"Enigma das palavras"

  • Caminhos no limiar do silêncio

    ©  Lúcia Costa Melo Simas .( 2011 )

 

 

 

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 Sempre a Mesma. Sempre a Outra

[  Rio Douro a jusante da Ponte da Arrábida. Travessia fluvial. Porto. 2009  ]

© Levi Malho - Imagem digital

         


                                                                    

Há sempre alguma coisa que se deixou por fazer. Se assim não fosse, não fazíamos nada. Fazer tudo é impossível porque a palavra tudo é muito perigosa. Tem um poço sem fundo dentro e mais uma série inumeráveis de coisas. Também estão lá dentro essas coisas que se deixaram por fazer. Temos páginas e julgamos ter dias. Quem tem dias com páginas em branco fica contente. Mas nem sabe isso. Só Hegel sabia. Mas Hegel não cabe aqui por ter excesso de tudo. De saber e disciplina. É outro e nós somos outros depois de contentes. Temos outros que somos nós e que não escutamos. Quantos outros não fomos para que este eu ficasse por aqui? Hegel tem sempre razão nas palavras. Cabe tudo lá dentro e andamos cá fora. Mas também não sabemos onde fica fora.  Fora só dentro das enciclopédias está bem. Não se consultam muito as enciclopédias por causa de tanta disciplina dentro das palavras que trazemos para fora.

    Julgamos que conhecemos as palavras mas é mentira. São as palavras que nos conhecem e se riem de nós. As palavras é que são irónicas e agressivas em nosso lugar. Pomos sempre palavras em coisas. Mesmo que não sejam coisas, são palavras. Por isso, elas podem mentir sem dizer mentiras. Traiçoeiras, as palavras não mentem, quem mente somos nós. Elas saem ilesas de qualquer perigo. Incêndios, terramotos, cinismos, dor e desgraça, todos os horrores e irritações. Elas nada sentem, nem fingem nem sabem do mal que fazem. Olham-nos espantadas. Nunca sabemos qual a palavra que nos está a olhar. Podem ser muitas a querer entrar ou poucas porque estamos cansados.
    Quando estamos fatigados, as palavras dormem. Quando acordam, todas as palavras são perigosas. Trazem muita desordem. Lembram aquele sótão abandonado onde espreitam velhos sonhos que nos querem magoar. Os velhos sonhos dos sótãos são alguma coisa que se deixou por fazer. Se fosse proibido lembrar, seríamos todos felizes. Mesmo que não fossemos felizes, pensávamos que éramos e ficávamos contentes. Ser contente pode ser nem estar vivo, mas flutuar por mares felizes.
      Damos um lugar que devia ser nosso para as palavras. Quem diz que sabe usar as palavras mente. São elas que nos usam. Andamos vestidos de palavras. Com malas e sacos carregados delas. Pesados de outros que fomos, de passados, de mentiras inventadas para lembrar o que nunca aconteceu. O que nunca aconteceu é verdade porque somos nós a recordar. Quem recorda coloca frescos ribeirinhos de palavras, não pode colocar senão palavras tiradas dos dicionários e não das memórias. Para mudar, esquecer, voltar. Com moda e coisas por fazer.

    Uma palavra desconhecida é sempre orgulhosa de estar lá, numa obesa enciclopédia perdida nas bibliotecas alheias. Se não fossem alheias já tínhamos ido ver o significado da palavra desconhecida. Mede-se o cansaço pelo número de palavras perdidas.
    Há sempre palavras desconhecidas e temos mesmo de desconfiar das que julgamos conhecer. São pessoas que escondem segredos. Bons ou mais segredos. Não se pode adivinhar. São irritantes as palavras desconhecidas porque nos tornam estúpidos. Não gostamos de ser estúpidos e por isso nos tornamos mais estúpidos. O pior é que estúpidos somos sempre. Basta revisitar o passado. Que vale? Não vale. Foi. Ali indiferentes as nossas dores, mágoas e alegrias. Ridículas, as gargalhadas de outrora. Talvez um dia, que deixemos muita coisa por fazer, descubramos mais coisas de uma palavra que nos parecia tão nossa amiga e conhecida. Não podemos saber nunca quais as palavras mais nossas amigas. Não teremos tempo para isso. O nunca não é nosso, é do tempo que já é outrora.
    Não é nada parecido com não ter tempo de ver tudo. Isso toda a gente diz quando regressa de férias. Regressar de férias é mais ridículo do que partir. Não se deve voltar sem mudar de alma. Se interrogarmos a alma temos de notar que é outra ou perdemos tempo. Sempre se perde tempo. Só que, em viagens, perder tempo é perdermo-nos em qualquer parte sem ser em casa. Em casa ninguém se perde e também pouco pode perder.
     Quando se volta, diz-se que não se viu tudo. Pois não ver tudo é o estado de graça de quem foi e veio e já esqueceu a estátua, o cão e a catedral de uma indefesa cidade. Não ver tudo serve para quase tudo. Quase tudo é muito melhor que bom. Serve para estudante e professor. Serve para quase tudo e pronto! Só não é bom para frases de político que deve prometer tudo. Espera-se mesmo que prometa tudo.

    Que bom prometer que qualquer dia vamos tomar um café. Que bom ouvir isso. Reconforta o café frio que nunca se tomará. A frase tem de ter um tradutor que diga que esse qualquer dia é nunca. Qualquer dia, vou viajar, escrever um livro, irei à praia, desapareço, mato-me, vou à cidade, à serra, a qualquer parte e faço um disparate! Qualquer dia hei-de ler esse livro. Vamos almoçar juntos, qualquer dia? Muito boa frase para ser amável e delicado. Amável e delicado, gosto macio nas palavras bem dóceis, boas e simpáticas. Qualquer dia é bom de trazer na algibeira para saber usar. A arte das palavras cansa tanto!  Quem sabe dos espinhos dentro e silvas sem amoras de Setembro? Ninguém pode ser amável e delicado de verdade. E um dia inteiro? Lá, escondidos, dentro do amável e delicado, está um leão que dorme, um ranger de dentes, ou uma curva servil das costas. Nunca se sabe qual deles é mais forte.
    Nunca é como tudo. Mais palavras perigosas que se usam demasiado, sem reparar no risco imenso que se corre. Dizer nunca é não ir a parte alguma ou, ainda pior, fechar a porta. Fechar muitas portas é um risco de ficar só. Há quem goste. Só quem vive é aquele outro e outro ainda e tem muitos outros num eu que não pode parar, quando se vira do avesso. Depois, terá de abrir muitas portas, pois nunca se pode saber das chaves e dos cadeados alheios que podem fazer o nunca em cacos em nome do tudo.
    As palavras vão à frente e atrás de nós. Vamos no meio delas e, podemos morrer ou não, que não nos largam. As primeiras palavras que conhecemos eram estúpidas e cheias de confiança. Ternas, meigas, com papas e calor, carregadas de mimos cor-de-rosa e azuis.

     As nossas madrugadas são infinitamente doces e prometem tudo. Cada dia traz mais palavras e cada vez somos menos gente. Vamos perdendo coisas e ficamos só com as palavras. À noite, não! As nossas últimas palavras também devem ser estúpidas ou sábias. Depois também podem repetir as nossas últimas palavras. Porque deixamos sempre qualquer coisa por fazer. Só as palavras são completas, intactas. Ninguém pode deitar fora palavras. Pensar isso é estar fatigado, doente, estúpido. Elas é que nos deitam fora.