AS MARGENS

 

    Havia duas salas. A da "terceira" e a da "quarta". Para lá chegar circundava-se à distância a linha do comboio da Póvoa que atravessava então terrenos de cultivo, vastos quintais duma cidade ronceirona, cheia de pregões matinais de padeiras, hortaliceiras, peixeiras, afia-tesouras, as profissões hoje no museu.
    Entrava-se no "Grande Colégio Universal" (não confundir com o "Pequeno Colégio Universal" ou o "Médio Colégio Universal"! ! ) por porta larga, chão de mármores sólidos, gastos de tanta miudagem os atravessarem. Uma outra porta de vidros foscos e era o recreio em terra batida, amplo campo de futebóis que dava para os quartos dos "internos", aqueles desgraçados de Cinfães, Santo Tirso, Vale de Cambra, que só iam a casa em Natais e Páscoas. Lá ao fundo, em pavilhão separado, a "Primária".
    Mas atenção, pavilhão não era o que é hoje. aquela trampa pré-fabricada, de madeiras de Tabopan que abrem fendas, incham com as chuvas, com lâmpadas fluorescentes metade fundidas, metade a acender e apagar. Era casa mesmo, com escadas e portas, professores lá em cima à espera. Era dia de exame da "terceira" e a gente ia de calção e sandália, cabelo muito penteado com risca ao lado e "pôpa", húmido das águas lustrais dum banho bem escarafunchado em pescoço e orelha, sacola a tiracolo, atravessada nas costas, com os materiais necessários.
    Às 9 horas em ponto, tudo sentado nas carteiras de tampa inclinada, que abriam para uma espécie de caixa de arrumos, ensebadas de gerações, com golpes, dizeres, um tinteiro de porcelana ao meio, uma concavidade semi-cilíndrica onde se depositavam lápis e canetas.
    As esferográficas ainda não tinham sido inventadas, escrevia-se a "aparo" demolhado no tinteiro ou, se se fosse rico, uma caneta de tinta permanente de tampa de atarrachar e depósito com bomba pneumática.
    Havia dois tipos de "bombas". Umas que se ligavam a um êmbolo, accionado por rotação em sentido contrário ao dos ponteiros do relógio (esta frase ficou-me gravada a fogo nos miolos, pois entrava em muitas definições! ); outras por uma alavanca dourada que, no corpo da caneta, se levantava com a unha e se fazia subir em ângulo recto, pressionando o depósito de borracha. Era o máximo. Encher a caneta e ir ao encontro dos borratões. O borratão era uma instituição. As mãos pequenas não controlavam esse sofisticado equipamento de escrita, as canetas eram de tecnologia troglodita e a tinta desabava sobre o caderno, as mãos, os calções e a bata de trabalho, esse guarda-pó de modelo regimental que aparava a sangria e os lixos oriundos do esforço de conhecer.
    E quando se acabava a tinta? !
    --- Ó Sr. Professor, dá-me licença de pedir um bocadinho de tinta àquele menino?
    --- Anda-me lá com isso! Mas rápido. Nada de brincadeiras! !
    Era deliciosa essa operação de transplantação. Implicava nervos sólidos, subtileza de músculos, coordenação sensorio-motora "altamente", como agora se diz. . . Havia o dador de tinta e o receptor. Encostavam-se as canetas, uma na perpendicular (a "dadora"), outra na horizontal (a "receptora") e, enquanto um despejava a tinta no buraco do centro do aparo, o outro puxava imediatamente o êmbolo, aspirando o precioso preparado. Naturalmente que havia fugas de combustível. Isto é, borratões nas mãos, no chão, um palavrão a ajudar a trasfega.
    Mas como era dia de exame, a coisa não podia ser potenciada aos seus superiores requintes, até porque eram horas de entregar as folhas de prova. Esse extraordinário papel "almaço" de 35 linhas, onde se faziam as margens de 10 centímetros e se dobrava por ali abaixo, criando dois territórios tipográficos. Na margem era tabú escrever. Ai daquele cujas patas lhe fugissem para esse local intocável, reservado a Reis e Presidentes, Professores e Polícias. Ditado, Caligrafia, Contas, Redacção, Desenho à Vista, um estupor dum vaso em cima duma cadeira.
    Ainda hoje respeito as margens do papel, como neste caderno pautado. Tudo tem regras e limites. Nunca devemos escrever nas margens, viver nas margens, amar nas margens. Sabe-se lá o que pode acontecer.
   

08. 07. 92


 

  • © Levi António Malho   -  Regressar a   " De Literatura, um pouco..."
  • Actualizado em 14.10.1997
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