÇÃO

 

     É Maio. Tempo do princípio do fim da perfeição que todos os anos nos visita, essa hora milagrosa que vai do Solstício de Inverno a meados do equinócio da Primavera. Na 2ª feira chegaram as andorinhas. Que as vi ao fim da tarde, vindas do nada, do azul já apagado do céu, por cima do pinheiro, da macieira, do chorão. Gritavam o mistério da vida que se repete, subiam e desciam, aceleravam, rápidas, para os beirais dos telhados, arrumando a casa, limpando os musgos dum longo Inverno que sabem, terminou.
     Em pé, ao cimo das escadas que dão para o quintal acabado de regar, sinto a frescura do anoitecer, e deixo que uma grande paz me avassale este peso de carne e ossos (mais carne que ossos, diga-se em abono da verdade, pois a Joana até diz que Pai sem barriga não é Pai!), tomo consciência duma abertura ao mundo só possível quando os 15.000 músculos e ossos e artérias de que somos feitos, reunem em consistório para conspirar a próxima "malacueca" (é assim que se escreve? ! ), o que significa que é de aproveitar o instante em que não dói nada, que respiramos, digerimos, pestanejamos, o coração bate e a gente não dá por ela!
     Pois é esse o segredo da Juventude! Não darmos por ela! Quando damos por ela é porque perdemos o heroísmo da inconsciência, essa vertigem da corrida em que damos o máximo e nem pensamos no fígado, no pulmão, no "bofe" que rebenta!
     Valha-nos Deus. A Sabedoria é uma tristeza e a consciência das coisas um "ogre", porque andamos sempre a medir, calcular, pensar, a fazer orçamentos, tabelas, gráficos. Razão tem o Calvin, quando desce uma montanha num trenó sem estabilizadores, sem direcção, só para ver o que acontece, saborear a emoção no estado puro sem medo de se aleijar, partir uma perna, furar um olho, torcer um pé. Claro que se estatela, mas isso é só no fim. Durante a viagem é igual a Deus. Está na eternidade e no instante. Como se o mundo estivesse todo ali, condensado nessa encosta que se desce a 100 à hora, única circunstância em que atingimos o limiar da perfeição!
     E eu, quando fui perfeito? Uma vez ou outra andei lá perto, sobretudo quando me esquecia de tudo. Atirar-me dum terceiro andar para cima dum monte de areia num prédio em obras, lutar com o Horácio que tinha o dobro de mim e encarnava a figura de "Maciste", herói romanizado e musculoso dos filmes mitológocos italianos dos fins dos anos cinquenta, interpretados pelo avô do Stallone e que me apertava o pescoço, dizendo (a sério? ! ):
     --- "Vou-te partir esses cornos, cobarde! ! ! ".
     Ou quando fumava de enfiada 3 cigarros "Sporting" comprados avulso num tasco da Rua de Barros Lima, antes de ir ver a sessão da tarde no "Odeon Cine" na R. Pinto Bessa. Tarzan, Zorro, Gary Cooper, Cantinflas, Joselito, vistos em pé que a concorrência era muita e os bilhetes vendiam-se até a lotação estar esgotada, pois não interessavam lugares em pé ou sentados, aquilo era até caber!
     No intervalo, vendiam-se pães com marmelada a "cinco tostões cada", marmelada "Costa Moreira", daquela que vinha em tabuleiros de folheta, coberta com uma espécie de papel vegetal que não descolava, mas não interessava, comia-se papel e tudo até o "gong" tocar e chamar para dentro e "fartar vilanagem". Ai. . .

 

Porto, 08.05.92