"Mundos inumeráveis"

  • Meditações com Fernando Pessoa

    ©  Lúcia Costa Melo Simas .( 2011 )

 

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Aqui e Agora

[  Rododendro em flôr em manhã de chuva. (Pormenor). Aldoar. Porto .2007  ]

© Levi Malho - Imagem digital

         


                                                                              

        Com um chapéu e uns óculos, um ar distante e franzino, Fernando Pessoa dizia o óbvio emoldurando em palavras o que todos nós sentimos.

       Quando o lemos, somos todos um pouco Fernando Pessoa e depois esquecemo-nos disso. Fica o que ele escreveu e insistiu em excesso. Mas o excesso, pela sua mão, nunca é excesso. Nos seus limites, o vocábulo ronda o ridículo ou o óbvio, sem lá tombar e a arriscar o sublime.

        Não agrada a sua falsa humildade porque recorda a nossa. O seu ridículo de ver as coisas transparentes de sentido manifesta, por acréscimo, aquela ânsia desesperada de entender e ser entendido, o que nos acontece quando nos dói o pensar igual à insistência de uma mosca que, lá por ser só mosca e sozinha, não deixa de aborrecer como um pensamento velho.

       Já desesperamos de entender alguém que só se reconhece no mundo dos poemas, na insistente e infindável beleza da simplicidade oculta no quotidiano do chapéu e na tranquilidade dos óculos. A sua imagem repete-se nos livros escolares, nas esquinas de Lisboa, nos quadros de Almada Negreiros e a sua gabardina esvoaça ao vento, como se a pressa de ir para casa e recomeçar a escrita lhe levasse àquele ar anónimo tão enganador por ser fingidor. Quantas vezes poderemos ler ainda as suas palavras e ficar outra vez fascinados?

        Depois, desatamos a pensar em chocolates como quem pensa na irritante grandeza do Mundo. Sentimo-nos ridiculamente capazes de escrever assim. Mas é só sentir, no resto somos como aquele sujeito, o Esteves, de “A Tabacaria”, um vulto ou sombra que passa e se vai.

     Se entendêssemos a importância do Mundo, seria ainda mais terrível não nos entendermos a nós próprios. Gostamos de poesia porque a vida passa depressa demais enquanto as palavras se podem ler de novo e procurar sentir o que se perdeu no cotovelo do tempo.

       Para o mundo, nunca terá importância como é que cada um pensa acerca de tudo e de nada. De tudo e de nada é a vida. O absurdo é traduzi-la, insistir em paralelos e analogias.

Claro que há a presença de Hegel em Fernando Pessoa no seu devir, na mudança, na espiral sem fim, que não permite ler tudo, e no Logos refutado para uma falsa segurança no mundo das coisas tão fáceis como o rio e a aldeia que se idealiza com o dia de anos perdido. E já não fazemos anos. Estamos aqui. A durar. Até quando?

         D. Sebastião, tranquilo e menino, aguarda cada manhã ressuscitando num longo bocejo de quem se sabe aborrecidamente desejado por ausente. Se chegasse quebrava-se o sonho português, o mítico, a saudade do futuro o nosso São Portugal que não pode morrer em nenhum Alcácer-Quibir de pesadelos.   

 

    A transmigração para o poema é segredo que ninguém desvenda. Nem mesmo quem escreve sabe dizer de onde vêm as palavras alinhadas como soldadinhos de chumbo ou cascata de água cristalina que nunca vimos. Todos nós temos um imaginário privado, tal como temos tanques de peixes dourados, palácios e dias de crepúsculos acesos, ou lágrimas de amargos rios. Temos, sim, o imaginário do sonho de um rei cavaleiro, Galaaz perdido num tempo que nunca foi, ou do critico literário que eterna e secretamente vai escrever um admirável romance no tempo do nunca. Com esses sonhos se contenta uma vida que nunca se basta de ser contente. 

