PEQUENAS METAMORFOSES
© Eduardo de Quina |
«Voei, não há dúvida. Simplesmente,
esqueci entretanto as leis da gravidade. E
quando caí em mim foi a desilusão total.»
Miguel Torga I talvez tudo isto
seja apenas eu
a ir devagar
infinitamente cheio de medos.
tudo se encontra longe de tudo,
há uma eternidade que quebra o silêncio
na imobilidade de a distância, afinal,
não ser nada
dentro da dor que habita.
a irremediabilidade do tempo
faz-me agora sem memória
e, a eternidade em que estou,
é feita de alguns silêncios
na indizibilidade de
uma incurável imperfeição.
calei-me, no movimento
inconsciente da tua morte.
e, no lugar da doença,
a inflamação desarmada
da indiferença.
V descansas, tu, sobre os meus olhos
descansas, sem consolo.
queria-te, assim,
imperfeita e sem ilusões.
não entendo o que se me mostra.
escuto-lhe os olhos,
afago o desespero, na insana certeza
de não haver palavras
onde descanse a ilusão.
VII olhei-te, no que restava de mim.
uma dissolução absoluta
que oculta o mistério.
um suicídio,
na imperfeição de um verso.
aos poucos regresso
à imobilidade da doença
que me leva ao destruir
da infância que me comove.
IX o silêncio, onde adormeces o rosto.
um resto de recanto
que se recolhe no desfazer da luz.
algo se encontra e regressa à estranheza
onde fugaz sobre o corpo um eco perdido
corre na ânsia de sentido.
pousado, sobre mim,
há um sorriso que se esquece
no gesto trémulo das horas.
X escuto-lhe a voz
e caminho até mim
na insana certeza
de afagar o desespero
dos versos onde
anuncias a morte.
e as palavras são apenas
o medo em que os
lábios se me calam.
XI vi-te dentro do céu
que desapareceu no dia.
não havia início
e não entendia
a inutilidade dos segredos.
queria verdades
mesmo que imperfeitas.
XII o sonho onde me deito
adormece sobre mim.
e a escuridão que
os olhos me trazem
é feita de alguma ausência.
o tempo que me reflecte,
não me sabe,
e este que me olha
não sou eu nem ninguém.
XIII PORQUE HÁ VOZES DE SEMPRE
ao professor Levi Malho
na reflexão onde me exteriorizo
alguma coisa se destrói em mim.
passo ao lado do aceno
e alguma coisa nasce em mim.
um outro já morto
onde deposito os meus gestos
e, inevitavelmente, falo sozinho
junto à imagem que me reflecte.
assim, na aparência,
não passo de ilusão
e a voz que tenho
não sou eu
são outros que me morrem.
XIV regressas, assim,
correndo à procura do pressentimento
sabendo que não há movimento
e tudo o resto se torna
um espaço íntimo e sem extensão.
XV BREVE
ouve-se o movimento
onde, sobre o indizível,
o olhar se desfaz
na surdez íntima
e anuncia-se um fim.
sobre a vida
pressente-se um cansaço do corpo
desterrado ao fundo do silêncio.
entre a silente medida,
das crenças,
o medo apodera-se do resto.
e, na ânsia de metamorfose,
unem-se espaço e tempo
sobre a medida do efémero.
XVI íntimo, o espaço, flutua
sobre a extensão do olhar.
em simultâneo um sorriso
quebra o gesto imóvel
da mão.
aqui, neste mínimo movimento,
o corpo vai de encontro
ao tempo decomposto.
onde, a dor, incompleta,
continua a ser diluição
de um voo indiferenciado.
XVII a luz que revela
o ver ausente
separa o corpo repousado
sobre o possível ou
o limite infundado do grito
despido, pronto.
levanto-me desta brevidade
forma de ser ou, tão simplesmente,
um consolo onde
retorno ao descanso do silêncio.
XVIII a dor, repousada
sobre o corpo,
vive indiferenciada a
lembrança da esperança breve
que prende a ausência
do encontro ténue
onde um diluir do espaço
se torna espera.
o medo reabre as mãos
pedras decompostas e
e não resta senão
a dor repousada
sobre o corpo
indiferenciada.
XIX olhas-me, perpetuamente, indiferente
olhas-me, e já por me olhares vês-me.
queria dizer-te palavras,
queria tão somente dizer-te.
não sei, não posso, não me deixas,
olhas-me assim,
só assim.
XX directamente sobre o cansaço, a morte,
um movimento inerte,
espaço e tempo indiferentes.
irremediável, insignificante, que cresce
onde as mãos habitam os corpos
transparentes, íntimos,
o fim.
XXI simultaneamente quebramos o silêncio,
erguemo-nos em paz,
mórbidos, plantados ao fundo da vida.
um corpo próprio que me cerca.
caímos, enfim, devorados pela primavera
onde inquebráveis vagueiam
pelo céu, correndo aves.
XXII um medo,
deito-me, levanto-me,
ergo-me, na quietude da noite,
vagueio doido inocente
face a face sobre o medo.
XXIII espero, as mãos
quentes húmidas gastas
que me cobrem o rosto.
espero, apenas a luta desigual
entre mim e mim.
imponente o sinal
fugaz a morte.
XXIV frágeis, como a luta,
os olhos tocam o resto.
revivem o nome, recordam a memória.
inférteis, voltam-se sozinhos a olhar,
desvendam o silêncio,
o disfarce das mãos.
