"Depois de Alcácer"
Adeus de Camões e o sonho do Rei
© Lúcia Costa Melo Simas .( 2011 )
Escrito nos céus
[ Mar da Foz e "barra" do Rio Douro em manhã de temporal. Foz do Douro. Porto. 2009 ]
© Levi Malho - Imagem digital
CAMÕES MORREU EM ALCÁCER-QUIBIR
À margem da História
Camões tem sempre uma história para contar ou uma citação apropriada. Encontrar o fio que começa a dar sentido ao seu universo, é ter saudades de um passado que não se viveu e de um futuro já agora negado.
O autor de “Os Lusíadas” só pode ser lido e percebido no presente. Com todo o peso do seu tempo e do nosso presente. A interpretação é sempre com referenciais diferentes. Quer nas crises nacionais ou dias de glória, ou de sereno remanso, traz um verso certo. O épico do “peito ilustre lusitano” é o lírico da linda Inês e o Vate ou que lamenta a glória de mandar e tanto mal que a cobiça sempre traz.
Recordar “Os Lusíadas”, em obras que se adaptem às crianças ou à juventude, traria o gosto saudável pelo marear e o orgulho pela nossa gente pelo heroísmo e capacidade de luta dos nossos antepassados.
Homero educou gerações inteiras da Grécia. O nosso Poeta podia unir os portugueses e a lusofonia, sem pretensões de críticas literárias que tanto afastam, por vezes, os jovens que podiam depois ter laços mais fortes com o seu passado.
Há muito tempo atrás, nos anos cinquenta, podia-se ler e imaginar a viagem de Vasco da Gama em banda desenhada.
Um terceirense, que cedo se radicou na capital, Eduardo Teixeira Coelho (1919-2005), na Revista Juvenil “O Mosquito” de gosto popular e pedagógico, foi capaz de traçar, uma obra prima da BD, que lhe deu renome internacional.
Eduardo Teixeira Coelho o artista da BD. É pelos olhos de Simão Infante que se aprende a conhecer a viagem de Vasco da Gama.
A viagem para a Índia, nessa versão intitulada “Caminho do Oriente” com argumento de Raul Correia, é contada pelos olhos de uma criança, Simão Infante, que acompanha os marinheiros entre lendas, verdade e fantasia. Com uma tal capacidade do imaginário conseguia cativar crianças, adolescentes e até adultos. É pena não se ter reeditado esse trabalho que muito honra o seu autor. Há muito que o mundo do pequeno Simão Infante não é revisitado com toda a magia que os seus autores deram. Teixeira Coelho foi mais apreciado em Espanha, depois em França e Itália onde faleceu. É curioso que algumas das suas BD tivessem sido traduzidas depois para português.
A obra camoniana encerra sempre uma possibilidade de aforismo, citação ou remate para tantos textos e trabalhos que só se elevam com isso. Lobo Antunes sabe bem isso, com a sua obra “Sobolos rios que vão”.
A sedutora Vénus, a formosa Maria, o espanto do fogo-de-santelmo, o mito do terrível Adamastor que depois se desfaz em lágrimas, têm muito para ensinar e recordar com a “Bíblia da Camões” feita de experiência e vastíssimo saber. Pasme-se com os fabulosos conhecimentos de um só poeta e da capacidade de evocar tudo isso, pois foi na Índia que escreveu grande parte da epopeia.
Os ingleses têm o seu Shakespeare, os Espanhóis têm D. Quixote, mas a genuinidade camoniana dá um cunho perfeitamente único a esse enigma de ser português de que fala Teixeira de Pascoaes (1877- 1957) e António Quadros (1923-1993) no seu idealismo e sebastianismo. Este será um movimento tão complexo que até Camões contribuiu para isso. Somos um povo singular no mundo sempre com uma teleologia inacabada. Tão pequeno e aventureiro, tão poético e tão universal.
