"Uma e outra vez"

  • Carta 11ª para o Século XXI

    ©  Lúcia Costa Melo Simas .( 2011 )

 

 

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 Na volta das marés

[  Algas deixadas pelas "marés-vivas". (Pormenor). Foz do Douro. Porto.  2009  ]

© Levi Malho - Imagem digital

         


                                                                      

 O mundo respirou outra vez mais livremente após a Segunda Guerra. Apesar da pobreza e da lenta recuperação, era uma geração de esperança, um tempo pleno de verdes ramos. Os jovens do “Baby Boom” foram crianças que cresceram na melodia da esperança. Sem amplos horizontes, mas grandes projectos. A ideia de que paz e o progresso podiam durar “para sempre” serenou famílias. Nas pacatas cidades e vilas, era possível viver acreditando num futuro melhor, com certezas e crenças, em avanços da ciência, do bem-estar e segurança. A atmosfera dava expectativas de melhores dias. Para todos.

    Trabalhava-se e esperava-se que o futuro trouxesse doces frutos. Foram “ Os “Trinta Anos Gloriosos” de Fourastié que tiveram ecos globais. Este supunha que a rota da organização laboral seria a iniciativa. Após a era industrial, tudo seria mais humano se as ciências económicas e sociais avançassem.

    A  meta narrativa euro americana, conselheira de todas as esperanças dava utopias. “Uma casa e uma galinha na panela”, foi a ironia de uma campanha eleitoral brasileira.

     Ainda com Luther King “I have a Dream” agora nostálgico, era um novelo enrolado de fios em labiríntico devir histórico.

 A gente estava viva, morria por sonhos, nascia com direitos, em anos iluminados, com riscos calculados, sem abalos de maior. Os anos corriam, quais ribeirinhos orgulhosos e seguros de que encontrariam o mar, mesmo lutando por agrestes margens.  Muitos emigravam no sonho, imaginando-se a viver livros inteiros, filmes e fantasias, com possível dureza, mas final feliz.

     Completar-se-ia a racionalidade em que cada coisa estava no seu lugar e havia um lugar para cada coisa? O consumismo era parco. Os objectos e mobiliários contemplavam gerações, criavam fortes laços afectivos familiares de uma solidez que se liquefez (Bourdieu e Bauman). A sociedade era um forte tronco. Os ramos abrigavam gente que se sentia gente. As mobílias eram mais que madeira ou louças eram vidas passadas, reproduzindo-se por afectos ao longo dos tempos. Agora somos nós que vemos os cenários mudar tão velozmente.

 

    Mesmo que o conhecimento tivesse essa faceta de domínio da natureza e do Outro, tal como o pessimismo de Adorno os territórios eram definidos. A descoberta dos riscos da racionalidade já vinha bem lá de trás e foi Goya quem escreveu que “os sonhos da razão geram monstros”. Picasso ganha, mas Goya conquista sempre. O uso da razão dava a promessa de universalidade. Com Maio de 68 surge uma burguesia intelectualizada com hinos de liberdade e contestação ironicamente definidas pelos bolsos.
    O parasitarismo de que enfermava deu azo a uma frágil estação de flores e contra-cultura depressa absorvida. Apenas algumas franjas ainda tinham o desejo de querer “o impossível” e realizar paradoxos mas em breve o fogo seria só cinzas e farsa. Ao menos a democratização da cultura aumentou sem preconceitos anacrónicos. O grande risco da modernidade, seja lá que nome se lhe dê, é engolir tudo. A sua antropofagia só termina no momento em que aniquila a desordem. Não há nada que não seja comestível e assimilável. A arte fica ao preço da mercadoria. As estéticas tentam desesperadamente inovar mas, depois que o surrealismo morreu, engolido pelo mercado, as vanguardas foram ao enterro. Se alguém gritar “o rei está nu” todos se despem numa séria indiferença de velho gato que já não caça. Quando tudo se tolera, nada vale. A sociedade cínica na hipocrisia hedonista que só leva à morte. A cultura de morte é fogo-de-artifício. Brilha no instante que morre.

    A liberdade está aí, compra-se. Afirma-se no objecto. Estamos tão rodeados deles que somos provavelmente mais um. Indiferença? Haverá outra palavra para a nova crueldade?