" Amanhã dos Sonhos"
Evocação dos dias sem horAS
© Lúcia Costa Melo Simas .( 2011 )
Cavaleiro Andante
[ Muralhas. Castelo de Carcassone (pormenor). Carcassone. França. 2010 ]
© Levi Malho - Imagem digital
Uma boa torrada quente que se segura e não cai no chão pode iluminar uma tarde agreste. Está na medida das coisas. As coisas têm medidas diferentes para cada um. Não há nenhuma medida verdadeira, como nada é verdadeiro por causa da medida. A medida de uma torrada quente, em tarde fria, é o contentamento da gente nas tardes frias.
Quem acredita no que digo, já teve uma torrada quente que caiu no chão. E a lei de Murphy não a atingiu. Tão pouca e pequena coisa contenta gente simples. Uma torrada nunca é simples, nem é só uma coisa. São milhões e milhões de anos de humanidade para haver uma torrada quente na torradeira elétrica comum. Mas é só comum para poucos no planeta. Não se pensa nessa medida das coisas. Saber isso é ter angústia por todas as coisas pequenas que fazem mais pequenas as gentes.
A grandeza é sempre uma grande praça vazia à espera de festa. A praça só vale pela espera da festa. Isso é a medida da festa.
A pobreza é grandeza quando há crianças que brincam. Nunca são pobres as crianças que brincam. Agora são raras e jogam mais do que brincam. Eram reis e rainhas, fadas, aviões, barcos e carrinhos. Sem ser o dia de Carnaval. Cantavam e gostavam de contos sem livros. Só de lengalengas de vozes. Um só simples copo e sabão e milhares de festas voam no ar em bolas coloridas. Alegres como peixes vermelhos num tanque. Há sempre peixes vermelhos em todos os tanques da infância. E uns olhos que medem e prendem os peixes, para invernos futuros. Um inverno com tanques de peixes vermelhos nunca é um inverno completo. Tem portas abertas para jardins secretos.
Guardemos todos os tanques de peixes vermelhos. Basta ver uma vez para a infância iluminar olhos de jardins tristes. Os jardins tristes não existem. Só existem pessoas tristes, os dias de sol deslumbrante a entardecer podem ser tristes se só porque lá estiverem pessoas tristes.
Só há uma manhã verdadeira como uma torrada contente em tarde de chuva. Pensa-se em torradas quentes com pés molhados e ausências de casa. Um local qualquer com mesa e cadeira e ar banal. Ar repetido de longas amnésias de todos os velhos e amarrotados dias de nada saber que aconteceu. Na realidade não há realidade, nem factos concretos. Amalgama de dias em trouxas de nuvens que o vento levou. Se a realidade existisse, ria-se de todos e era uma coisa como um tanque ou a chuva. Se fosse uma coisa não se ria nem sequer sorria. Há quem acredite na realidade e no sorriso das manhãs. É bonito. Fica bem acreditar de manhã mas quando a tarde cai é de mau gosto ou estúpido.
Nada se repete. Ouvir a chuva já é outra chuva. Como a manhã é outra e esta de que falo é de noite que existe. Para quê sonhar além da porta da casa? São dentro das casas que os sonhos crescem e depois fogem mentindo que voltam. Se voltarem, já são outros sonhos e esqueceram-se de nós. Como se medem os sonhos? As crianças sabem mas nunca ensinam. É um segredo seu. Depois esquecem, mas não esquecem que sabiam. Não esquecer o que se sabia é ficar triste. É ter já o tempo do avesso. É muito triste quando se descobre que já se tem só o tempo do avesso. É andar de alma fatigada a fingir primaveras, festas e peixes vermelhos que boiavam nos tanques.
Lá fora, a chuva parou. Os peixes nem deram por tal. Que sabem da chuva, das torradas, das tardes frias e das gentes que pensam neles? Miolos de mão agradecidos por vezes conhecem. Só por vezes.
Só bóiam nos tanques pingos de chuva que alguém chorou.
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