Camões inicia o poema épico em dedicatória a D. Sebastião, …”e vós ó bem nascida segurança/Da Lusitana antiga liberdade, /E não menos certíssima esperança" , mas é óbvio que escreveu tal começo, de regresso da ilha de Moçambique. Aquando da sua chegada, reorganizou a obra para poder dedica-la ao jovem Rei. Tinha então, este uns 16 anos e o poeta rondava os 45. O encontro entre ambos seria um fatal acontecimento.
Camões e D. Sebastião, provavelmente em Sintra.
Os caprichos da Fortuna
Com ironia se diz que os suíços, em quinhentos anos de paz, só inventaram o relógio de cuco, enquanto os italianos, no meio de tantas guerras, tiveram famosos artistas e génios que vão de Petrarca a Miguel Ângelo, de Dante a Rafael.
A paz e toda a calma daí decorrente não trazem progresso, já assim pensava o filósofo Hegel que defendia um Estado bélico face às “páginas em branco da História”. Somos um povo mais aventureiro que bélico, insatisfeito e inadaptado, irrequieto e saudoso. A geografia tem muito a ver com o modo de ser português. O mar deu-nos as estradas que as fronteiras de Espanha negavam.
Que se pode dizer do nosso povo com uma língua que se veio a tornar na sexta do mundo? Por antonomásia se diz língua de Camões em vez de português.
Camões viveu entre épocas e tirou o melhor delas. Não era ainda a nossa língua, liberta de tudo o que vinha de Castela, nem opulenta como é hoje.
Com o novo acordo ortográfico, um entre tantos a que a nossa língua já foi sujeita, temos a possibilidade de unir países e aceitar inovações. É certo que há a norma e a linguagem vernácula, mas um idioma é vivo, modela-se na voz do povo, com neologismos e adaptações constantes.
É curioso que, tal como acontece com Shakespeare, tanto mistério e lacuna envolvem de lendas a vida e obra do nosso poeta Luís Vaz de Camões. De ambos se sabe onde foram enterrados e de ambos se duvida de serem eles quem lá está. A maldição lançada a quem mexer nos hipotéticos ossos de Shakespeare dá que pensar.
Entre o lirismo e o épico, Camões denota tão altos conhecimentos, uma tal erudição e memória que causam o maior espanto. Não se pode duvidar que, estando na Índia, onde escreveu, ao que se sabe, a maior parte da sua obra épica, só podia recorrer a recordações. Era-lhe impossível o acesso a bibliotecas nem, sendo assim tão pobre, teria em sua posse tantas obras que cita de cor e manifesta ter uma enciclopédica memória.
Desde as humanidades que dominava, a literatura clássica, a estética e a teologia, estava a par da geografia, da filosofia e mesmo das ciências da época como da ética e astronomia ptolomaica. A tudo isto juntava-se uma memória enciclopédica e tal versatilidade de carácter que nem sempre abonava a seu favor. Homem de grande interioridade, era também de génio extrovertido, temerário, zaragateiro e folião, sendo notória a sua alcunha de o “Trinca-Fortes” pelos distúrbios em que se envolvia e carácter impetuoso e arrogante que até o levou à prisão várias vezes.
O capricho da Fortuna juntara uma multiplicidade de experiências que iam do moço estudante coimbrão ao homem da corte de D. João III, ao militar das campanhas de África em Ceuta, passado pela provas do presídio e exílio, das aventura e desventuras na Ásia, Goa, possivelmente no Vietnam, na altura chamado Cochinchina, o naufrágio no rio Mekong, do Camboja, onde terá perecido uma sua jovem companheira chinesa, Dinamene, e também, segundo a lenda, salvou o manuscrito de Os Lusíadas. Andou por estranhas paragens sem esquecer a sua estada na China, a crer na sua lendária gruta em Macau, onde se refugiaria para escrever, indo, por fim parar a Moçambique na esperança de regresso.
