OUTRAS COISAS

 

    Não damos por ela, mas estão lá, para aquém e além do poder das cores, da vibração dos azuis e rosas, dos cinzentos de Novembro.
    Eles, os sons e os aromas, um crepitar de lume, um soalho que ranje, uma canção de embalar, um afago, quase brisa, na barca leve do sono.
    Vozes familiares numa sala, portadas que batem com a nortada, um choro baixo de quem sofre e não diz, o silêncio do amor. Assobios dum velho rádio a válvulas, sino convocando a vésperas, uma torneira que pinga, o respirar forte da corrida que quase nos rebenta. Perfume da terra, da relva cortada, de campos regados, de maçãs fechadas num quarto. Faróis roucos no nevoeiro, canela das rabanadas, frescura do alecrim, um corpo de alfazema. Marés vivas, sargaços e iodo, insectos presos no vidro duma janela, insignificâncias.
    Fumos, carros que travam, cidades engarrafadas no alcatrão mole de Agosto, gestos obscenos, grunhidos de rancor. Sinais de princípio e fim, gemidos, murmúrios, coisas que se ouvem nas febres, na solidão dum hospital, nas celas dos que vão morrer.
    Afagos de mãos no escuro dum cinema, no irremediável dum adeus, no frenesim dum reencontro. Horas em que se não diz nada, não porque estejamos mal, mas porque tudo está perfeito, tu sabes, eu sei. Que bom.

 


 

  • © Levi António Malho   -  Regressar a   " De Literatura, um pouco..."
  • Actualizado em 14.04.2001
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