" Uma Mulher na "Geração de 70"
Sobre Carolina Michaelis
© Lúcia Costa Melo Simas .( 2011 )
Tanto tempo
[ Zona próxima da Residência de Carolina Michaelis. Rua de Cedofeita. Porto. 2010 ]
© Levi Malho - Imagem digital
Os episódios simples e as curiosidades sem grande valor fixam-se na História e esta enfeita-se de lendas para lhe retirar a aridez dos temas.
Foi com algum admiração que ouvimos, por diversas vezes, antigos estudantes da Universidade de Coimbra, agora já falecidos, contarem que, nos inícios do século XX, por juvenil curiosidade, seguiam pelas ruas da cidade atrás da professora D. Carolina Michaelis de Vasconcelos (1851-1925) até à Estação dos Comboios, só para espreitarem as manifestações afectuosas entre esta senhora e seu marido o professor Joaquim de Vasconcelos que a vinha buscar àquela cidade. Esse tempo das suas aulas em Coimbra foi bem proveitoso para a época e para o futuro da nossa cultura 1911-1925.
Foi a primeira mulher a lecionar numa Universidade portuguesa com o grau académico mais alto. Um acontecimento inédito e, no seu caso, primeiro, foi convidada, para lecionar da Faculdade de Letras de Lisboa mas logo depois pediu transferência para a cidade do Mondego.
Por vezes há quem insista em afirmar que, a primeira mulher que se tornou catedrática seria a Professora Maria Helena da Rocha Pereira, (1925- ) uma referência única para o estudo da cultura clássica que marca gerações inteiras pelos seus trabalhos sempre de uma elevada qualidade. Todavia o doutoramento de D. Carolina foi real e até nos seus dos seus últimos retratos aparece com os atavios da praxe para que isso seja bem claro. Já antes disso, bem mais cedo, não faltaram homenagens ao seu abnegado labor e de seu marido que vieram trazer novos rumos para a nossa cultura.
Pertenceu, pela idade e pelos interesses comuns à celebre geração de setenta, mas sendo uma mulher e, para mais estrangeira, não tem sido relacionada com essa geração que não se pode afirmar ser estudante e coimbrã, pois nem todos eram. Pelos interesses e estudos comuns, pela luta pela emancipação da mulher e pela instrução das crianças faz parte do grupo que se celebrizou com esse título. Até Antero de Quental, quando lhe escreve, parece ter algum receio ou timidez tal é o modo como se lhe dirige e a admiração que se nota que sente por esta senhora que trata tão respeitosamente mas é até mais nova do que ele.
Afinal, quem era esta alemã com tanto talento para firmar as letras portuguesas e ligar duas culturas tão diferentes?
Por um feliz acaso, D. Carolina de Michaelis, era ainda jovem, quando, aos 25 anos, veio da Alemanha para o nosso país onde se fixou e tornou portuguesa pelo coração.
Nasceu em Berlim, era filha de um reputado professor de matemática da época e que mais tarde se interessou por ortografia e métodos de estenografia que então aparecia como nova disciplina[i]. Era de uma família de raízes protestantes de cinco irmãos que vivam no meio cultural muito elevado berlinense, a contatar com as figuras mais ilustres da época. Esta cidade era um verdadeiro centro intelectual, e ali viviam ou passavam vultos da maior relevância. Tendo perdido a Mãe muito cedo, D. Carolina foi educada num colégio até aos 14 anos. Seu pai tornar-se-ia numa celebridade e também dois dos seus irmãos se tornaram famosos no campo da filologia. Ainda se fala nos Dicionários Michaelis da sua autoria.
Antes dos 20 anos, mostrava já uma cultura espantosa e invejável para qualquer investigador de línguas de qualquer tempo. Já publicara alguns trabalhos seus, por incentivo do seu professor particular pois não podia frequentar as aulas na Universidade alemã que ainda não admitia pessoas do sexo feminino, como acontecia em toda a Europa.
Ao deixar o colégio, por já ter completado os estudos, continuou a aprender por sua conta ou com apoio de um professor linguista. O grande talento e capacidades que demonstrou loco cedo soube usar com bom senso toda a longa carreira. Depois das línguas germânicas, investigou o espanhol e o árabe, e dedicou-se aos idiomas e eslavos, do sânscrito, às línguas e literaturas semíticas.