A deambulação pelo Oriente foi carregada de miséria, de dívidas, intrigas e algum raro emprego. Camões participaria em expedições militares, uma contra o Rei de Chemba, na Costa do Malabar, enviada por D. Afonso de Noronha, Vice-rei e outra chefiada por D. Fernando de Meneses. No seu regresso a Goa, o poeta escreve sonetos, odes, redondilhas, elegias, canções, de tal beleza que rivalizam com os melhores e até com o poema épico. Porém, os desenganos e agruras por que passa aumentam o pessimismo e o desalento, cada vez mais fortes: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades/ Muda-se o ser, muda-se a confiança”.
São bem escassos os dados e muitas as lendas acerca das suas andanças. Da sua lírica prodigiosa, salientam-se as profundas reflexões, presentes nas redondilhas “Sobolos rios que vão por Babilónia me achei” ou trovas aos seus amores “Aquela cativa que me tem cativo “ escreve algumas peças de teatro para entretenimento dos nobres em Goa, cidade rival de Lisboa tal foi a sua grandeza. Restam notícias de o “ Auto dos Anfitriões”, o “Auto de Filodemo”, o “Auto de El-Rei Seleuco”.
Diogo do Couto, historiador e amigo de Camões, (1542-1616) encontrou-o já na ilha de Moçambique, onde vivia quase na miséria, na mira de conseguir uma passagem de regresso à Pátria. Sendo um bom amigo, pagou-lhe as dívidas e com ele regressou a Lisboa.
O tradutor alemão W. Storck, camoniano de renome, admitiu que fosse na Índia, em 1554, que “Os Lusíadas” começaram a tomar forma. É óbvio que o primeiro Canto, não podia ser dedicado a D. Sebastião, visto ser o ano do nascimento deste rei. Portanto, o início do poema só deve ter sido escrito no final da obra, bem como os últimos versos do poema, já em Lisboa no seu regresso, na nau Santa Clara, bem como o seu final. Terá sido assim, aquando do seu retorno a Lisboa que terminou a obra que terá levado cerca de 18 anos a completar. Esta é a opinião de maior consenso, para além de toda a revisão que deve ter preparado ao regressar ao reino. É reconhecido por todos uma modificação forte na exuberância inicial que depois diminui e, para tal, pode ter contribuído tanto a vida atribulada do poeta, como o estado em que via que o império se encontrava. Por outro lado, há a notar como as últimas estrofes referem-se aos “futuros feitos” porque só assim “Os Lusíadas” tinham uma harmonia projectando num glorioso provir, as glórias que no início cantava.
Muito se fala no seu “engenho e arte” mas pouco se realça a sua inteligência pois sem essa altíssima capacidade nele desenvolvida, teria desbaratado dom e talento às mãos cheias, sem uma visão ampla e muito esclarecida acerca do estado cada vez mais ruinoso do Império. Quem melhor do que ele conhecia o lado sombrio e decadente de Portugal, passando por todo o território, de África até ao distante Oriente? Até que ponto, a chegada a uma Lisboa, tão diferente da que deixara e com vislumbres de tamanha decadência, o terá afetado e feito refletir?
Há opiniões contrárias acerca da pobreza em que viveu os últimos anos de sua vida. A tese romântica do século XIX, acerca das suas privações prevaleceu, mas tem sido desmentida pelas comparações com os preços das vitualhas e o seu custo parece que daria para viver mais do que na miséria e isso desfaz tal lenda. Entre muitos que já não aceitam a tese da penúria está o camoniano, Afrânio Peixoto.
Pouco podemos saber dos seus últimos anos, tal como bem pouco se pode saber de quase toda a sua vida. Temos de aceitar depoimentos duvidosos e muitos apenas lendários. As notas autobiográficas que surgem nos seus versos são um pouco de apoio, mas há sempre um lado muito subjectivo que também prejudica qualquer parecer. No fundo, é pela lógica que mais procuramos investigar.
