" Barro, Cavernas e Simulacros "

  • A propósito da "Caverna" de José Saramago

    ©  Lúcia Costa Melo Simas .( 2011 )

 

 

   

Dificuldade de Ser o que É

[ Água em fonte. (pormenor). Vila do Conde. 2007  ]

© Levi Malho - Imagem digital

         


                                                                    

  

 

      Viemos do barro para o plástico a uma velocidade assombrosa. De repente, tudo é tão possível de descartar que não se sabe onde começa e nem se pensa no fim. O uso das coisas tem um desgaste lento e o consumismo obriga a um desperdício violento, sem sentido, mas imprescindível para renovar e que o sistema continue a mover-se. O desperdício é a outra face do consumo. Muitas vezes nem se dá conta disso. Mas sob o império da moda, a alimentação básica é quase o único imperativo de imutabilidade.

   Com toda a lógica de meios para “ser feliz” e a irracionalidade de fins do que nem se pensa, temos uma visão de seres humanos face ao Outro, os estranhos, que nem rosto nem nome têm.

   O mito do progresso sem fim dilui-se e os meios para atrair maior bem estar e felicidade há muito que ameaçam ruir. Talvez só por hábito a corrida continua. Para onde vamos?.

   Na sociedade da imagem, a aparência obriga a sacrifícios tão subtis que muitos nem o notam. A linha da silhueta perfeita é algo sempre em perigo, o uso dos sapatos agulha um risco para o futuro da coluna, as cirurgias plásticas a que os actores e tantos outros se submetem, as dores e sacrifícios que aguentam para manter uma falsa aparência de juventude, são traídos por múltiplos sinais do inevitável envelhecimento. É a pele que repuxa os olhos, o sorriso torna-se um esgar, a expressão desaparece dos rostos. Os olhos tornam-se fortemente amendoados como os dos orientais. Há pouco vimos uma pobre apresentadora da televisão a quem correu mal a operação e ficou com visíveis assimetrias nos olhos e sobrancelhas de modo que parece estar sempre com uma expressão de vaga interrogação. Um rosto patético que confrange quem vê. Até onde irá o artifício por causa da imagem? Talvez, as motivações para a “eterna juventude” nestes casos tenha a ver com o medo de perder emprego,  perder a fama,  não ser mais aceite na cena social. Citamos mulheres, mas os homens seguem o mesmo rumo.  

 

  Na obra “A Caverna” Saramago expõe a alegoria platónica na sociedade da abundância. Porém há muito mais do que o dualismo platonismo e dos dois mundos das ideias e das aparências. Saramago é um escritor que nunca despia a toga do marxismo para descrever as suas teses que são estruturadas na obra.

   Quando se fala do oleiro da aldeia, Cipriano Algor, este representa o trabalho criativo ao lado do fabrico em série e sem prazer que aparece no Centro. Esta será a sua grande metáfora do consumo, Lá dentro está tudo tecnicamente ordenado. existe lá quem pense por todos, no bem-estar, lazer, conforto, com a maior solicitude, contanto que gaste e desperdice.

    As metáforas e alegorias estão em cada página. A força do capital, a perda da identidade e a ideologia que as combate atravessam toda a obra. A aldeia é o passado a despovoar-se e, os que restam, são vagos vultos ou gente que parte.

    Para onde?

   Saramago parece brincar com as metáforas vivas. Temos imagens e o hiper real entre os simulacros do Centro. Regressar à terra é vaga utopia aquém do sentido da obra. Com aparência linear, decifra-se uma indestrutível ambiguidade do social, multiplicada em representações e incertezas. Ocorre pensar num certo paralelismo com o arquétipo de Matrix, mas que os efeitos técnicos e a comercialização ocultaram o verdadeiro sentido. Com Truman Show ainda se consegue aperfeiçoar mais a representação do mundo. Baudrillard valorizou este filme pela profundidade de análise e de captar um real perfeitamente domesticado e ilusório. O choque das realidades simultâneas e a sua trama que se desvenda diante do espetador confirma a tese dos múltiplos mundos em que nos movemos. No final, surge o absurdo de nenhum mundo ser real nem apenas representação, nem simulação.  

