"Uma ou outra imagem" © Eduardo de Quina [2004] |
Primavera Quase
-- Variação digitalizada sobre uma tulipa transmontana --
© Foto de origem - Eduardo de Quina (2004)
© Arranjo digital - Levi António Malho (2004)
"Às vezes uma palavra toma-me
de assalto a frase; ou por tolo?
Olho-a muito: dissipa-se,
e a lacuna fica em órbita,
rondando o poema."
Sebastião Alba
uma flutuação imprevista,
na ignorância eterna
de uma despedida.
uma insuportável voz
que, sem tempo, fala.
uma verdade ou, um
resto de passagens,
na memória ignóbil do silêncio.
talvez seja tarde e, eu,
mais nada possa dizer.
no dia em que a tua memória
já não me pertence,
vamos por aí, os dois,
no desencontro harmonioso do acordar.
sem que já nada
te veja e me perturbe,
no segredo ambíguo sobre
o qual não podemos adormecer.
um simples segredo que se não perturbe
passa, sem que nada mais se veja.
uma quietude advertida na
ignorância acordada de um sonho.
não acordes, nocturno lugar
aonde regresso
nesta rarefacção de luz.
inquietação do que se diz
sem, que já nada esteja
nesta despida lembrança.
talvez a sombra, que ainda sonha,
aprenda a não dizer.
na linha transversal
que se abre na diáspora deste segredo.
modo de dizer ou recorte de jornal
na fome rápida de um cigarro
ou um passo, simples, na direcção esquecida
que sempre, e mais uma vez, se desenha.
uma flor que acontece
coincidência ou forma de impressionar
inesperado silêncio no
limiar da existência.
desejo de oferecer ou
um rasto de lembrança
viagem de regresso na
inquietação oblíqua da noite.
um dizer para não ter que falar,
esperança ou sombra de uma criatura
desejo, intenso, na necessidade
deste, pequeno, desenho.
o gesto, imóvel, da mão
o teu corpo que, devagar,
cai para lá do limite
intransponível da memória.
a tua sombra que se levanta,
sem sobressalto, na linha
de uma luz desordenada,
à qual voltaste brevemente.
um recorte que se abre
no impulso, invariável,
das tuas palavras sobre
as quais tombas silenciosamente.
no limite indefinido do teu olhar,
um sinal, uma breve despedida
ou um desejo incansável e sem voz
um estado de contemplação
na tortura de estar vivo,
na indiferença, alucinada,
deste, estranho, movimento, do qual
levantas a memória incompleta
e já não sabes ao que vens.
despertei na luz inverosímil da manhã
que se revelou insignificantemente despropositada,
não estava preparado para tal começo
não poderia haver tal verdade.
misteriosa harmonia na trepidação,
inquietante, do dia.
será verdade, este meu desassossego
onde me pairam os olhos
no terrível azul do céu.
devagar, bem devagar,
vou saindo para não me lembrar
do repouso que me condena as mãos.
dentro da carne nasce o medo
ou a solidão exposta de um desejo.
aproxima-se um rosto, que
desce, para dentro das mãos
na hora estabelecida que
só existe no limiar da vida.
uma hesitante manifestação da memória
na interna deslocação da fuga,
um canto que se fecha
na imagem, adormecida, deste silêncio.
a face que se abre até à dor
exacto, neste espaço breve
neste contorno desdobrado
onde tudo se violenta.
a lentidão do corpo circunscreve
um outro lugar, onde se
regressa, imóvel, à incerteza do abismo.
um voltar inútil ou
um outro retorno
que não finda no limite
perecível do tempo.
um gesto que se estranha
nesta decadente desolação da noite.
e é a face que se abre até à dor.
a imagem ou mudança continuada
deste reflexo, golpe, ou
morte que cobre a terra.
um encontro, longínquo,
sem corpo ou fome, onde
nos vemos na distância ou
dança última que quebra a dor.
e esse canto, extremo, ou
desespero que muda o silêncio
é luz que trás nesse desejo.
por detrás das sílabas um deus que se devora
e se consome, na plenitude da sua existência.
um olhar, apenas, para fixar a ignorância
de se escrever da ternura
do silêncio, sussurrante, onde, sem medo,
te assumes na perfeição do teu desejo.
na clandestinidade de me tomares o corpo
alguma coisa em mim se torna a
espera eterna do teu corpo.