A deusa Fortuna acompanhou-o sempre. Assim o diz num acento autobiográfico “Erros meus, má Fortuna, amor ardente” ou a referir-se a Inês de Castro “naquele encanto “que a Fortuna não deixa durar muito” e igualmente a amiúde aos acontecimentos dos navegantes e até a si mesmo, sem se isentar dos erros “Enquanto quis Fortuna que tivesse”, “A instabilidade da Fortuna, os enganos suaves de Amor cego,” ou então “Os erros e a Fortuna sobejaram, (…) mas tenho tão presente /A grande dor das coisas que passaram.”
Ao lado da incerta Fortuna, estava o sonho de reerguer de um Império. Foi esse o imenso sonho que Camões vinha colocar nas mãos do jovem rei. Muito mais do que uma tença, era uma esperança, o renascer de uma utopia que estava à beira de desaparecer mergulhada no nevoeiro.
Sonhos de Rei e de Poeta
O encontro de Camões com D. Sebastião muito deve ter comovido o poeta e provavelmente encantado o jovem rei, tão caprichoso, atreito a adulações e sedento de aventuras que o celebrassem.
O episódio histórico da leitura de “Os Lusíadas” pelo seu autor a D Sebastião celebra-se em diversos e belos quadros românticos em que se supõe como ambos estavam impressionados, por diferentes razões D. Sebastião rondaria os 17 anos e o nosso poeta perto dos 45. Um sonhava futuros gloriosos por viver e fantásticos feitos do povo Lusitano, outro recordava passados que o faziam sonhar novos Impérios. Era o passado e o futuro que os unia.
Aquele poeta, ali presente, trazia o projecto do sonho africano, que profetizava para sua realização pessoal “Vós, (…)Maravilha fatal da nossa idade/Dada ao mundo por Deus, que todo o mande/Para do mundo a Deus dar parte grande”, deve ter arrebatado o rei, mal avisado por aduladores que lhe abalavam o ânimo de si influenciável. Aquela era a resposta para a concretização dos seus sonhos imperiais, ainda confusamente delineados.
”Vós, poderoso Rei, cujo alto Império/ O Sol logo em nascendo/ vê primeiro (…) Em vós esperam [os antepassados de D. Sebastião] ver-se renovada /Sua memória e obras valorosas”.
Por seu lado, após tantos anos de ausência, Camões regressava a locais ainda seus familiares e que lhe evocavam queridas e saudosas lembranças da sua juventude que tão irresponsável fora.
A capital denotava fortes sinais de penúria e estagnação, sem judeus e mercadores que tinham fugido por temer as denúncias e a pesada influência do Santo Ofício. Com receios para muitos, a força política dominava esse Tribunal. Foi por viva insistência real que o Santo Ofício se instalara e não por vontade papal que queria negar a autorização. Parece que Paulo III só concedeu a bula de autorização da Inquisição, em Portugal, por influência de Carlos V.
O enfraquecimento do Reino aumentara com a necessidade de empréstimos e, por prudência dera-se o abandono de praças. Era um povo pequeno para um tão grande quão disperso Império.
De novo no Paço, que já frequentara (1543-1549) e onde tanta dama celebrara, decerto que Luís de Camões se sentia bem mais à vontade do que qualquer outro que da Índia regressasse pobre e desprotegido. Já tinham passado tantos anos, mas também ali, granjeara louvores e invejas, inimigos e fama de alto poeta. Ali se enamorara ou galanteara repetidamente diversas damas que ainda mantêm o seu nome em segredo. São várias as lendas dos seus amores, mas os historiadores inclinam-se para D. Catarina de Ataíde, dama da rainha, a quem versejaria com o anagrama de Natércia, o que lhe ocultava o nome. Teófilo Braga referiu-se a uma D. Francisca de Aragão, ou D. Isabel, em “Os amores de Camões” (1917). A tese mais ousada foi a de uma paixão platónica e impossível pela filha de D. Manuel I, D. Maria (1521-1577), e irmã de D. João III, a mais culta das Infantas. A tese do amor pela Infanta ficou mais arreigada após o filme “Camões” de Leitão de Barros (1946). Vivamente criticado na altura por alguns, como Alfredo Pimenta, este historiador e poeta remete para D. Carolina Michaelis, Anselmo Braamcamp, Aubrey Bell ou Paulo Quintela estudos seguros sobre a Infanta.