A falta de êxito deste filme, em relação ao primeiro, prova como a imagem faz falhar a profundidade da mensagem. O vazio dos simulacros deslumbrou os espectadores e apagou-se aí. Um sucesso de bilheteira e mais um espectáculo vazio.

  A leitura de “A Caverna” é muito mais densa e profunda do que possa parecer. O simultâneo do dentro e do fora, os telefones, a angústia das mudanças só amadurecem as palavras verdes e assustadas do inicio. Entra-se no labirinto social e recorda-se um pouco forçado talvez a obra de Kafka e a experiência de um quotidiano onde o anonimato preside. A banalidade torna os habitantes do Centro sem história. Nada acontece. É uma programação onde não há falhas de um mais do que banal dia a dia.

     O fogo e o barro são metáforas que remetem para os primórdios da Criação, mas a força do capital vence com a tecnocracia de uma realidade virtual e palpável.

  A ternura do cão, o Achado, que tratado como membro adotado da família, demonstra uma fidelidade humano a Cipriano, o poder do fogo e a cumplicidade de afetos entre pai e filha são as realidades que se opõem ao sistema e à tecnologia. O calor que envolve as vivências dessa família contrasta com a frieza do mundo do Centro. Os guardas já são prova disso e surgem como frágil ponte entre a vida e a sua ficção. Os simulacros surgem enigmaticamente entre a obra do oleiro, realidade e a repetição sem fim das imagens do Centro. Uma visão para além do dualismo de Platão porque tudo existe numa ambiguidade inabalável. Com poder da repetição e da imagem, o virtual e o real não se distinguem. Isso favorece a economia e o sistema roda sem fim.  

    A vida, no Centro, é de um anonimato e frieza atroz e inalterável. Não se conta muito do que lá se passa porque nada se passa. Só a repetição constante e a simulação de sempre mas com o efeito mágico de manter adormecidos os habitantes cada vez mais numerosos.

Por isso, mais se impõe a distância. O olhar no Centro é capturado. Haveria risco de descobrir que há um “lado de fora” e um “lado de dentro”. A importância da ordem e do sistema coloca na mão de ausentes um poder que perpassa por toda a obra. Nunca se vê, só se sente e torna a angústia de sobreviver num crescendo até ao final.

 

 “O erro também pode ser a consequência de ter pensado bem” diz Marta ao decidir partir. Sabemos isso cada vez melhor.

    Capitalismo e socialismo oscilam com frágeis líderes, sem violência, com actores a sair de cena pois os sistemas não se esgotam mas sim eles. O sistema tem tudo em ordem e no seu lugar. A sociedade parece cruel, mas é real. O hábito embota a sensibilidade. As imagens do Centro contrapõem-se às estatuetas do oleiro como este e sua família aos passivos residentes sem que não se possa separa-los ou saber a caverna onde estará a obra. A realidade desaparece sob o domínio de todos os simulacros.

    O sistema cria instituições; não pessoas. Domina sem emoção ou excepção. As “fábricas de especialistas institucionais” donde saem jovens, de manuais em riste, saberão “formatar” uma pessoa? Só a promessa da imagem mantém o equilíbrio. A banalização figurativa, repetida, os símbolos, todos os excessos do quotidiano, está lá. Anónimo e dionisíaco como convêm a uma caverna.

   Ler Saramago, em “A Caverna”, é a nostalgia de um tempo perdido para sempre. O campo e os seus habitantes desoladoramente envelhecidos. Mais do que um futuro prometido, deixa-nos sem liberdade, na incerteza e ambiguidade que ordena uma felicidade cimentada em coisas e em absurdas rotinas. Na última metáfora “da exposição da Caverna de Platão ao público” está toda a ironia derradeira da transformação da utopia em consumo.

     A terrível inquietação que surge, face ao labirinto social, está aqui.

     Até quando seremos humanos?