"O tempo do vestido Azul"

  •  Sobre os "seres" que resistem

    ©  Lúcia Costa Melo Simas .( 2011 )

 
 
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    Memória colorida pelo Rio

[ Painel de Júlio Resende em azulejo pintado, intitulado "Ribeira Negra". Cais da Ribeira, junto ao Rio Douro. Porto. 2007 ]

© Levi Malho - Imagem digital

         


                                                       

 Há quem chame vocábulos às palavras. Isso é já entrar na aristocracia da mansão da linguagem. Um magnificente palácio para dicionários, enciclopédias e ensaios, decorado de erudição e adornado de frases de pompa e circunstância. Vocábulo é uma palavra vestida com bom traje de gala. As salas e salões do palácio da linguagem reservam os melhores para a semiologia, filologia, semântica, estilística e até cubículos para neologismos e jardins para a metalinguagem mitemas e mitos e mitodologias.
      É preciso conhecer a roupa das palavras para não nos enganarmos quando as usamos e elas nos podem trair. Por isso, há tantos equívocos por causa dessas indumentárias.
     As palavras que aprendemos são traiçoeiras e Wittgenstein percebeu esse jogo da linguagem, até encontrar o silêncio e a ética da ação. Lá por termos aprendido a falar, as palavras enganam-nos e são perversas, maldosas nos meandros em que nos colocam. Pensar e falar têm pontes oscilantes e fronteiras indefinidas. Quem acredita que diz o que pensa, mente ou engana-se. As palavras são só símbolos de um labirinto que vai até às trevas do inconsciente onde dormitam Freud ou Lacan. Estão aquém e além do pensamento lógico e da razão.

    Nos sonhos entendemo-nos bem. Não há palavras com aquela lógica aristocrata de belos e imponentes discursos. Os sonhos são democráticos e um modo de cada um conviver com a sua personalidade. Depois de acordados não os sabemos contar. Irrita isso. Dá perplexidade e deceção. Onde está a nossa lógica? Tão próximos  estamos nós dos nossos sonhos e cada palavra para a sua narrativa engana e perde autenticidade. É a mediação entre a lógica nocturna e diurna que não permite alianças.
     Esta é a época  que se diz ser da comunicação, quando tudo o que se fala é  para ser entendido ou não se diz. Simples, sem titubear ou complexificar. Por isso, cada vez que um filósofo tenta explicar na sua comunicação é impacientemente interrompido porque não tem nada de simplificado ou traduzível para um público apressado e que não gosta lá muito de pensar. Tentar fazer alguém pensar é uma tarefa que já não tem nada a ver com a comunicação nesta nossa era da rapidez e do pragmatismo ingénuo.   
    Há tantos nomes para designar este tempo que dá para encher livros só de conceitos. Modernidade, fase pós industrial, modernidade tardia, fase intermédia, pós modernidade tudo tem sentido. Mas se tudo tem sentido nenhum é certo.
    Ensina-se mal História. Porque se devia ir do presente para o passado, vendo os efeitos para descobrir as causas. Seria mais arriscado, mas mais aliciante. As distâncias do passado seriam mais reais. Os estudantes não mais iriam pensar que a pré-história foi há poucos anos e, ainda ontem, a civilização egípcia ali à esquerda, quase apanhava a implantação da república a poucos passos do 25 de Abril.
       Os jovens têm tanta confusão com as datas e a noção de tempo que falar dos seus avós seria muito benéfico para nos separar das diferentes épocas. Afinal, a história e toda a ciência é feita de erros e deles se tiram certezas. Iríamos em busca de um tempo desaparecido mas sem nos perdermos pelo caminho pois sabíamos sempre voltar a casa.
    Seria uma forma de não enegrecer tanto o futuro, descobrir-se-ia que, afinal, gostamos mais desse passado do nosso imaginário que inventámos, olhando de soslaio o futuro. Dentro de toda a lógica do nosso presente parece visar o futuro mas é  uma constante invenção do passado, olhando para os acontecimentos como, se analisando-os, pudéssemos imaginar que tudo tem lógica o que não é possível de provar. Um acaso torna-se num facto decisivo e uma batalha, por exemplo, pode ser alterada por um só soldado. Tolstoi, em “Guerra e Paz” coloca bem clara uma situação em que a morte de um mensageiro alterou por completo o destino de um exército inteiro. Numa grande narrativa histórica o comum dos mortais nunca tem o lugar que realmente ocupa.
       Se cada época tem o seu modo de olhar para trás, nenhum é real. Inventar passados, eis a profissão do investigador da história. O romano Cícero já desconfiava disso olhando para o passado que se recordava. Sabia bem como a história não era mais do que uma mistificação de reis, deuses e mitos. Quanto mais original, mais teórico e menos real. O imaginário é sempre o da nossa época. Só assumindo a nossa divergência já não haveria suspeitas.