Se bem que muito jovem, já era conhecida na Alemanha e espantava de tal modo os investigadores que Bruno Paulin Gaston Paris, famoso escritor e filólogo, director da Academia francesa, numa carta que lhe dirigiu, perguntava: “Onde aprendeu, aos dezanove anos, aquilo que muitos de nós, depois de doze ou quinze anos de trabalho, ainda não conseguiram saber?"
O Ministério do Interior alemão aceitou os seus serviços e tornou-se tradutora de assuntos hispânicos. Por isso surgiram alguns dos seus trabalhos na imprensa do nosso país. Na parte prática, devido aos seus serviços, teve de contatar com problemas políticos, criminais e socais que muito a devem ter enriquecido no lado mais humano da vida e muito para além dos gabinetes de trabalho.
A primeira referência a esta erudita filóloga parece ter sido escrita pelo então jovem Teófilo Braga, sempre atento à história da cultura portuguesa, “com uma crítica muito elogiosa a uma sua edição do “Romanceiro de El Cid” (1873-1875) , numa revista publicada em Portugal. Depois, também Alexandre Herculano, Antero e Oliveira Martins se corresponderam com ela e não só estes escritores como muitos outros.
A geração de 70 mostrou sempre uma faceta germânica e nem sempre com unanimidade de pontos de vista. Os autores alemães, eram de tal modo lidos, que a isso fez referência Antero acentuando que era o que mais mostrava a diferença da nova geração que agora, por causa do comboio, muito mais ligada se encontrava ao exterior.
Aquando da tradução da famosa obra de Goethe “Fausto”, elaborada por António Feliciano de Castilho, que muita celeuma levantou, D. Carolina soube do que se passava e interessou-se pela controvérsia. Nela se envolveram Camilo Castelo Branco, Pinheiro Chagas, Antero de Quental, Adolfo Coelho, Teófilo Braga e, entre outros, Joaquim António Fonseca de Vasconcelos, (1849-1936) a quem a jovem alemã escreveu por admirar os seus sólidos conhecimentos da língua alemã. Escolheu escrever a este investigador porque fora ele quem levantara a questão e tal se devia, em parte, aos seus bons conhecimentos da língua de Goethe.
Assim se iniciava a ligação de D. Carolina com a cultura portuguesa que ia durar toda a sua vida.
O Professor Joaquim de Vasconcelos diferenciava-se bastante dos outros polemistas, pois ficara órfão aos 4 anos e tinham-no mandado estudar com essa idade para Hamburgo. Falava na perfeição a língua alemã e tinha passado por períodos conturbados na Europa com a guerra franco prussiana que o impediram de voltar a sair da Pátria. Além dos estudos como musicólogo e arqueólogo, foi historiador de arte e teve um papel decisivo na criação da nossa futura História de Arte.
Vai ter uma acção bem importante no desenrolar da vida de D. Carolina Michaelis pois a levou a abandonar a sua família, o seu país e todo o seu ambiente, para vir para uma terra estranha a que nada a ligava a não ser este professor Joaquim de Vasconcelos. Pelo que dele se escreveu, devia ser uma pessoa íntegra, de grande saber e inteligência e, para além do carácter era, alto, magro e elegante, apreciando passear-se pelas ruas de Berlim com o seu capote alentejano.
Deste encontro epistolar, seguiram-se muitas cartas entre ambos e o português, o caloroso ensaísta da questão do Fausto, passa a interessar-se mais pela senhora do que pelos seus trabalhos. Por certos que o tom das cartas mudaram e por fim irá a Berlim para se casar com D. Carolina Michaelis, em 1876.
Antes disso chegou a dar brado nos meios berlinenses pela bravura que o português demonstrou. O episódio incomum que acontece, neste lance sentimental, está no facto de Joaquim de Vasconcelos, ansioso por conhecer a jovem e inteligente alemã, fez uma travessia arriscada e cheia de perigos, apenas a cavalo pelos Pirenéus, em tempos de guerra em Espanha, pois as vias férreas estavam cortadas. Assim, sem mais esperas, chegou à capital alemã, para conhecer a jovem Carolina, o que causou grande pasmo e notoriedade em Berlim.
