" Das coisas elementares"

  • Uma meditação sobre a ideia de "ler".

    ©  Lúcia Costa Melo Simas .( 2011 )

 

  

 

Valsa das Letras

[  Sala aula da 1ª metade do Séc. XX .  Museu Educativo. Carcassone. França. 2010  ]

© Levi Malho - Imagem digital

         


                                                                    

 

A pergunta surpreendeu-me e de repente,  não soube responder. Ler? Mas ler o quê? Hum… Acho que não. Se enumerar tudo o que não sei ler, diante do pouco que sei, a resposta é mesmo não. Sei ler mal o que escrevo e o que alguns amigos escrevem. No resto, duvido. Ler é muito mais complicado do que parece. Aquela senhora idosa diz-se muito contente porque, finalmente, agora já sabe ler!  Ela sempre soube ler caras, corações e gestos, estará melhor do que antes?
    Uma pergunta tão simples!  Sabe ler?  Fico a pensar tanto tempo! Será!? Depende… A alegria de saber ler aos 5 anos é a desilusão total do fim da vida. Claro que há letras gordas de jornais, letras de cartazes gigantes, letras fininhas traiçoeiras e míopes nos rodapés das linhas. Tentei decifrar a vida toda, mas o que é que querem dizer por trás daquilo tudo? E o que é tudo? Tudo escreve-se de depressa mas nunca é tudo quando lido!
    A minha boa e linda professora ruiva dedilhava contente por eu repetir radiante: a, ante, após, até, onde, com contra… Mas contra quê? O que eram proposições? Ainda hoje ninguém me ensinou que são proposições, artigos definidos e indefinidos, gerúndios, palavra florida, e apostos ou continuados para que ser dizer isso? E o e vai um das contas de somar. Porque é que se diz e vai um para estar vem com aquilo? Aquilo é uma palavra excelente, para toda a parte e parecida com tudo. O aquilo é um recurso para quase tudo. Tudo e aquilo juntos são uma amizade eterna! Quando não se sabe ou lembra o aquilo é bom. Aquilo, não quero e tudo; eis uma infância feliz! Dedilho a, ante, após, até,  como um bom papagaio amestrado e mais nada.

    Quase toda a gente diz que sabe ler, é bem verdade que diz. Diz, sei lá se sabe! Eu sei escrever, essa era uma resposta bem mais acessível e fácil de responder. Agora, ler? Ler?
    Roo um lápis mental e infantil. Respondo sim ou não? É óbvio que não! Pela quantidade de coisas que não sei ler, é não. Escrito em papel selado, carimbado ainda é pior. Claro que não! Autenticado? Mas o que é que é autêntico? Quem autentica quem? Que verbo difícil! E depois mete certidão! É obvio que sei ler a minha certidão de nascimento. Coisa simples. Mas não sei ler se estiver escrita em japonês ou em norueguês. Também não sei ler a minha certidão de óbito. É verdade! E quantas já me passaram e não dei por nada?
    Não sei ler a Bíblia, nem código do ADN, nem os Código Administrativo, Predial, nem o dos calhamaços dos processos sem fundo.  Leitura já, por si só, é uma palavra tão complicada usada em acontecimentos solenes. Após a leitura vai ser assinado nos termos da lei. Mas que lei? Onde está a lei? Nunca a vi nem sei se tem existência, número ou decreto. A “bem da nação” desapareceu dos mapas, para ser tudo a mal. Se colocar tudo a mal ainda a amizade fica mais firme com um Não quero!, feliz.

Presume-se que se leu alto e em bom som. Quem tem ouvidos para ouvir.
    Ora, ora, ora, a maior parte tem ouvidos mas não ouve. A maior parte não leu nada ou se leu não sabe o que leu. Dorme! Ressona mentalmente após a leitura da ata que desata a reunião e tudo aquilo é arrumado em locais dos subterrâneos e masmorras de todas as mais fechadas instituições. Em breve fumo. Tudo e Aquilo. Ou agora filma-se, microfilma-se e esquecesse por corredores e caixotes sem fim. Um burocrata esfrega as mãos de contente. Ler e procurar onde está um documento é a alegria de saber que tenho garantia de emprego.
    Deduzo que ler é uma tarefa para uma vida inteira. Não, não é para aprender porque nunca se aprende. É uma tarefa de descoberta. De que não se sabe. Lá por enfileirar por ordem as letras do bêábá, isso não é ler. Aquela venerável senhora que se declara completamente desvanecida porque agora já sabe ler, mente. Mesmo que não possa mentir com os dentes todos porque já não os tem. Mente.
       Entrou no reino mais perigoso de todos, o das palavras. Aí é a casa da ambiguidade, do faz de conta, das armas mortais, do é mas não é, ou pode ser, do sim que é não. O que a senhora sabe escrever são assinaturas de documentos de fins ocultos, com trémula letra, tão ingenuamente crente na felicidade. Devia-se perguntar se sabe escrever, isso é mais verdadeiro. Ler? Cada letra sozinha é inocente. Muitas e juntas são obra do Demo. Tiram--se dos grandes dicionários, das enciclopédias ou códigos, e colocam-se, mais ou menos domesticadas, para presumir que se sabe ler. É tão linda a palavra presume-se! Vai-se a um dicionário e tem lá outra e outras e entra a confusão porque presumir é muito obscuro. Presume-se que sabe ler?
    Não, decididamente, não. Como me custou uma vida inteira para ter o orgulho de poder dizer: Claro que não sei!
     Será que alguém sabe?