"Pensar em nada"
Meditações sem Mapas
© Lúcia Costa Melo Simas .( 2011 )
Matéria dos sonhos
[ Floração primaveril após manhã de vento. Jardim Botânico. Porto. 2010 ]
© Levi Malho - Imagem digital
Os mapas fazem pensar em todos os países onde não fomos e voltar contentes a casa. Quem não volta contente, só por voltar a casa, a qualquer coisa que chame casa, é porque não soube partir.
Viajar não é fazer turismo. Turismo é doença de Verão, epidemia, cansaço demais para estar sozinho. Estar só é mais verdade com muita gente à roda, sem ver ninguém. Para ver alguém, só é preciso ter mapas. Com mapas encontram-se alegrias alheias, um saco de coisas velhas que não nos atrevemos a deitar fora. Por nunca aprendemos a deitar fora?
Viajar é ir sozinho, não em multidão. Irritantemente fora de casa. Longe, tudo faz falta. Mas não se sabe o nome de tudo. Tudo é muita coisa desnecessária, com toda a certeza. Viajar é perder-se no tempo e não no espaço. O espaço é um quintal perdido, coberto de silvas, diante da catedral de Londres. Londres é uma palavra com uma torre lá dentro e um som cavo de um relógio, algures no escuro. Londres não é Londres para quem gosta de Dickens e vê cisnes no Tamisa. Ver cisnes no Tamisa, e não ver os barcos, é viajar.
Em terra estranha, estamos sempre que quisermos. Basta aprender. Quantas terras estranhas estão nas terras conhecidas? Há muitas aprendizagens fora dos livros e mapas. Mas para que se quer aprender? Cada vez se sabe menos e gosta menos de saber. Acreditar que se sabe tudo é estupidez. Acreditar que não se sabe nada também. O problema é acreditar em qualquer coisa. Saber é ficar longe. Deixar ainda mais lá para trás a criança perdida que temos. Temos mas cada vez fica mais frágil, cada vez mais calada. Qual o dia e hora em que a nossa infância se perdeu? Bastaria colocar no jornal um anúncio para aparecer outra vez? Como aquele cão velho, que nunca mais ninguém viu, e late sozinho no anúncio triste? Recompensa-se bem a quem o devolver…
Só a infância tem toda a sabedoria do mundo, mas ignora isso. Quem vê uma criança não vê uma criança, vê um sonho muito sério. Tão sério no jogo, tão distraído da vida. Uma criança não sonha, é sonho que ri e chora por dentro. Olha-se para dentro do sonho e então é que se espreita a criança!
Depois, quanto se esquece do que não se aprendeu e sabia! As figuras na parede, nas nuvens, as fadas nas árvores, o velho do saco, as vozes sem som, aquela névoa, sempre aquela névoa, entre nós a recordação da recordação, da recordação! Não voltar muitas vezes é bom! Seja só aos domingos e feriados.
A infância é um lugar sem mapa. Nunca se pode estar lá e saber isso. Saber, é perder a infância e ficar com o mapa. É ter dor e feridas por dentro tão vulgares quando não nos julgamos vulgares. Felizes os que não sabem, felizes os que não querem saber! Longa corda do nosso mapa veio dos confins do tempo e aqui chegou. Todos aqui chegaram porque somos nós. Ninguém olha nada sozinho. Tem por trás milhões de seres vivos que murmuram frases que ninguém entende mas sabe que eles dizem. Para outros seremos mapas.
Porque é que temos memória se ela nos atraiçoa? Rimos por ter chorado, choramos por ter rido. Temos velhas fotos miradas e remiradas, passado plano, pequenos rectângulos, sem odor, sabor ou verdade. Fragmentos petrificados do que não é. Olhar uma foto é querer mentiras. Como quem quer ter a infância sempre à mão, só por se ver num carrinho de bonecos que corre mil anos lá atrás? Agarre-se num livro de infância e logo se matam os sonhos. Os livros de infância ficaram lá. O colorido que desbota são sons distantes. Contentemo-nos com mapas. Calemo-nos com eles! São traiçoeiros, mentem viagens, mentem tempos de outrora. Que tempos de outrora temos? Um laço de fita, um avental de criada e um insistente carrinho que nem nosso era. Pobre de quem recorda. Bonacheirão e gordo, de adiposa velhice, como é que tem criança dentro? Que dor ser amado! Que dor ter pudim de avó à sobremesa! Velha gelatina que nos espera. Gelatina é quarto de hospital, lar aprumado, muitos sorrisos vazios. Cheios de vazios.
Regressamos sempre aos
mapas, ou não estivessem perdidos.
Estivemos sempre perdidos, apenas podemos descobrir isso. De
nada vale olhar o mapa. Mente. Somos todos assim vulgares, queremos verdades
mas desejamos mentira
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