Recorde-se que em Espanha havia a terceira guerra Carlista, de 1872 a 1876, entre os partidários do duque Carlos, pretendente carlista com o nome de Carlos VII e outras governações. Nos países bascos e em áreas montanhosas como são os Pirenéus, imperava o banditismo marginal que procurava atrair adeptos para as atividades guerrilheiras.
Esse primeiro encontro, por certo que dispôs bem D. Carolina acerca do jovem Joaquim de Vasconcelos, mais velho do que ela apenas três anos.
Se este casal teve uma vida feliz e proveitosa, o nosso país muito ficou a dever à vinda da mais erudita senhora da época segundo constava para aqui se dedicar a importantíssimos estudos em que foi uma fervorosa pioneira.
Numa rua na cidade do Porto, em Cedofeita, assinala-se, com grande simplicidade, a casa onde viveu e faleceu D. Carolina e existe igualmente um liceu a que foi atribuído o seu nome. Uma estação de Metro do Porto recebeu igualmente o seu nome. Também em 1983, o Instituto de Estudos Românicos que tanto lhe devia, passou a chamar-se Instituto de Língua e Literatura Portuguesas – D. Carolina Michaelis de Vasconcelos.
Infelizmente, em Cedofeita, a casa deste casal tão ilustre como culto encontra-se num estado de degradação muito desastroso. Segundo se sabe não se prometem obras para tão cedo, duvida-se que se iniciem em 2013, o que faz pensar que pode desaparecer um local de grande significado simbólico da cidade Invicta. Já a rua com o seu nome que existe em Lisboa é uma bela e ampla avenida que homenageia a precursora da filologia em Portugal.
Quando veio para o nosso país, depois de casar e de uma longa viagem por diversos países no mediterrâneo, não estava, de modo algum, preparada para gerir uma casa por isso devemos supor que não podia ter uma adaptação muito fácil. De acordo com a fotografia do ano do seu casamento, era alta e esbelta e um rosto de traços delicados. O ligeiro sorriso demonstra ser mais sentimental do que uma alemãzinha fria e compenetrada do seu saber. A fotografia consegue transmitir essa atmosfera de senhora a quem o saber não retira de modo algum a graça de ser mulher.Por certo, que vinha para terras e gentes desconhecidas e bem provincianas, mas tanto em Lisboa como no Porto ficou rodeada de amigos e de seu marido.
O professor lecionou na Faculdade de Belas Artes em Lisboa, antes de se mudarem para o Porto.
Também D. Carolina passou algum tempo a investigar na Biblioteca da Ajuda, época que referiu como "meses felizes e saudosos", 1877, e que revela bem o entranhado afeto ao trabalho e às causas difíceis como era aquela de decifrar todo aquele enorme espólio encontrado.
No final desse ano, no mês de dezembro, nasceu o seu único filho, Carlos Joaquim. Mais tarde, esse filho estudou na Alemanha, o que é bem natural pois pelas mais diversas razões e uma dela bem pode ser seus pais aí terem estudado. Não seguiu a peugada dos seus e, pelo contrário, formou-se em engenharia de máquinas. Pode considerar-se um acontecimento bem natural pois sua Mãe era alemã, mas muitos pais portugueses, quando ricos, optavam pelos estudos na Alemanha, chegando mesmo alguns açorianos a tomarem tal rumo. É o caso do pai de Antero que só regressou por via das saudades que não o deixaram por lá ficar muito tempo.
D. Carolina, se bem que tivesse que educar um filho pequeno, continuou as suas importantíssimas pesquisas que foram cruciais para a filologia portuguesa, literatura medieval, e renascentista, recolhas de mil pormenores que vieram tornar possível, tendo uma tão bela mestra a estudá-las a criação de estudos superiores de temas até então muito pouco conhecidos. Face aos trabalho de Teófilo de Braga, sempre vistos com despeito e uma certa desconfiança, que nem sempre merecia, e de que se tornou vítima. Um pouco de desdém pelo estudante pobre que tinha de trabalhar tanto para sobreviver *a custa da preguiça dos outros alunos para quem copiava as sebentas, Se compararmos com os trabalhos de Oliveira Martins, que não alcançam a sua craveira pela improvisação e imaginário que atribui aos povos, ou até aos aspectos antropológicos mais evidentes, tais obras não são hodiernamente lidas, mas no seu tempo foram levadas muito a sério. Se isto aconteceu para mal de Teófilo de Braga, já para O Martins foi boa essa lacuna pois, apenas pela falta de conhecimentos e comparações com obras mais antigas e bem mais rigorosas e bem fundamentadas não surgiram vozes a rebate.