XXV repousa, sobre mim, o corpo
toco-lhe, o desamparo que não habito.
breve memória que traça o sentido
sobre a ponte fria que nasce viva
na luz ténue que amarra o segredo.
XXVI pressentido resguardo onde
de olhos no corpo desvelo
a inocência do segredo.
as mãos repousam sobre os olhos
e numa breve viagem sobre mim
a carne rasga-se no esforço da descoberta
num lento movimento de luz
de morte.
XXVII a dor do outro extensa, inútil,
suporta o que resta da morte
lenta gasta desdobrada
nos segredos a que se reduz
desperta e sem tempo
consome o que resta do remorso.
XXVIII um sinal eterno,
certo como a dor,
que extravasa o que resta da indiferença.
um voo inseguro ou
uma simples esperança,
nada, ou quase nada,
já não muda.
XXIX fugaz o voo onde
a dor, eterna, se levanta.
de vidro ou de cristal,
ténue onde jaze o medo
breve transparente morre
sem silêncio
foge sem movimento
vai revolvida a carne
sangue ou a morte.
XXX a noite prende as mãos
morta, sublime, sobre o engano.
pressentida, mata,
breve o encontro
dilui-se o voo
incansada a sede.
já decomposto levanta-se
sobre a matéria, inerte, inócua,
um sinal, um ir ou
um simples regresso à pedra, ou espaço.
XXXI na hora em que perdi
resisti, imponente, impotente,
sei lá.
confundo-me na hora do deslumbramento.
resguardo-me inteiro,
apenas um corpo
jurado para sempre.
XXXII dormente, a vertigem,
cai sobre a memória.
um sonho que se abre
ainda, e mais uma vez,
na ausência que se
não pensa e torna
os sulcos, uma e outra vez, medo
de ir cair sobre o espaço ou corpo
onde pus sem resposta
a ferida que desce,
sobre o tempo.
XXXIII ainda por mim
tão somente um regresso
um campo infértil de memória,
ou uma simples vertigem
trazida uma, e outra vez.
um outro necessário
para além do descontínuo
que ainda a tua ausência
corpo movimento inteiro
a degradante
de vir aqui
ainda e outra vez.
XXXIV o grito infundado ou
um gesto pressentido,
transparente, aqui, e
ainda sem silêncio
nascem erectos os corpos
confundidos ou simplesmente esquecidos
ou, apenas desvendados.
uma crença ou
ainda uma luta desigual.
e tudo aí, ainda repousa
sobre o movimento
inconsistente da noite.
XXXV projectado, o espaço
dissolve-se na derradeira subida.
um encontro, ou simplesmente uma morte.
e, o gesto que me acompanha
também ele é um sinal,
uma estranha vontade de inocência,
no despertar do dia,
na extensa busca
onde me invento
na brevidade de ser.
XXXVI ainda, uma mudança
no olhar envolto perseguido,
num breve movimento tenso,
ou um sonho de memória,
aberta ou fechada,
uma redoma sem tempo.
e tudo quanto era em ti
espaço último e quebrado
onde um espelho nos reflecte
ainda e, assim, nos olhos
sem descanso
alheio a qualquer avanço.
XXXVII tangível o olhar e
por fim, toco o rosto, imóvel,
que diante de mim se dispersa
ou, se torna inteiro.
e, a parte alheia não muda,
pedra que não se atira.
ou, vida e dança,
movimento inconsequente.
ou, apenas um breve despertar.
por certo, o sangue ou
tão só a morte
aflita ao cimo do murmúrio.
XXXVIII quando, aí, cedo se toma o corpo,
um exercício de desvelo
próximo se torna mudo.
um mudar tranquilo fulgurante,
ou tão só, um simples voltar.
quando já nada basta
uma simples imagem,
íntima ou, modo de ser,
que se levanta contínua e alastra
discreta ou, gasta, no nascer
inoportuno de um cadáver.
XXXIX fecha-se o olhar,
é hora de silêncio.
e, por dentro do peito,
alguma coisa se destrói
para logo a seguir renascer.
uma guerra, desigual, rompe
e imana dispersa, lenta,
uma dor que não dói, sente.
ausente, a memória entra
numa viagem sem volta.
uma estranha mudança, sem rigor,
talvez um desejo ou somente
uma palavra injusta, incerta.
XL sobre a superfície plana, uma e
outra vez, pequenos sulcos de sede se abrem
pequenos rumores, incertos,
talvez apenas mais um outro encontro
ou só um nome, uma face
funda de dor.
perfurante lança
que se queda imóvel
apenas um reflexo que se fecha
e se abre outra vez no regresso
inconstante e sem memória.
um corpo sem pressa
caminha lentamente.
XLI exacto, o espaço desce ainda,
um simples regresso ou
tão só um desencontro.
o olhar perturba-se, e
torna-se sem voz.
reconhece o que falta e,
na múltipla imagem rasga-se,
para ser ainda espelho
de restos de dor.
XLII o olhar inventa o regresso
sob o resguardo persistente
da dilaceração angustiante da dor.
vãos, os olhos disfarçam
a violência inscrita
que lenta respira
e desce abrindo-se no
recolher hesitante da voz.
assim, exacta, caminha quase só
metamorfose do tempo
onde pus toda a alma
e regresso, agora, eterno,
ao lugar do fim.
XLIII ausente, retomo a luta
de tornar o desejo rigor.
ou, memória de partir
ou, palavra que se faz
e se não diz
que arde e que é dor,
e que oscilante muda,
e se recompõe tensa, desigual,
e volta tranquila e se
retém adormecida num
corpo, que já só espera a desgraça.