   No quotidiano estamos libertos da suspeita. A história aí vive e continua a sua tarefa. Ninguém atravessa a barreira entre um acontecimento e a quotidianidade pois é um paradoxo insuperável. Quando se quer estudar qualquer quotidiano só se enumeram acontecimentos e ficamos pelo pano de fundo. Toda a mudança quebra a banalidade e esta não se pode contar. Bons historiadores dedicaram uma série de obras à descrição do quotidiano. Ora do renascimento, de Roma, de Cartago, dos Incas ou de Luís XIV enumeram-se acontecimentos e as rotinas no seu cerne mais real nunca é abordado. Estamos de fora quanto se pensa a quotidianidade, estamos a viver a vida quando representamos os nossos papéis sem nada de passivo ou indiferente ao rumo que depois a história segue. A quotidianidade é o paradoxo. Necessitamos dela para a segurança social, para a estabilidade mental. Depois o esquecimento é essa amnésia coletiva que transforma o tempo numa sequência falsamente linear.  
      Os massmédia estão no centro do furacão das mudanças e das suspeitas. Claro que no centro, como acontece em todos os furacões, reina uma falsa serenidade. Nem se dá por nada do que realmente ocorre, mas do que tenha sucesso para entreter, escandalizar e confundir. Basta comparar uma revista um pouco mais antiga com uma de agora, ou um velho programa da TV com os que as crianças vêm hoje para nos alarmarmos com a crescente escalada desumanidade, escândalos e crueldade. Até onde irá a violência e a falta de honestidade ou de uma dignidade mínima?
   Na encruzilhada das escolhas, o Mal não é nem informação nem denúncia. É entretenimento. A retórica ainda sai à noite e entra para os massmédia e invade todas as casas com a televisão. A publicidade sabe disso, usa e até abusa.
       O sistema espera a reação já bem condicionada e sem apelo que será por certo, a alegria de vender seja o que for. Vender é a necessidade da permanência na mudança e o equilíbrio no desequilíbrio. A emoção do “novo ou insólito” desperta uma nova necessidade, depois vem o sonho, onde as praias do imaginário se estendem sem fim, cresce o desejo e a espera, mas sem Pai Natal, é uma espera infinda porque só o objeto muda. A festa de hoje é a fruição do que se imagina ter amanhã. O objecto desencanta e nasce um novo desequilíbrio dirigido pela eloquência publicitária que apaga tudo o que é passado. Não
    há história para um consumidor e só o quotidiano resiste às mudanças. Como velho rezingão, a quotidianidade adapta-se mal ou nem se adapta.    O sonho de toda a retórica publicitária seria dominar o secreto e obscuro “dentro” onde as vidas se realizam em tramas tecidas por pessoas que, por felicidade, são anónimas. Os belos vocábulos não entram ali.  O quotidiano pode estar falsamente descrito em livros e calhamaços, artigos e mais ensaios. O que se capta é apenas o que salta cá para fora e já não é a banalidade nem a rotina.

  Aquele vestido azul que alguém usou nos verões  da sua juventude quando apareceu? Qual a data? Que problemas se viviam? Que se pode escrever acerca desse passado, mais além de saber que havia um vestido azul? Falar de  qualquer acontecimento já não era esse tempo do vestido azul tão indizível como a alegria do tempo luminoso e numinoso que já se viveu. A amnésia coletiva da quotidianidade ensina muito e é a força da adaptação sem rupturas sociais abruptas. O tempo e o espaço cíclicos não são rupturas nefastas.

      Nada para contar? Povos felizes, diria Hegel, das páginas brancas dos livros de história. Gente no quotidiano tem interação, tem sociedade, mas isso nem quer dizer que tenha história. É a desdita ou a dita dos grandes acontecimentos. Depois do que se afirma ser um Grande Acontecimento, espere-se pela onda que invade o quotidiano. Aí está o seu teste. Aprovado quando se seguem novos rumos de mudança por dentro. Ou o grande fogo foi de artifício e apagou-se sem ecos nem cores para narrar. A greve do dia seguinte, a festa da véspera, a inauguração pomposa. Amanhã apaga-se e a quotidianidade resiste na família, nos amigos, nos pequenos grupos, com seus segredos e sua força estável na teia social. E depois?
     Foram-se embora os vocábulos vestidos de trajes de gala. A moda passou, efémera e superficial e chega a amnésia que tudo cobre.   Espera-se à porta, interroga-se, mas Godot não chega nunca.
      A Vida, entretanto, recorda todos os vestidos azuis, os brinquedos dos natais da infância, as canções “do nosso tempo”, os aniversários sem datas. O quotidiano, na sua aglutinação e densidade é a segurança onde nada é importante e tudo a tem. É a história que resiste aos historiadores, que resiste a todo o totalitarismo porque é fora do círculo do poder e da política onde tudo estiola, que a realidade se tece com todos os seus subjetivismos e anonimato dos heróis do dia a dia.