"A dança das Palavras"
Meditação sobre os "seres inúteis"
© Lúcia Costa Melo Simas .( 2012 )
Floresta de enganos
[ Placa de zona de acesso à "Casa da Música", em dia de chuva. (pormenor). Casa da Música. Rotunda da Boavista. Porto. 2011 ]
© Levi Malho - Imagem digital
As melhores palavras são as inúteis. As que nem dizem nada que não se saiba já. Só a ordem é outra e dizem o que, de repente, nos parece uma descoberta.
Nem tudo o que é inútil é bom mas o que é inútil é sempre bom. Por isso se gosta mais de chocolates do que de sopa ou de pão duro. Temos sempre mais alegria com coisas inúteis do que com as úteis. Pessoas inúteis são as melhores. O que pode ser mais inútil do que o riso de um bebé? As crianças, quanto mais pequenas mais inúteis são, e quem não gosta delas? Os idosos são perfeitos inúteis e sabem contar o que se esquece e não vai ficar para a história.
Uma pessoa designada útil por alguém que se diz amiga, desconfia de tal desinteresse.
É amigo, porque lhe sou útil? A frase mostra a máscara de alguém.
Os amigos úteis não são tratados como pessoas mas servem para as ocasiões. Há quem os colecione. Há quem os queira sempre bem perto. Há sempre gente a farejar amigos que “um dia podem ser úteis”, por isso não se esquecem. Como se fossem uma chave, uma porta de cavalo, um utensílio para escalar montanhas. O amigo útil inteligente descobre depressa a “ suave amizade”. Há quem se afaste devagarinho.
Chávenas, casacos, mesas, e lápis, carros, pão com manteiga são mais úteis do que canções, flores ou pássaros na janela. Um pássaro na janela até canta e entram flores na casa. Um casaco só é importante quando temos frio ou somos vaidosos. A vaidade é fútil mas aquece. Mais do que um casaco. É possível ver as pessoas vaidosas a sofrer por gosto e contentes. Têm frio com vestidos leves e saltos de agulha nos pés, têm calor com fatos bem apertados e quentes que só deixam a cara e as mãos de fora. Contrastes femininos e masculinos. Ninguém reclama.
As conversas fúteis têm tudo para não o ser, a ordem do dizer é que está errada. Muita filosofia passa pelos silêncios das conversas fúteis. Conversas que matam o tédio em vez de matar o erro ou moscas. Matar erros é uma tarefa longa que pode ser escrita em livros grandes mas os pequenos ainda são melhores.
Matar o tempo é um suicídio. Só que é um suicídio tímido. Dizer pouco é bom quando se diz só certo. Pouco se pode dizer se for certo pois errada é a verborreia, prolixa da eficiência ineficaz. Há pessoas tão generosas, boas e virtuosas quando guardam silêncios. Podem guardar-se coisas úteis ou inúteis, guardar lenços, malas, bilhetes, comida que sobrou, dinheiro que não se usou. Mas guardar silêncio é sabedoria e longa aprendizagem. Ouvir primeiro, antes de quebrar silêncios.
Os silêncios quebrados não se podem colar como acontece às jarras. Não há cola. Estilhaçam-se em mil pedaços e tem ecos mais fortes do que louça partida. O som da louça partida desagrada sempre.
O silêncio deixa inteira a voz alheia. Certas palavras têm grande eficiência que preenchem horas de dia e de noite, sem nunca parar. Entram por todas as frinchas das conversas e instalam-se na mente, como moscas teimosas, dão bolor aos bons pensamentos, transformam o senso comum em estupidez. A palavra eficaz diz, faz e vai-se embora ou ri-se.
É muito perigoso albergar excessos de bom senso que amolece e se transforma em prudência. Pior do que manteiga derretida pelo sol de verão. Mais um passo, a prudência muda para receio e do receio passa a medo. Tudo porque as palavras são terríveis quando se sacode tapetes de pensamentos já velhos.
Uma mente pode ser um sótão de coisas inúteis onde se escondem preciosidades. Nos sótãos entra o pó mas não entram as máquinas de fazer sonhos. De sonhos vivemos e raros serão os que não mentem. Um sonho esquecido num sótão pode ser um dragão adormecido que nem convém acordar. Há dragões que são pequenos e saltam de fotografias antigas que se teve a ideia de rever para fingir voltar. As fotos guardam sonhos e são sempre felizes.
Depois riem e mentem e, por serem pequenas até parecem crianças quando são cruéis. Quem não conhece a crueldade infantil não sabe quanto pode doer.
Aprendem-se muitas palavras por ano, por semana e talvez por dia. Outras ficam esquecidas e amontoadas nos cantos do pensamento. Julgamos ter as palavras em nossa mão mas são elas que nos levam. Quando nos levam, devemos saber bem para onde vamos. Por isso, até das conversas fúteis e úteis é bom afastar. Só quando estamos doentes é boa a hora.
Os sonhos plantados nas infâncias alheias dão pesadelos ou sonhos errados, velhos, nem sequer voam quanto saber correr por estradas perigosas. Sonhos que não sabem correr em estradas perigosas nunca são bons.
Agora, as máquinas de sonhos têm técnicas sofisticadas e vêm para sonhar por nós. São úteis e sonhos úteis dão pesadelos. Sonhos inúteis são uma forma de manter a saúde de todos os loucos em vias de se considerarem normais. Mas só os loucos têm valor e mudam tudo. Todas as biografias dos grandes homens ou até dos que o quiseram ser, demonstram doenças, anomalias e as mais estranhas patologias. Até hoje, nunca se faz biografias de gentes simples sem quaisquer grandes feitos. Se fossem escritas também eram loucos, com manias, epilepsias, tiques e fobias.
Os bons são estúpidos quando não percebem que ser bom só faz mal e o mal é que faz os bons. Senão ninguém era bom ou mau. Temos de nos tolerar para ter gente a viver como nos formigueiros, uns para fora e outros para dentro, atarefadíssimos, sem nunca saber porquê. Passados um ano ou dois, ninguém sabe se as coisas eram assim tão úteis. Raros reparam no andamento das formigas. Preferem matá-las a entender. Com as mesmas palavras que servem para lavar a casa e limpar o pó se pode matar um cento de crianças. A ordem das palavras é que é outra. Ninguém tem culpa de nada pois culpa, só a têm os tiranos. Inventam-se tiranos, por cada hora, cada dia ou pelo menos dois ou três por mês. Depois diz-se que são bodes ou cordeiros. Expiam. Uma palavra estranha hoje. Expiar era o pão nosso de cada dia. Todos expiavam pelo pecado. Se não o tinham, eram os dos outros. Agora somos todos inocentes.
As crianças aprendem depressa demais o perigo de ser bom, generoso, grato, por isso preferem crescer para mostrar como não aprenderam.
Saem de casa e não voltam. Não reparamos mas não voltam. Quem as leva já não as traz.
Tanto a Vida como a vida não se aprende. Vive-se e lamenta-se depois. As crianças olham para pessoas como para palavras e não distinguem uma formiga de um candeeiro quando se estendem no papel.
Andamos todos atrás das palavras e a vida anda à frente. Nem olha para os atrasados e trôpegos por um prego, um sono perdido, uma dor de dentes. Quando aprendemos lições da vida já se faz tarde, as portas estão a fechar e não serve para nada saber. Dizer isso aos novos é inútil. Eles são surdos como já fomos e passam a correr para onde fomos. Não sabíamos para onde íamos, mas íamos e corríamos. Agora não corremos, mas também não chegámos. Afinal, não interessa chegar porque basta acreditar que se chega e o resto é inútil.
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