Para a jovem investigadora alemã, esses tempos em que residiu em Lisboa, resultaram altamente proveitosos para o estudo da literatura medieval e renascentista, já que iniciou em 1877, com as suas investigações, um dos seus mais célebres e pacientes trabalhos em “O Cancioneiro da Ajuda.”
Diz-se, seja lenda ou verdade, que nesse tempo, em que consultava os arquivos da Real Biblioteca da Ajuda, chegava a trabalhar mais de 18 horas por dia! De novo a lenda e a história confrontam-se e o coração pede que se siga a lenda enquanto a razão preferia ter mais certezas. Temos o caso de Teófilo capaz de trabalhar noites a fio à luz da candeia e no dia seguinte apresentar-se seguro nas aulas. Copista nocturno para o ganha-pão, estudante de dia pelo desejo de saber!
Para demostrar até onde ia a dedicação e o rigor dos seus estudos, a edição desta obra levou 27 anos de trabalhos aturados. Tanto o glossário como as suas anotações foram tão importantes que serviram gerações e gerações de estudantes que conhecem o seu nome pelos estudos sobre as cantigas de amigo, de escárnio e maldizer, bem como os seus estudos sobre a cultura medieval e renascentista.
A divulgação dos seus trabalhos sobre filologia, etnografia e muitas outras ciências deram-lhe uma notoriedade invulgar. Pelo seu espírito metódico e rigoroso, tinha a percepção da necessidade de uma severidade exemplar no cuidado de ir até ao cerne das questões e um cuidado que não deixasse nenhum enigma por solucionar.
D. Carolina diz de si mesma, não por louvor em boca própria, mas para exemplo a seguir que queria deixar a todos os que foram seus alunos e não só esse sentido do rigor e da necessidade de análise sem descuidar pormenores.
Queixava-se, com toda a justiça, do pouco cuidado e falta de rigor dos portugueses nas suas citações quer pelas falhas de datas, quer pela falta de notas adequadas a cada tema. Revoltava-se contra os portugueses que consideravam os estudos do seu passado cultural de menor importância e secundários em relação ao resto da Europa.
Se tal era exato no seu tempo, o mesmo se pode comprovar na inexatidão de datas e confusão de indicações que se encontram a cada passo ao querer investigar o seu trabalho que bem disperso está. Curiosamente, cada investigador parece pressupor que os seus leitores já conhecem o assunto e negligenciam os pormenores que, depois de muito tempo, já ninguém pode recordar e assim as lacunas são muitas ou as imprecisões abundam.
Trabalhava incansavelmente com aquele rigor e radicalidade que queria ver nos outros e muito em especial, aos seus alunos.
É de notar que já em 1911, com outros estudiosos da nossa língua, se pronunciava a favor da simplificação da ortografia e seria sua percepção de que se tal alteração acontecesse, e mudassem certas normas ortográficas, isso poderia ajudar “humildes e pequeninos” que viu “lutar arduamente com as dificuldades, incongruências e contradições da ortografia reinante”.
É curioso como não aparecem na sua biografia, mais amiúde, alusão a tantos trabalhos que D. Carolina realizou com o marido. Foram muitos trabalhos publicados em conjunto. É exemplo disso obras em castelhano em que por exemplo consta “ El caballero de las botas azules : (cuento extraño) e outras a reeditar D. Francisco Manuel de Melo e outros escritores.
