"Do Olhar e do Ver"

  • Carta 12ª para o Século XXI

    ©  Lúcia Costa Melo Simas .( 2011 )

 

 

 

 Wonderland

[  Lagoa das Furnas alagada.  Ilha de S. Miguel. Açores. Natal de 1980/81 ]

© Lúcia Melo - Digitalização de Foto analógica

         


                                                                    

          Depois de algum tempo, os olhos habituam-se só ao indispensável. Passadeiras, muros, semáforos, relógios, urgências, rapidez. Só o medo não se vê, sente-se. Tudo o que a percepção capta na cidade é o usual e do nosso próprio mundo. Se acaso se observa algo que foge à rotina, causa temor, curiosidade, desconfiança. Medo. Uma grande cidade é um local anónimo, com rostos fechados para o exterior e interiormente “fora do mundo” por protecção e hábito.
    O tema do “visível e o invisível”, tão caro no final da vida ao filósofo Maurice Merleau-Ponty, reduz a percepção à nossa presença no mundo como corpo e depois passa para a intencionalidade da consciência. O mundo como Gestalt (forma) é um dado que se humaniza no tempo, marcando sempre uma ambiguidade entre o que a consciência escolhe ver e o que ignora. Há uma dialéctica do corpo entre as coisas e os outros. Há uma dialéctica entre a temporalidade e o mundo captado. O Ser não se percebe, nem sob a forma de pensamento nem de acção e não podemos devolver-lhe o que nos apossamos dele. Assim diz Merleau-Ponty e ainda que:

Há intercepção entre os meus actos e os dos outros tal como o mundo sensível e o mundo histórico que são entre mundos que vistos por nós, se tornam solidários entre eles e entre os dos outros desde que existimos. O registo onde se inscrevem o que nós vemos, fazemos transforma-se em coisa, mundo, história. “ [i]

Nós não conseguimos captar a luz deslumbrante do Ser Puro, porque somos uma atmosfera onde o passado, presente e futuro se misturam em desordem.
[Tradução nossa].

   No social, a ambiguidade é uma realidade, tudo tem o seu lado da lua que ninguém quer crer que exista mas a contingência encontra-se a cada passo. Com o reducionismo perceptivo do olhar deixa de ser temida e colocam-se “fora” todos esses outros, os estranhos, no dizer do sociólogo Bauman, numa obra sua “Modernidade e Ambivalência”, (1999) analisa a presença recusada e negada desses seres, apenas porque são estranhos, diferentes e por isso, tornam toda a racionalidade impossível por trazerem a desordem para dentro do sistema.
     Assim, por múltiplas causas, tornam-se “invisíveis” por necessidade ideológica, pressa e excessos do meio citadino. “Não se vê o que não se olha”, afirma Merleau-Ponty.

 Neste caso, não ver torna-se uma forma de aniquilar e destruir o que não pode ser útil nem consumido, algo que desorganiza a estrutura impecável da Cidade, afirmada como a última perfeição social.
    Merleau-Ponty considerava que a sociedade era uma estrutura e a Sociologia uma forma de estruturar dentro da outra estrutura imutável. Face ao filósofo, o sociólogo teria um lugar fora da história, reivindicando o privilégio de ser um espectador absoluto como observador sem contexto, isto é, do lado de fora, o que em grande parte Merleau-Ponty discorda. Para a filosofia, Ponty guarda um papel fulcral, não o do saber mas, muito mais inteligentemente, reserva-lhe o lugar de “vigilante” do saber.
    Nessa categoria de invisíveis, face aos que sabem ser visíveis entre si, agrupam-se reformados, desempregados, sem abrigos, pedintes, pensionistas, doentes, estropiados, seres humanos no fim da vida ou da miséria. Não têm o mesmo mapa nem projectos quotidianos dos visíveis. São estranhos pela sua transparência na paisagem urbana. Afastados das fotos turísticas, das gentes apressadas, dos temerosos, cada vez aumentam mais em números assustadores. Alguns vivem entre quatro nostálgicas paredes, forradas de angústias, andam por ruelas, nas periferias, sentam-se nas praças ou nos jardins amnésicos e asténicos. A monotonia da vida que lhes atribuímos não existe é um mito ilusório. Há uma luta surda e constante pela sobrevivência, parca de humanidade. São mundos ricos de longas experiências bem subjectivas presos à vida por fios ténues e teimosamente vigiados.
   Indiferença, anonimato, tempo cronometrado são necessidades do urbanismo. É impossível dar atenção a todos. São multidão, o anonimato, massa onde não há identidade, mas BI, cartões, bilhetes, chaves. O carro é ainda uma defesa contra os invisíveis. Como uma velha redoma, sugere outro mundo que passa depressa. Sugere protecção mas por igual também defesa contra o perigo e o medo. Com  rádio e  música, a distância cresce. Os condomínios fechados são ainda outro meio de lutar contra o medo. Na noite, os invisíveis podem torna-se mais perigosos. Ninguém sabe!

