O RECADO
Eram uma instituição de utilidade pública. Conheciam toda a vizinhança nas redondezas e assumiam na altura a imagem mítica da abundância no Portugal pachorrento desses anos sem história: variavam essas lojas em dimensão e arrumavam-se em 2 grandes grupos: as "normais" e as finas".
Falo das mercearias, claro!
A mercearia era, como o nome indica, governada pelo merceeiro, etimologicamente, aquele que dá ou concede mercê. Isto é, favor, bondade, coisa útil. De facto, o merceeiro demarcava o espaço de tráfico das mercadorias em torno da superfície rugosa do balcão, espécie de muralha de madeira que se erguia à altura das panças dos fregueses, sobre o qual pousava uma balança com dois amplos tabuleiros de cobre, ao lado da qual se amontoavam os pesos, desde o microbiano grama ao grosso "Kilo" e seus múltiplos.
O merceeiro reconhecia-se, antes de mais, pelo lápis na orelha direita, pelas calças a cair e pela fralda de fora. Mãos acinzentadas e toscas de tanto acarretar batata, mexer em cebola, cortar bacalhaus com sinistro facalhão, cuja utilidade pública era manifesta, pois tanto dava para isso como para as broas de Avintes ou para os queijos Universal.
Hoje, tudo se vende ensacado, embalado, etiquetado, data de validade, fórmula química. Mas nessa caverna de abastecimentos, ninguém se lembrava disso. Havia sim contentores de madeira, castanha e polida pelo uso, que se fechavam à noite com tampa oblíqua. Lá dentro, arrozes, acúcares, feijão branco, milho para as galinhas, tudo o que era grão ou, se quiserem, entidades discretas e quânticas, como consta nos manuais de física.
Os víveres eram retirados com umas canecas metálicas para dentro de cartuchos de papel grosso e cinzento, às vezes com uma risca vertical azul, e eram pesados com alucinante rapidez, sempre na suspeita dum pequeno roubo de peso!
A conta era aposta num bocado de papel rasgado à mão e assente num livro preto, fino e alto, onde em cada folha constava um freguês, que pagava ao fim de semana ou ao mês. À porta da loja, um balde com bacalhau demolhado era remexido por quem passava, a ver se estava no ponto certo para a fritura ou cozedura do jantar. Tudo aquilo tinha um aroma peculiar que não me sai da memória, reconhecê-lo-ia onde quer que fosse.
No capítulo dos "molhados", havia os azeites, os óleos e os vinhos. Tudo isto avulso, aos quartilhos, aos "copos de três", saído do pipo ou do bidão metálico para o interior de garrafas a cargo do freguês. O mais que o homem fornecia eram as rolhas e, no caso dos mais pobres, improvisava-se um tapume de papel que fazia o mesmo efeito.
A mercearia normal não tinha montra. Entrava-se e via-se o que havia e pronto. Mas o sistema estava bem montado, isso é verdade! Queria-se sabão e vinha a pergunta:
--- Normal ou amarelo? !
O "normal" era para banhos e roupas, o "amarelo" para o chão e as raspagens a palha d'aço e esfregão de forte piaçaba. Num assomo de higiene, as barras de sabão, se não desse muito trabalho, nem sempre eram cortadas com a faca dos bacalhaus e dos toucinhos. . . Papel de embrulho, só para casos especiais! O costume era usar jornais velhos, presos mum prego, onde aram amarfanhadas as mercadorias mais pelintras.
Nessas lojas havia, por regra, o marçano. Um desgraçado miúdo de 12/13 anos, que fazia carretos e recados numa bicicleta em cuja traseira era adaptado um enorme caixote para entregas ao domicílio. O rapaz bufava, coitado, a puxar aquele monstro. Nas subidas, tinha de ir a pé, arrastando a bicicleta pelo empedrado das ruas.
Que impressão aquilo me fazia! Que vida triste a daquele miúdo, vindo das berças, dormindo na loja, a troco de almoço, dumas gorjetas e de muito pontapé. Quando as notas eram negativas, lá me vinha a ameaça:
--- Olha que te pono a marçano! Olha que vais pr'a trolha! !
Sabia o que isso era.
Merceeiro e freguesia atingiam o momento alto das suas relações pelos Natais, altura em que o reforço das encomendas engrossava os negócios, de tal forma que o homem, segundo costume da época, enviava um cabaz de oferendas, entregue em casa. Dele constavam uma lata de bolachas com vários compartimentos, uma garrafa de Vinho do Porto, um pacote de figos e nozes e um frasco de "solarina", de marca "Coração", para polir os amarelos, as torneiras, os puxadores e batentes da porta, sem esquecer o postigo da caixa do correio.
A mim tratavam-me por "o Menino".
--- "Que quer o menino? Ora diga lá! ! ", dizia-me o Sr. Peixoto da R. Barão de Forrester, mesmo por baixo da ponte por onde passavam os combóios.
Puxava pelo cérebro e, imponente, retorquia:
--- "A minha mãe manda dizer que é meio quilo de marmelada, um bocadinho de colorau e um chouriço de lata! "
Nunca falhava o recado, desde que, pela rua acima, viesse a dizer baixinho:
--- "Meio quilo de marmelada, um bocadinho de colorau e um chouriço de lata! Meio quilo de marmelada, um bocadinho de colorau e um chouriço de lata! . . . . "
09.08.92