"Ainda os Anjos"

  • Meditação sem asas

    ©  Lúcia Costa Melo Simas .( 2011 )

 

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 Sempre um outro lado

[  Coluna da Vitória. (Pormenor). Tiergarten .Berlim. 2001  ]

© Levi Malho - Imagem digital

         


                                                                            

    Os anjos não têm asas. Se tivessem seriam aviões. Puseram-se asas aos anjos porque se queria voar antes de sonhar aviões. Asas são pássaros já longínquos.

Quem quer ter asas não quer ser gente o que é mau para as verdadeiras gentes. Resta sempre saber o que é verdadeiro e não foi uma invenção de poetas. Mas será que os poetas inventam ou se inventam poetas? Afinal eles são excessivamente ridículos a escrever de forma diferente dos outros o que toda a gente sabe e pensa. Se as pessoas não soubessem ou não pensassem tudo o que os poetas escrevem, não havia poetas. Quando alguém lê versos, quer rimas, quer música, quer fugir do mundo, ir espreitar os sonhos dos outros. É muito inconveniente espreitar os sonhos dos outros. Quem o faz acaba por esbarrar com os seus e assusta-se.

    Quando o poeta fala de asas até pode pensar que as tem. Começa por aí ou por outra forma de voo. Mas um voo poético tem tudo, menos aviões por dentro. Pode ter aviões por fora, mas nunca dentro. Um avião tem excessiva técnica para caber dentro de poemas e as asas ficam abertas em terra. Isso é evidentemente um erro bem absurdo. Toda a gente sabe disso. Hoje já é possível escrever versos dentro de aviões durante horas. Assim ficam com asas por fora e voam. São versos perto das nuvens mas longe ainda do céu. Fazer versos aéreos é esquecer que se tem pés. Ninguém pode usar convenientemente os pés num avião. Também parecem estar a mais porque se tornam ridículos, inúteis e imprestáveis. Andar de avião não é caminhar nem voar de verdade. Isso não significa que o avião não exista, quer tenha asas ou não. Há aviões nos quais as asas não existem. São inúteis. Mas gostar de coisas inúteis é bom. Até as asas gostam disso e por isso estão penduradas nas costas dos anjos que não têm costas nem são anjos.

 

    Existirão anjos? Há quem acredite e até os veja. Não os vemos facilmente porque usamos excessivamente os olhos ou óculos só para ver. Mas temos de descobrir que os olhos podem ter muito mais funções. Mirar, remirar, observar, descobrir ou mesmo fechar os olhos porque de olhos fechados as asas são melhores e, até ver, pode ter mais sentido.

    Os sonhos são sempre olhos fora das asas e dos aviões. Vão longe e viajam por onde jamais alguém pisou terreno com os pés dos aviões. Puseram rodas e asas nos aviões mas não nos sonhos. Estes têm rotas desconhecidas e caminham de dia ou de noite com os mapas certos para nunca chegar a lado nenhum. Chegar a um lugar é sempre mentira. Foi preciso partir, foi preciso encontrar bagagem para meter dentro, emalar molduras de tantos retratos perdidos, abrir portas de gaiolas e entrar noutras.

    Chegar é matar sonhos. Horrível a morte dos sonhos! Por todos os sonhos mortos perece tanta gente que não sabe onde os encontrar. Nem se pode colocar uma tabuleta à porta: Sonhos, T 4, vendem-se, em excelente estado, com garagem e quintal. Oportunidade única. Mas, até isto é sonho de muitos para poucos.

    Alguns contentam-se com uma tenda. Ou só um caminho seguro.  

    Quando é pequeno o sonho, até pode ser uma viagem em segunda mão para lugares sorteados em concurso, ou sorteios. Pode parecer estúpido mas é sonho de tantos que depois permanece como nuvem de Verão. Desfeito em chuva ligeira, porque é bem pequenino um sonho de viagem.

    Para que se viaja hoje? Mente quem diz viajar! Apenas muda de lugar e fica tudo igual. Cansado, muito cansado o sonho ficou parado, lá, no início da viagem sem porto, sem barco nem vela. Só resta o sono cansado em que o sonho se amarrota. Ninguém já se despede quando viaja, porque há muitos ridículos escondidos nos quatro cantos das estradas apressadas e curtas de regressos. As despedidas eram enormes, com lágrimas de verdade, com saudades em sacos e baús. Como é que há sonhos de viagens só por ir na estrada? Estradas temos todos sem caminhar, estradas temos todos sem percorrer. Milhões. Iguais. Desesperadamente iguais. Porque cada vez mais os sonhos se realizam e isso é muito perigoso.