   “O rio da minha aldeia é mais belo que o Tejo”. Sentimos perto a ternura e o calor da promessa que mente tão perfeitamente que até sorrimos por ser mentira tão boa de dizer para quem não tem aldeia, nem rio, nem Tejo. Tejo foram muitos cães que nunca viram rios nem saíram da sua freguesia.

Quando se diz tudo, a linguagem deixa de significar o mundo. Estranho! Só agora descobrimos isso. As palavras são as nossas melhores máscaras e é isso o que nos oferece o poeta às mãos cheias e ao desbarato. Que gasto e esbanjamento, que desatino mais louco e que opulência de palavras. Para nós, leitores, resta o vazio teimosamente cheio da prosa que queria ser verso e subir ao céu até conversar com os anjos.

    Ouvimos as palavras alinhadas em fila, em murmúrios rebeldes, na esperança de se transformarem em coisas e não as sentir doendo de desespero por não terem voz. Depois saem as nossas palavras, toscas e desajeitadas, com pena das outras que ficam para trás esquecidas. O sol baila lá fora e não nos convida a sair. Não é ridículo escrever isto, e chove e é noite?

      Afinal, quanto menos vulgares nos sentimos mais vulgar nos tornamos. Toda a gente vulgar se sente capaz de viver todos os sonhos que inventa. Se não os inventasse não se sentiam tão vulgares.

      Todos os sonhos só escurecem ao sol, dão muros para esconder a nossa saudade de coisas que nunca existiram e onde fomos “outrora agora” felizes para sempre. E há ecos porque não sei pensar em nada e dói. Como aquele vestido azul vago de um Verão perdido a marcar um tempo que só existe por ter havido um vestido vagamente azul e inteiramente feliz outrora, agora!

      Ser simples é mais um sonho de imaginar que se dão conselhos e tornamos as pessoas felizes. Conselhos são venenos que curam as nossas vaidades e nos dão a medida do nosso ridículo.

 

    Pessoa sabia muito sobre o ridículo e não tinha o medo do comum das gentes.

   Era Pessoa e isso fez-lhe mal. Um nome que é pesado de carregar e leva logo a interrogações. Ser pessoas em Pessoa é a ambiguidade do espelho que se abre para a luz e se reflecte sem fim. Dá desdobramento de quem fala consigo pois encontra logo um outro e mais um além que impaciente já aguarda. Amigos invisíveis tão reais por serem pessoas.

     Descobrir que estamos fartos de nós, obriga a dizer que estamos fartos do mundo. Por isso inventamos saudades e multiplicamos sem fim o que nunca foi, o que não conhecemos, Veneza onde outros foram, Paris de papel, Nova Iorque de multidões, Calcutá e além, só em mapa, Pequim ou a solidão e medo de Tóquio que alguém nos trouxe. “Viajar, perder países”… há tantos para sempre no escuro dos caminhos que não trilharemos.

     Por causa de Pessoa descobrimos que somos toda uma invenção de nós mesmos e não nos podemos cansar em cada beleza que se nega por medo de ficar na margem de murmúrios de água..

 

    “Sei lá o sentido que as coisas têm”? Adoecemos, curamo-nos e tornámos a pensar no sentido das coisas, da sua falta de Mistério e o nosso mistério vão, quase ridículo.

 Somos uma invenção de muitas pessoas, de todos os outros que nos dizem bons dias e boas tardes serenos e que nos reconhecem com todos os ridículos e vaidades que não admitimos.

    Também queríamos ter assim um chapéu e uns óculos, um ar fugitivo das páginas dos livros para lá voltar. Afinal todo o sentido do mundo está nas crianças que brincam, no ribeiro que corre, na gargalhada de alguém, nas noites e dias felizes, nas janelas fechadas, nos montes, nos que ficam e partem, sempre nos outros, que não são outros, senão não seriamos nós.

     Que mal fizemos ao mundo para chegar a este grau de ignorância?