Após vários casamentos congeminados por razão de Estado acabou por ficar solteira, quer fosse por sua vontade, quer de seu irmão quer por não casar com Filipe de Espanha, nenhuma destas variáveis eram a contento de todos. O seu imenso dote não podia ser pago ou grande perda traria ao reino, por tanto que herdara e possuía. D. Carolina Michaelis “A Infanta D. Maria de Portugal (1521-1577) e as suas damas “ viu-a quase como vítima dos interesses reais, mas bela, virtuosa e altiva, “pouco expansiva, preferia ouvir e calar”.
A mui rica e bela filha de D. Manuel I, a Infanta D. Maria, tia de D Sebastião, 6ª Duquesa de Viseu, a senhora de maior fortuna no seu tempo. Protetora de artes e poeta que morreu solteira em 1577.
Graças à sua enorme fortuna, muito protegeu as artes. Como Duquesa de Viseu tornara-se na princesa mais rica de toda a Europa. Também era das mais cultas, assistia a aulas régias, era piedosa, mas aparecia nos serões da corte.
Aceitava homenagens e galardoava talentos. Tinha Casa própria, atribuída por seu irmão. Foi bem uma Infanta da época renascentista e de mecenato. Terá encontrado Camões, mas pouco se pode especular pois havia o rigor da etiqueta e a discrição dos muitos poetas que não indicavam o nome da dama nos versos passados de mão em mão, até à posse da desejada. Ora os cuidados teriam de ser a redobrar se fossem versos dedicados a tão alta Infanta.
Refere-se D. Carolina Michaelis, ao modo de pensar dos poetas carregados de despeito e cansados de tanta altivez. “Casasse! Saísse do reino ou morresse antes do tempo!” e os admiradores e enamorados desafogariam as mágoas que, de outro modo, não lhes permitiam. Ela, na sua reserva, assistia, com suas damas e mestras latinas, a sessões solenes na Universidade, ao lado dos reis, chegou a ser comparada à formosa deusa Minerva pelo raro engenho e altivez.
Os costumes da época deixam muitas dúvidas sobre o verdadeiro sentir das formosas damas e, se a piedade era forte, também os amores trovadorescos e a liberdade poética a muito consentiam.
Se Camões teve muitos amores, entre damas e plebeias, os costumes de então levá-lo-iam a versejar, galanteando, ao gosto da época, todas as vezes que se enamorava ou se encantava por uma beleza grácil e serena ao jeito petrarquista e não só.
Endechas, éclogas, odes, sonetos, redondilhas, canções, versejara de todos os modos, pois foi conhecido já na altura por “Príncipe dos Poetas”. Se teve essa tão alta fama, também sofreu desdéns e ironias bem pesadas de outros versejadores, um dos quais, Pero Andrade de Caminha, ficou mais conhecido por tanto o denegrir do que pelo talento próprio de que carecia. Ao tempo em que Camões partia para a Índia, a corte mostrava já sinais da perda da áurea de tempos mais venturosos. O império, por grande em demasia, mostrava já sinais de abandono.
Ao morrer, o piedoso D. João III adivinhava um futuro bem triste. Dos possíveis sucessores de tão alta geração restavam uma frágil criança, de 3 anos, um cardeal precocemente envelhecido de 42 anos e uma “sempre noiva”, de 36 anos, por casar. Foi um rei piedoso e muito infeliz. Viu muitas mortes à sua volta e desaparecer os seus dez filhos. Manteve uma corte já mais requintada e tinha bom sentido de humor, apesar de tantos desgostos pessoais. Afinal o perfil traçado por Herculano foi apagado por outros estudos recentes.