 

    É muito bom que os sonhos não se tornem reais. Quando não se realizam, as pessoas podem pensar em ser felizes. Depois já não. Ficam tristes dias e noites a fio para sempre. Sem sonhos, nem viagens, nem concursos tudo medido e pequenino há gente a mais. As gargalhadas felizes das asas dos anúncios vieram para não nos cansarmos a sonhar. Que sonhem por nós, somos velhos de milénios e tão terrivelmente cansados! Até inventamos aviões que só são ruidosos quando já nem se vêem. Horrível saber quantos  sonhos já não mataram os aviões! 

    Se temos que sonhar, ao menos que seja um sonho maior do que o mundo. Ao menos que seja um sonho capaz de ir para além da eternidade e trazer de arrastão mais do que mares de sereias, de luas, de pessoas felizes, de seres celestes que salvam o mundo. Que sejam tudo!

Um sonho imenso para que os outros todos possam estar lá dentro. E que haja um fora! Sem um lado de fora, o sonho é horrível. Misturar sonhos, asas e nuvens é muito perigoso se não se puser tudo do lado de fora. Onde se diz que os outros vivem e morrem. Onde os outros são mesmo outros e não nós. Que fiquem à porta, sem bater, ocultos nos canteiros ou nos passeios molhados da chuva, para se poder pensar que, um dia, muito para lá de todos os amanhãs, vão chegar as asas que usávamos sem saber há muito e muito tempo atrás.

    Que pena foi que se perderam ou nos esquecemos delas num local qualquer. Só se devia esquecer num lugar qualquer guarda chuvas e chaves. Como é que se estragaram as penas das nossas asas e não demos conta disso. Se estivesse doente sabia onde guardava as asas, mas assim é mistério.

Nesse tempo das asas tínhamos tudo, éramos tudo, tudo era nós. Agora sabemos que esse tempo existiu, mas para existir tivemos de ir para fora. Depois disso, cresceu a angústia de ter olhos e todos quiseram salvar o mundo.

    Mas para que se há-de salvar o mundo? Não está ele sempre salvo? Porque é que ninguém nota isso? Afinal, acabámos mesmo agora de evitar uma explosão de meteoritos, uma colisão com a lua, um pássaro que era um anjo de asas perdidas, um buraco negro que estava na esquina da elíptica solar. Chegamos até aqui, com ou sem asas, com todos os sonhos que se realizaram porque só os sonhos que se realizaram são a matéria de que somos feitos. Sabemos isto, de que somos sonhos de milhões e escutamos na mesma a lengalenga das agruras de gerir um banco, uma padaria, ou um país. E o mundo que rola sem que ninguém o governe quem lhe dá asas?

    Ninguém sabe das asas das vozes que se soltam nos meandros dos telefones sem colidirem com os aviões. Onde estão as vozes que se espalham nas asas da máquina gloriosa onde nos movemos? Há tantos cantos escuros, onde se escondem máquinas em vez de sonhos.

    As máquinas dos sonhos são as coisas mais tristes, de tudo o que se inventou, depois de ter diluído em lágrimas a Metafísica, de procurar o Ser por toda a parte onde no Nada está. Os sonhos das máquinas só dão sonhos velhos, pesadelos alheios, fragmentos de ontens, repetições sem fim do mesmo como se tivesse voltado à Vida o eterno retorno para ser eterna paisagem de si mesmo, rodando num vazio para onde salta quem paga sonhos. Pagar um sonho é um luxo sem asas de quem não pode ser pobre. Que bom ser pobre!

 

    Não entender de sonhos é estar mortalmente perdido. Podem-lhes pôr asas, como aos anjos das procissões antigas, mas não voam nem cantam com os serafins, querubins e anjos da guarda. Quem tinha anjos-da-guarda louros e lindos a segurar, de leve e breve a esvoaçar, meninos tolos e belos, na ponte, à beira do rio, ou no meio da torrente, por certo era bom uma vez pelo Natal! Pendurados nas paredes luziam estrelas e sossegos de noites macias. Mas nem sequer eram noites, só a perfeição de sentir que estávamos presentes e nem era ontem, nem hoje nem amanhã. Era agora.

    Talvez só uma hora, mas sempre.