Muito sensível ao modo de ser e sentir que descobria na sua nova pátria, dedicou-se a estudos históricos, para além dos linguísticos, e interessou-se pela literatura que os próprios portugueses não tinham por aquele grande valor lhe veio a descobrir. A famosa tradução do seu conterrâneo Wilhlem Storck da obra de Camões, levou-a a dedicar-se ao estudo do nosso épico. Depois de muitas investigações, veio a dar tanto valor ao poeta lírico como ao épico, contrariando as tendências até então dos estudos e interesses portugueses que não davam o valor que D. Carolina encontrou. As suas pesquisas puseram bem claro a extrema dificuldade de distinguir certos poemas de Camões dos de Diogo Bernardes e foi de grande valor o seu trabalho acerca da Infanta D. Maria, a bela e riquíssima Infanta, a dama mais rica da Europa do seu tempo, filha de D. Manuel e irmã de D. João III, hipotética paixão do nosso Vate. O seu estilo de escrita denota uma firmeza e orgulho bem feminino. O despeito dos poetas pelo celibato da Infanta é descrito até com um certo humor cáustico. É clara a sua defesa do papel social da mulher e não deixou de se interessar sempre pela questão feminina. Para D. Carolina o problema da mulher em Portugal, no tempo em que vivia, passava pela necessidade de maior instrução. Um certo tom positivista pode-se ver neste seu fundamentalismo, pois mostrava ser herdeira do espírito das Luzes.
. Depois foi uma contínua descoberta de um filão nunca antes assim explorado. Os trabalhos de Sá de Miranda, de Bernardim Ribeiro e tantos outros. Com o seu dedicado empenho em tanto estudo, deu vida a todos esses velhos manuscritos e documentos arquivados que, com todo o rigor e seriedade, estudava.
A palavra saudade despertou-lhe tanto interesse que a ela se deve um excelente estudo que, mais uma vez e, talvez por ser estrangeira já adaptada ao novo país, começasse a entender melhor a sua expressão única. Dedicou um trabalho pioneiro do tema da saudade portuguesa, sentimento único no mundo e que não alcança tradução. Os estudos vicentinos não ficaram esquecidos nem as poesias de Cristóvão Falcão. Tanto os estudos medievais como os renascentistas tiveram a sua entrada em cena na cultura europeia por sua mão.
Já foi depois de reformada que recebeu um convite para lecionar na capital.
Na altura, a Universidade de Lisboa começava a dar os seus primeiros passos, mas, como se sabe, D. Carolina passou de imediato para cidade do Mondego, pois lhe era muito mais acessível assim viver no Porto com o marido e descolocar-se alguns dias por semana de combóio à cidade de Coimbra.
Ainda durante a monarquia, o rei D. Carlos reconheceu bem cedo a importância da sua atividade intelectual que tanto beneficiava os portugueses e, assim, em 1901, agraciou-a com a Ordem de Santiago de Espada. Era uma das suas primeiras homenagens a que muitas outras se seguiram.
Se é já aos sessenta anos, quando começa esse labor universitário, abandonando outra leccionação, isto só demonstra que era senhora de uma energia a capacidades mentais com espantosa aptidões que a idade não derrubou.
Se bem que se refira a si mesma sem se considerar superior aos demais, só a modéstia podia ditar tais palavras, pois era dotada de uma lucidez e perspicácia raras. Se assim não sucedesse não teria, alemã como era, entendido tão bem o espírito português no seu modo sentimental, emotivo e com grande amor à natureza. Isso levará ao tal “saudosismo” de uma tristeza branda e as suas raízes nas cantigas de amigo e a melancolia de Bernardim entre o cuidar e andar solitário, num misto de passado que teima em ter futuro.
A sua presença na Universidade atraiu atenções e foi, no início, um pouco polémica.
Dividia o seu laborioso tempo entre o Porto onde continuou a viver e Coimbra onde leccionava. Aproveitava ainda a ocasião das viagens de comboio, bem demoradas e incómodas na época, para estudar e preparar as aulas. Chegou ao extremo de dar 5 cursos ao mesmo tempo!
Pelos dedicados estudos à nossa língua e cultura, com cerca de 180 obras publicadas, merece ser considerada pioneira dos estudos linguísticos face aos próprios portugueses e aos estrangeiros. Se bem que sem seguir os trâmites legais pode dizer-se que de certo modo foi a primeira mulher doutorada, pois lhe foi concedido o Doutoramento honoris causa em 1916.