Era uma corte bem diferente e, acabava de se dar um surto de peste (1568-1569) que tanto dano trouxera. O Paço onde estava o rei teria sempre contraste de gerações. Perante aquele rei, tão jovem e tão visionário quanto ele, Camões evocaria o passado glorioso e demonstra preferir a Cruzada no Norte de África. Ali, estava o Mouro inimigo, bem mais perto e perigoso. Rei e Poeta sabiam disso. Camões bem conhecia África e, em lutas de campanhas em Ceuta, lá perdera uma vista.
Para o rei, sedento de aventuras e de lutas contra os infiéis, tal facto deveria elevar mais aquele homem que era capaz de ser grande “ com uma mão na espada a e noutra a pena” e que ali, na sua frente o incitava a realizar aquele alto Império que tanto desejava. Já tivera planos para a Índia, tentara convencer, se êxito, outros monarcas para uma cruzada mas todos as empresas falhavam.
Agora, aquele pode ter sido o presságio e o último aviso para uma decisão que seria tão irrevogável como danosa. E Camões que lutara em Ceuta diz ”Para servir-vos, braço às armas feito, para cantar-vos mente às Musas dada”.
Desígnios dos céus, tragédia na terra
Como poderia Camões ser um poeta tão genial, ao ponto do poeta Schlegel afirmar que “valia uma literatura inteira”, e não acreditar no que escrevia? Lisonjeiro e sem sinceridade nas palavras, Camões seria um logro, um falso profeta para um ingénuo rei capaz de acreditar em sonhos sem razões.
Sem a promessa que vaticinava em “Os Lusíadas” estes perdiam toda a convicção. A obra não faria sonhar o rei nem o poeta de a “Mensagem” Fernando Pessoa espiritualizaria esse império anteriormente material.
O certo é que, logo após o acontecimento da leitura de “Os Lusíadas”, estes foram publicados e sem mais delongas. A tença também lhe era concedida.
A maioridade de D. Sebastião foi declarada, tinha ele 14 anos. Estávamos em 1564 e o rei mostrava-se arredio de conselhos dos seus antigos regentes. Ouvia falar no desagrado com que muitos viam o abandono das praças de que seu avô houvera por bem retirar-se pois muito gasto sem benefício traziam. A decadência do reino, para um moço idealista e marcado por um espírito de cruzada medieval e anacrónico, era um desafio. Com a sua índole ascética fez publicar uma pragmática (lei) muito severa que obrigava ao uso de vestes sem luxos. Por outro lado, a sua natureza bélica buscava com pressa ensejos de combate ou guerra sucessivamente inviabilizados. Chegava, reza a tradição, a desenterrar os seus antepassados guerreiros só para os contemplar com veneração. Seguiu com grande empenho os preparativos para a batalha do Lepanto.
Nunca mais tinha havido uma batalha de tal dimensão no Mediterrâneo desde o combate de Marco António, com a ajuda das forças de Cleópatra, contra Octávio César Augusto, em 31, a. C. em Actium.
Em 1571, travou-se a grande batalha naval e deu-se a vitória à Santa Liga, dos cristãos. Tudo foi rodeado de lendas e milagres, tanto pelas preces do santo Papa Pio V, que, estando reunidos com os seus cardeais, teve a visão do triunfo cristão, como pela intervenção de Nossa Senhora do Rosário que ao aparecer no céu, teria feito fugir os turcos apavorados. Vencido o Império Otomano, o perigo afastava-se para a cristandade, especialmente para Veneza e seus domínios. É bom recordar que a educação do rei, com toda a sua piedade e unção religiosa devem ter feito D. Sebastião, tal como todos os da sua época, que se guiavam por uma mentalidade profundamente religiosa ter uma noção bem fervorosa carregada de ideais de lutas contra gentios e infiéis.
Devem-lhe ter descrito a batalha bem mais como uma missão cristã a cumprir e essa vitória acima de tudo, de acordo com os desígnios dos Céus, sob o socorro da Santa Vigem que dos céus auxiliava os seus contra os infiéis. As causas, que hoje servem para explicar o triunfo, seriam na altura mal entendidas e, só bem mais tarde, se percebe que foi por novas estratégias de combate naval.