"Página em branco"

  •  Nem Conhecer, nem Agir

    ©  Lúcia Costa Melo Simas .( 2011 )

 
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Do lado por onde nada passa

[ Caminho em manhã outonal (pormenor). Jardim Botânico. Porto. 2010  ]

© Levi Malho - Imagem digital

         


                                                                   

 

É desanimador saber que os governantes não são peritos em ciência política e que a prática se afasta absurdamente das teorias. Há também exemplos de desastrados leitores de ciência política que a transformaram uma arma capaz de fanatizar milhões e de torturar e matar muito mais.

            Platão sonhou, para a sua utópica República, um governo que nunca se coadunou com a realidade. Ficou esquecido, como se não fosse um sinal importantíssimo, o desastre de Platão e a sua experiencia na política. Ao querer pôr em prática as suas teorias, não em Atenas, mas em Siracusa, o resultado foi quase fatal. O rei Dionísio, prático nas coisas da governação, alarmou-se ao ponto de mandar o matar, mas ainda teve a sorte de escapar e ficar escravo de um homem que o quis para pedagogo dos filhos. Acabou por regressar a Atenas. Mas não seria útil de recordar melhor este acontecimento?

   Abriu-se um abismo entre a filosofia e todas as outras formas de saber. Da busca da verdade do filósofo de ontem, só o sofista de hoje é que continua na cena política em busca de persuadir e ganhar poder, fama e manipular as massas. Ironicamente, a Verdade, o Direito, ou a Justiça são conceitos usados que, na prática, a dialética da retórica deturpa sempre a favor do orador. Sócrates morreu sem herdeiros.

     A Política tornou-se arte da retórica, e claro que é não para atingir a verdade. Durante séculos, estudava-se retórico ou oratória como arte de bem falar. Ainda no século XX, os sacerdotes católicos não podiam ser pregadores, sem os respetivos exames. A eloquência, que a oratória proporciona, aliava-se à retórica como arte de exortar e persuadir.

   A retórica já não faz parte de qualquer currículo, se excluirmos a publicidade, e é ao acaso ou com apelo às suas aptidões que alguém desenvolve, com melhor ou menor resultados, a eloquência. Até a filosofia cada vez mais timidamente aparece em programas de ensino no na ribalta de debates.

 

    Os sofistas de hoje, políticos, advogados e professores não são preparados com a arte de argumentar. O paradoxo é a comunicação é fundamental nesta sociedade.

   Sabemos do êxito de Napoleão, Hitler, Lenine e tantos mais ao dirigirem-se às tropas ou populações, mas atribui-se isso a dotes pessoais ou a carisma. Encontramos no Padre António Vieira um exemplo vivo das possibilidades da arte de argumentar e da eloquência. Como diplomata, orador e defensor dos índios e africanos no Brasil, as suas capacidades foram postas à prova. Fernando Pessoa declarou-o “Imperador da Língua Portuguesa”. É obvio que a sua ideologia iria colidir com muitos interesses políticos e económicos e raro será quem se aproxime deste mestre da nossa língua.

 O pano de fundo de qualquer sociedade é ideológico. Mesmo que se proclame ter acabado o tempo delas, apenas estão num campo mais subtil. Curiosamente não é na política, mas na publicidade, que se desenrola uma retórica camuflada, enquanto psicólogos e sociólogos se encostam a campanhas políticas e se lamentam da desobediência dos seus “alunos”. 

Atento às mudanças sociais, Slavoj Zizek afirma que, agora é que estamos mesmo mergulhados na ideologia. No seu sentido etimológico é o estudo das ideias, sua formação e desenvolvimento, mas também é um fenómeno que ocorre subtilmente em todos os pensadores e formas de pensar. Só em Marx, na obra “O Capital”, encontramos mais de uma dezena de significados atribuídos ao conceito de ideologia. A irracionalidade é que não é visível, nem as mitologias que acompanham os movimentos sociais. a trajectória de um líder  na sua ascensão e queda verifica-se isso. A revolução que se transmuda em reacionarismo é comum. Seguir um líder é verificar como um sonho se torna numa tragédia.

As sociedades tecnológicas precisam dos eternos mitos, para poderem sobreviver na sua insensível repetição. Para Gilbert Durand os mitos estão sempre presentes. Através da ação dos mass media, os acontecimentos são manipulados, retocados e apresentados ao público. Não passam de “faits divers” escandalosos ou sensacionalistas e pontuais, que depois são divulgados de modo a preencher o vazio da monotonia das vidas tão condicionadas e controladas. O quotidiano é ainda o que mais nos protege da ameaça dos totalitarismos e da força das ideologias.

Toda a coletividade tem por trás uma ideologia e a sua organização, instituições e determinações do aparelho de Estado, do Poder e da Política estão cativos dela. O sempre cínico, Henry Kissinger reduzia a arte da política a relações entre países sem ter em conta quaisquer teorias doutrinárias. O Capital movimenta os acontecimentos e todos são apanhados nas suas malhas.

 

   Qualquer obra sobre política, de Aristóteles a Maquiavel até Althusser ou Pareto, tem uma ideologia que é necessário destrinçar da percepção dos factos, afirma o professor de política Sousa Lara. Autonomizada em tantas disciplinas Direito Público, Internacional, Direito Administrativo, Constitucional e tantos outros a teoria não passa para a prática. Sem o admitir, invade outras áreas constantemente. Presentemente a psicologia, a sociologia ou a antropologia cultural são ciências auxiliares da ciência política. A complexificação teórica crescente parece-se com uma burocracia do espírito cada vez mais pesada e inoperante.

O cidadão comum lida mal, com o que se rotula ciência e pede credulamente especialistas. Porém, a opinião de um especialista fora da sua área não pode ser aceite com essa ingenuidade infantil. É da pessoa em interação com o Outro que tudo depende. O quotidiano tem um anonimato em que conhece onde age. A família, os pequenos grupos são a segurança contra dissolução da mudança. O teste decisivo entre o conhecer e agir, remete-se para o dia seguinte de todo o grande acontecimento. É na quotidianidade, onde nada se passa, nessa amnésia social, que está a força do herói anónimo, inserida no plano da banalidade e da rotina repetitiva. Aí está a dinâmica, a criação e a espontaneidade do ser humano. Esse que vive as vidas na Vida que nenhuma política, retórica ou ciência conhece ou age melhor.

 Hegel tem toda a razão ao dizer “As páginas em branco são as dos povos felizes."