Em 1912, fora admitida na Academia das Ciências de Lisboa, conjuntamente com D. Amália Vaz de Carvalho, mas sem aprovação geral pelos preconceitos da época.
Foi um elo fundamental entre as duas culturas. Tudo o que o seu notável professor Carl Goldbeck, grande estudioso das línguas hispânicas, lhe transmitiu, tornou D. Carolina mais interessada pela tradução alemã da obra de Antero. No seu testemunho em “In Memoriam” ao poeta, isso ficou bem patente. Sem ela, o famoso linguista alemão, W. Storck provavelmente não traduziria a obra “Os Sonetos” do poeta filósofo.
A correspondência entre o poeta açoriano e a ilustre professora, que devia ser a mais erudita e sapiente da Europa, revela admiração mútua e todo o respeito que o poeta tinha pelo seu conselho e seu saber.
Ambos se interessaram por projectos comuns, um deles uma biblioteca infantil que Antero tentou criar e chegou a escrever alguns poemas, como “As fadas eu creio nelas” ou “No figueiral, figueiredo”. Se o projecto que Antero ansiava falhou, mais tarde, a professora alemã conseguiu levar a cabo esse plano. Nos inícios do século XX, continuou essa obra de divulgar contos para as crianças e enriquecer a literatura infantil que encontrou ecos em escritoras portuguesas.
D. Emília Sousa Costa conseguiu mesmo criar uma Biblioteca infantil em que colaborava e muitos nomes ilustres surgiram na longa lista de obras publicadas. Para além das obras que esta escritora adaptou dos contos dos irmãos Grimm, nem podemos saber se por influência de D. Carolina, pois ambas moraram nas mesmas cidades e a senhora alemã conhecera Jacob Grimm em casa de seu pai na sua infância.
D Emília Sousa Costa também recolheu muitos narrativas populares, lengalengas e fábulas sendo, grande parte da sua obra dedicada à literatura infantil e com um sentido prático que a levou a tornar-se professora das jovens desvalidas da capital, que defendeu sempre com tenacidade, convencida, como D. Carolina de que o que mais faltava à mulher portuguesa era a cultura e a instrução que a elevariam a plano superior na sociedade. Ambas foram agraciadas com oficiais da Ordem de Santiago da Espada pela proteção à infância e jovens desprotegidas, no caso de Emília Sousa Costa e no caso da emérita. Carolina pela obra ímpar que uma estrangeira vinda de tão longe oferecia ao nosso pais no que um povo tem de melhor, a sua literatura e as raízes da sua cultura. É pois irónico que, para além do incansável e muitas vezes mal entendido ou interpretado Teófilo de Braga, que tantos inimigos semeou, D Carolina sendo mulher, estrangeira e invulgarmente letrada pode dar aquele contributo tão necessário e que nenhum português ainda se arrogara timidamente e agora com grande tenacidade e exigente trabalho. Foram estes seus predicados que lhe deram tanta fama e cobriu o seu nome de glória e de respeito.
D. Carolina deu grande valor à defesa da condição feminina em tudo o que na altura procurava defender os direitos das mulheres. É certo que não se filiou em nenhum movimento feminista, mas via com simpatia toda a ação nesse sentido.
Um dos seus laboriosos estudos que demonstram bem até onde ia o cuidado com o rigor dos trabalhos são os seus “Mil provérbios Portugueses”[ii] Nessa obra, já assinala as dificuldades que há em traduzir qualquer sentença, apotegma ou dito popular mostrando que tanto Portugal como a Galiza deviam deixar de ser “a gata borralheira” desses estudos na Europa.
Uma sua amiga, a alemã Luise Ey, (1854-1936) conviveu de perto com a família Vasconcelos. Acerca desta alemã, que também tanto amou a nossa terra, escreveu de modo lapidar Luísa Viana Paiva Boléo deste modo singular: “mulher amiga de Portugal que trabalhou, sem tréguas, pela cultura portuguesa até aos oitenta e dois anos”. Era autora de várias gramáticas, antologias, livros de métodos práticos para aprender português e foi professora em Hamburgo e noutras cidades. Na época, milhares de alemães ficaram-lhe a dever terem aprendido a língua de Camões. Curiosamente era quase tão trabalhadora como D. Carolina pois passava horas sem fim a estudar e a preparar edições em alemão de autores portugueses. Foram traduzidas, por sua iniciativa, obras de Guerra Junqueiro, Trindade Coelho e Júlio Dantas, entre outras.
