O BICO D'OBRA

 

     Acreditam na conspiração das coisas? ! Naquele instante em que um conjunto de objectos, até então vivendo em paz, resolvem levantar-se contra nós, como "Gremlins", partindo-se, fundindo, fogão que não aquece, torneira que pinga, lâmpada que funde, telefone que não funciona!
     Não acreditam? ! Pois fazem muitíssimo mal e, ao sustentarem a tese oposta, a "teoria das coincidências", ficam desprevenidos para o grande embate que se avizinha. . . Dum lado, nós, os humanos; do outro, o "Poltergeist" das coisas a avariarem-se. Os picheleiros, electricistas e quejandos, exorcistas chamados à pressa, lutam contra o Mal com as suas alfaias sagradas, torqueses, chaves inglesas, maçaricos, "auto-clair 18/24", betumes, uniões de 1/2 polegada, massas e estuques.
     Mas, como todo o Mal, a sua superfície é enganadora. Por baixo do Mal está o Pior Ainda! E, sob este, o Péssimo! !
     --- Olha qu'esta! Isto aqui está um bico d'obra! !
     Assim sentencia o Sr. Santos, com a cabeça metida sob o lavatório.
     --- Isto aqui vai ter que ser "rabentado"! !
     --- Mas, ó Sr. Santos, talvez se. . .
     --- Não! Não! ! Isto é um perigo! Pode vir tudo por aí abaixo. . .
     --- Mas então, isto não acaba hoje?
     --- Ah! Nem pensar. Isto é um bico d'obra! É o que lhe digo! !
     E pronto. Ouço as coisas a rirem-se, a conspiração resultou, o Golpe de Estado avança. Entre a Anarquia, a "ekpirôsis" iminente e a Ordem, o Cosmos, só a besta do Sr. Santos do nosso lado!
     Do nosso lado? ! Deixem-me rir. . .
     O Santos é mas é o chefe da Conspiração das Coisas! ! É ele que vai à frente a abrir caminho! ! Ele, mais os alicates, martelos, picões, brocas, verrumas.
     Ajoelharmo-nos e rezar. Acreditar em Deus, invocar a Santa Filomena que, apesar de proibida pelo Papa, tinha sempre lamparina com azeite na cómoda da antiga casa.
     E por que não matar o Santos? !
     Apertar-lhe o pescoço até a língua vir para fora, decapitar o motim, eliminando os cabecilhas? E, com crueldade mongol, pendurá-lo no "BICO D'OBRA" e deixá-lo para ali, a oscilar, como nos filmes de terror.


16. 07. 92

 


  • © Levi António Malho   -  Regressar a   " De Literatura, um pouco..."
  • Actualizado em 18.04.2001
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