    A solidão é muito mais forte do que numa aldeia com meia dúzia de pessoas. A aldeia é feita de estações, ritos da terra, madrugadas, animais, amigos, gente, que fala por falar, e diz palavras para além do necessário. Sabe que repete e gosta de repetir. Os outros são todos nomes, por isso não são mesmo outros. Sabem dos parentes uns dos outros e dos desgostos à mistura com viagens e todos os acontecimentos da terra. Falam de viagens verdadeiras, com demoras, prantos, despedidas dilaceradas. As gentes não se envergonham de chorar nem ouvem dizer que um homem não chora.
    As palavras são parcas, só informam e reduzem-se ao estritamente formal. Ninguém vê ou escuta os invisíveis. Quem seja obrigado, dará rara palavra. É preciso distanciamentos, terão doenças, cheiram mal. A intenção perceptiva, que dá corpo ao mundo circundante em Merlau-Ponty, nega a existência dessas “sombras” retira-lhes a densidade ôntica. Olhar sem ver é apagar intencionalmente parte do mundo.
    Os invisíveis podem cumprimentar um efémero vizinho do prédio, agradecer um serviço prestado, trocar meia dúzia de frases numa loja ou café. O regresso a casa é a perda da objectividade para a interioridade numa subjectividade só capaz de perceber coisas, gato ou cão de companhia de fingir. A casa é a percepção da visão plana da televisão adoçante para “conversar” em termos de resíduos virtuais do humano ou a voz sem corpo ou espaço do rádio amargo para resmungar. Muitos nem isso têm. São ainda mais invisíveis. Dormem no chão, ocultos por portadas ou galerias mais fraternas, pedem ou escavam no lixo, resmungam mais pedidos, vagas interrogações e mais teimosos lamentos. A sua figura, se for percepcionada, com o carrinho velho do Hiper mercado, ou embrulhos duvidosos, torna-se transparente, é preciso ter cuidado, não ver, muito menos fitar.
    O medo retira toda a humanidade e é a natureza selvagem que surge em pleno paradoxo no meio do urbano.
     Andar em transportes colectivos tem regras estritas. A Sociologia não deixou de estudar as regras das pessoas em espaços fechados. Locais exíguos, como o elevador, exigem silêncio que não deve ser quebrado. Ao mesmo tempo, evita-se a todo o custo olhar para as pessoas que possam estar ao lado. A regra é não fitar ninguém, só paredes ou paisagens, no caso de transportes públicos. A tolerância exigida pela proximidade gera a indiferença e depois atinge a crueldade.
    Uma pessoa pode permanecer caída no chão, inanimada, sem que alguém se aproxime. Pode mesmo morrer que continuará invisível ainda algum tempo. Uma queda, que leva a uma percepção de algo desajustado e que sai da ordem e da segurança, não tem reacção espontânea para os estranhos, ou invisíveis. Pode ser um risco, uma cilada, mesmo um grupo que passe e veja, pode desviar-se e não auxiliar quem caiu. Há uma série de causas para um tal desinteresse pelo outro. É mais “um” na multidão, há tantas pessoas que podem socorrer, que se dilui a responsabilidade ou a culpa. A percepção antecipa-se ao pensamento e, por reflexos de hábitos citadinos, não é comum ajudar alguém. As estatísticas mostram que a percentagem sobe especialmente nas megametrópoles onde a experiência tem sido realizada cientificamente.

     A percepção exige a presença do outro. Só há visível na humanização do outro, sem o transformar em objecto do olhar que pode coisificar as gentes.
    O mal-estar dos invisíveis não é minorado em outras ocasiões onde a interacção podia ser mais espontânea. Quem diz: “Olá, como está?” não quer mais explicações. Grande estranheza é responder com referências reumáticas, com gripes ou tosse. Inoportuno e desagradável pois pode demorar mais tempo. Entre pessoas apressadas, e com relógios exigentes, o mais correcto é reagir com uma frase vaga, murmurada e desaparecer. O mais depressa que se pode.
    As relações citadinas são anónimas, formais, de grupos sem coesão, sem aquela estrutura forte das velhas tribos. Fora do trabalho, a teia social entre grupos tem laços frágeis e de interesses opostos. As neo tribos, como são chamados hoje sociologicamente os grupos, são formadas por interesses externos que se agrupam em vez de uma estrutura interior onde o individuo se sente já integrado.
    A solicitude consumista é só para os visíveis, possíveis compradores. A cidade do passado, com as suas catedrais e as suas ruas ruidosas de pregões e afã de comerciantes, perde sentido. A nova grande metrópole só ganha ambiguidades, guetos, centros comerciais sem sol, gente a fingir estar em festa ou à sua espera. Já não há centro, mas muitos, sempre cercados de invisibilidade intencional. O olhar torna-os transparentes e as pessoas “desaparecem”. As catedrais de hoje são esses Centros onde se finge viver em ambiente de festa, em democracia e igualdade de acesso, num espaço que procura negar o tempo, mantendo a luz constante, o mesmo zelo sorridente para todos num grande palco onde cada um representa o seu papel, mas não sabe que está a ser joguete de um imenso jogo onde os verdadeiros jogadores não têm rosto, nem estão presentes. O visível é uma fracção muito pequena da cidade. A atenção não é livre. Tem o seu foco dirigido para o que está programado.
       O grupo dos invisíveis aumenta quanto mais incomoda o olhar. E o medo cresce. Um medo que não é citadino, mas vem dos tempos da selva. Há espaços de acordo com as fases etárias. Traçaram espaços cronometrados; para idosos, coloridos para crianças, gaiolas de oiro para adolescentes, grades de várias espécies para adultos. Os que ficam fora não devem ser vistos. É um novo imperativo a ordenar o que se deve ou não ver. Quando todos os invisíveis, que estão fora do sistema, se tornarem numa multidão com todos os excluídos, miseráveis, rebeldes, que pode acontecer ao visível? Cada vez mais apressados, cercados de muros, cercados de medos e mil temores os visíveis já têm muitas vezes guarda-costas. Nem se sabe se terão o luxe de dormir serenamente.
      O sistema sabe a resposta, mas não nos atrevemos a escrever.

 

 


 

NOTAS:
 


[i] Merleau-Ponty, Maurice, Existence et Dialectique, Textes chosis par Maurice Dayan, Edição Presse Universitaires de France, Paris, 1971, in. Le visible et l´invisible, pp.72-73,