Luísa Ey[iii], que também viveu quinze anos a leccionar em Portugal, fez parte de alguma intimidade com D. Carolina e relata diversos encontros informais entre ambas e sua família. Por isso, pode traçar um perfil de uma senhora que, nasua vida pessoal, com marido e filho, tinha um viver simples mas que revelava grande amor à natureza e não esquecer as lides domésticas que na época tanto preocupavam as mulheres. A sua ampla casa e de era um dos seus cuidados a par de passeios no campo ou à beira mar. Passou muitas vezes, férias num local aprazível chamado “Águas Santas” . A adesão de Luísa Ey à Liga Republicana das Mulheres Portuguesas veio tornar mais sólidos os laços entre ambas pelos ideais comuns e lutas em defesa dos direitos das mulheres.
D. Carolina tinha uma vastíssima correspondência, por exemplo com o poeta e filósofo micaelense, Antero de Quental. Nota-se nessas cartas que D. Carolina se preocupava com a tristeza e o pessimismo de Antero quando ainda vivia em Vila do Conde . Com o “Ultimato Inglês ”em Janeiro de 1890, o seu desinteresse e cepticismo pela causa já se manifestavam. Antero escreve-lhe com o maior respeito e admiração, se bem que fosse nove anos mais nova do que ele, o tom é de uma consideração de quem fala a um Mestre. Refere-se numa das cartas, em lhe levar um livro ao Porto. Aí se deviam encontrar e também aí residiam as duas pupilas do poeta, filhas de um amigo jornalista, desgraçadamente tísico, Germano Meireles, que ao morrer pediu o apoio que não podia dar às pobres órfãs. Como mais nenhum amigo se prontificasse, Antero, sempre generoso, assumiu a missão. Depois de uma certa idade passaram a estar a estudar no Porto e ficaram recolhidas num colégio em Cedofeita, provavelmente das Irmãs Doroteias.
Por certo, as visitas aos seus amigos deviam ser muitas, entre as quais se contavam D. Carolina e seu Marido, Joaquim de Vasconcelos, tanto mais que, na altura da criação da Liga Patriótica do Norte,1890, também Oliveira Martins e a esposa D. Vitória, uma boníssima senhora estavam a viver no Porto.
É muito curioso o facto de a grande linguista mostrar a Antero as dificuldades da tradução de certos poemas. O cuidado e rigor que em tudo punha, quando se tratava de análise e estudo de textos levou-a a levantar sérios problemas da perda de sentido das metáforas anterianos passadas para o alemão.
A língua alemã, ao invés da nossa, não tem vocábulos como por exemplo, a Morte, Tod, ou Noite, Nacht, no feminino. Era um grande embaraço para o tradutor, Wilhlem Storck, e que D. Carolina fez reparo a Antero. Este notou a força da “linguagem sobre a imaginação” tecendo inteligentes reflexões sobre o poder do idioma na arte em geral e “ limites e dependência que a ideia está da palavra”. O tema é aliciante e demonstra toda a irredutibilidade de traduções e manifestações artísticas. A Morte, a Noite ou o Mar personificados acusam contextos linguísticos irredutíveis.
Sem que tenha abordado melhor o tema da comparação linguística e seus contrastes, a acuidade que tinha com tudo o que estudava é de admirar.
Foi um elo entre as duas culturas e sempre tentou traduzir para português a cultura germânica e quando não o podia fazer, tentava que outros o realizassem. Foi assim que, com contributo de Antero, pensou em traduzir para português uma antologia da lírica alemã. Tinha plena consciência da universalidade do valor da poesia e por isso queria ver traduzida na sua língua adoptiva muito do que os portugueses não podiam conhecer.