do adivinhar intenso onde assume o rosto
na solidão imensa e transformada
de te teres vencido na derrota,
demente, em que deixaste a tua voz.
uma dor, profunda, que cava sulcos de dor
um olhar, eterno, na perseguição do dia.
já me pesam as mãos e
entrego-me, imóvel, à sorte e ao deus
louco que me olha do fim do mundo.
um saber que se esquece e,
interminavelmente, alguma coisa
se desprende de mim
para morrer uma morte infinita.
o movimento, indizível, das palavras
na transformação gravada que se esquece
e dizes-me coisas que escrevo
na memória a lume que me queima.
o meu corpo, que não tem nome
é, assim, o que resta das entranhas
para saber o sangue onde nos lemos
no instante que lembro a última solidão
das mãos rasgadas que te adivinham.
levantam-se as mãos,
segurando o medo que
trazem as palavras,
nocturnas, deste desenho.
uma viagem verdadeira ou
uma afinidade com a morte.
alguma coisa te tráz
no crepúsculo desassossegado
de uma saudade.
criei asas e voei, conceptualmente, sobre mim
um corpo infinito sobre uma verdade irremediável,
tudo acontece na ilustração
esquecida da minha memória.
ainda me reconheço em ti ou
no outro que o meu corpo se cobre
da interdição amaldiçoada
da minha presença.
essas mãos que transbordam
fazem o perfil exacto deste desenho,
um tempo que quase vem
à imagem desassossegada da tua face.
a noite que se move no
instinto repulsivo da ameaça do fim
e desafiando o horizonte
mostra-se um corpo extremo.
por baixo das palavras
um passo, simples, das mãos
que abrem as linhas
onde se constrói o tempo
que se esvai na medida do avesso
ou na protestada insinuação
que se atravessa no
corpo desta mulher.
o modo paralelo da divisão
na pele tocada pela mão solta
faz-se verdade o lugar habitado.
é diferente, o caminho que agora se faz
nele, cresce o corpo vão
que o rosto enumera.
ninguém mais tráz já este paraíso
das linhas traçadas sobre a exactidão
em que descontentes
nos olhamos ainda.
o olhar, inventado, do teu retrato
ou a imperfeição da imagem
que te mostra num tempo
ocultado e longínquo.
ainda é o teu sonho que nasce
por trás desta cor
esta sombra quase morta
que te mantém o corpo
é tão só uma celebração
embriagada do teu castigo
uma adivinha que se ergue dividida
no consolo inadvertido que
ainda se escreve junto a ti.
espaço, necessário, que, sem alcance,
destrói tantos dos nossos.
uma mão, quebradiça, na
verticalidade acidentada
em que cresce o teu sopro.
uma memória da tua angústia
no caminho transitório
que te atravessa a boca
um lugar que ninguém toca
num simples modo de dizer.
um corpo ou o
desejo único desta promessa
ou de cada tempestade.
o limite inventado, desta
simples perfeição
que se faz só de imagens,
que circunscrevem a nu
a recordação da tua idade
na invocação antiga
de livros que já não são nossos.
como se de uma verdade se tratasse
uma dor murmura ainda dentro de ti
ou o culto ocultado da imagem
que te venera
para te trazer dentro de mim
sem que já sejas o outro, esquecido,
na incansável lembrança de
ficarmos a olhar-nos, interminavelmente,
como se fossemos um mesmo rosto
ou a morte de nos termos esquecido.
o que o teu rosto ainda tráz
na imagem clara deste rumor
e não há maneira de voltar ao real
apenas o desejo, consumado, das
palavras que ainda te falam.
uma dor, repousada, nesta garganta
ainda dói a tua criação
que, na rima vaga, ainda se desprende.
neste retrato, quase comum,
alguém se sonhou de novo
de gestos desprendidos e um
golpe que, ainda, celebra
o desafio, intocável, da imagem
vazia da tua ternura.
um consolo, adivinhado, nestes braços
que procuram, ainda, uma promessa,
religiosamente, separada deste
livro de que agora te desprendo.
era aí que tudo começava,
o derradeiro instante desta construção
imaginada na perfeição inventada
desta recordação alucinada.
rarefacção de luz e, uma promessa,
antiga, define o caminho
presente que ainda resiste.
é diferente o desejo que
hoje ainda temos e
não somos mais, que o sinal incerto
deste paraíso que não começa aqui.