Este problema da incompatibilidade linguística levanta curiosíssimas questões acerca da impossibilidade de imagens arquetípicas de um inconsciente comum a todos os povos. Como exemplo, temos a nossa visão da morte como se fora o regresso ao seio materno, “essa morte consoladora a Beatriz” de que fala Antero e que não tem paralelo com o imaginário das línguas germânicas. O que parece ser uma evidência, esfuma-se quando, no caso da noite e do mar que não correspondem ao mesmo género nas diferentes línguas. Assim, esculturas como a Noite e o Dia, de Miguel Ângelo, para o túmulo de um Medicis, devem ser ininteligíveis para um alemão, bem assim a lua e o sol ou até o fogo ou a terra.
Tanto a psicologia como a linguística têm conceitos que se reportam a ideias irredutivelmente diferentes nas línguas românicas e nas germânicas. A possibilidade de um imaginário simbólico coletivo é contestável pois temos essa particularidade linguística da palavra condicionar a ideia. Ora, isto remeta para toda a análise de poemas ou romances em que a simbologia perde por completo as conotações que lhe podem ser atribuídas nas diferentes línguas.
Sendo uma linguística de alto valor, D. Carolina não deixou de mencionar o fato sem que o mesmo assunto tivesse seguimento nem estudos interdisciplinares entre as possibilidades antropologia simbólica, estéticas, psicológicas e filosóficas que tal assunto merece ter. Apesar disso, já abre caminhos para novas investigações.
D. Carolina Michaelis tinha bem a noção de que iria ser ultrapassada pois era uma pioneira em assuntos que toda a vida investigou. Já nos seus últimos tempos, escreveu que se sentia compensada pelo afeto conquistado junto de alunos e colaboradores. “A minha actividade não foi em vão. Tornou a minha vida, [escreve ela] rica e bela e ensinou-me a suportar ou a superar as dores, preocupações e contrariedades que a vida rela traz consigo.
Inserida numa geração que, de algum modo se instala na Geração de Setenta, será o único vulto feminino que teve tão grande relevância.
Toda a sua vida de labor intenso soube marcar bem uma época de grandes mudanças intelectuais e soube traçar caminhos novos. Se a época não era nada propícia às mulheres na cultura, na instrução e valores nem por isso deixou um símbolo de coragem e tenacidade que a colocam a par de toda a geração de setenta, tanta dela que se perdeu
D. Carolina Michaelis de Vasconcelos pelo coração pertence a Geração de setenta, mas pelo género feminino, assombrava e pairava muito acima dos restantes membros, nem todos trabalhadores ou com obra que demonstre pouco mais do que o facto da cronologia, enquanto que esta Senhora mostra que tinha um tão elevado espírito e interesse pela cultura que, só nos entristece a pobreza geral, incluindo o espírito mesquinho em que se vivia e contra o qual lutou e ainda hoje a luta pelo lugar da mulher na sociedade continua a necessitar entusiasmo. Os homens pensam como homens acerca das mulheres, mas as mulheres podem pensar-se como mulheres e não como homens. Talvez depois desta dialéctica ficar mais forte e nítida, o homem reflicta acerca da mulher e do homem sem confundir cada um dos géneros, pois a ambiguidade da escrita é ser para homens lerem, mesmo que escritas por mulheres, ao longo da História.
A mulher adaptou-se sempre ao pensamento do homem, mas tem de pensar por si. Charles Combaluzier dizia do século XX, “A Mulher não nasceu, vai nascer”.
NOTAS:
[i] Delile, Maria Manuela Gouveia, “ D. Carolina Michaelis de Vasconcelos, Intermediária entre a Cultura Latina e a Germânica", http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/3018.pdf
[ii] http://www.fl.ul.pt/unidades/centros/ctp/lusitana/rlus_ns/rlns07/rlns07_p29.pdf
[iii] http://www.fcsh.unl.pt/facesdeeva/////eva_revi_numero24_b.html
Texto da autoria de D. Carolina Michaelis de Vasconcelos acerca da Reforma Ortográfica que considerava de grande vantagem para a língua portuguesa.
- © Lúcia Costa Melo Simas (Texto) - Regressar a " Os "Trabalhos e Dias" "
- © Colaboração na concepção da página - Levi Malho.
- Actualizado em 06.Setembro.2011
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