"Sombras de Marco Polo"
Carta 10ª ao Século XXI
© Lúcia Costa Melo Simas .( 2011 )
Saída do Túnel
[ Azulejos da Estação Ferroviário de S. Bento. (Pormenor). Porto .2001 ]
© Levi Malho - Imagem digital
As épocas determinam muito o modo de ser das gerações. Há mesmo um provérbio árabe muito antigo que diz: “Os filhos parecem-se mais com o seu tempo do que com os seus pais”.
Até há bem pouco tempo, este ditado não era possível de aplicar à civilização chinesa. Inexpugnável ao Ocidente, nunca foi colonizada e permaneceu, até inícios do século XX, no Neolítico, praticamente na sua quase totalidade rural. Foi assim, com esse atraso tão desproporcionado, que Teillhard de Chardin descreveu o campo e as aldeias, onde os chineses viviam com grandes privações e miséria. Durante muitos e muitos séculos, este país tão antigo manteve uma luta sem tréguas contra os horrores das guerras, epidemias e cataclismos devastadores. Num território tão imenso, em línguas e dialectos, etnias e tradições, a influência do exterior só se fez notar pela violência, como foi o caso mongol, ou pelo saber de missionários portugueses, mais alguns ilustres mestres jesuítas. Essas excepções até acentuam o isolamento do “Império do Meio”.
Ao invés disso, a vizinha Rússia, já nos inícios do século XVIII, teve uma revolução cultural, científica e social que a transformaram. O Czar Pedro, o Grande, depois das suas viagens, mais ou menos clandestinas pela Europa, trouxe tais ideias e projectos de modernização que ocidentalizaram o seu país.
Apagou a letargia russa e um novo espírito com o signo do progresso, abria as portas à Europa mais civilizada. Com tudo isso, não melhorou a vida do “infeliz povo russo”, esmagado pelos impostos e trabalhando “como “animais de carga”.
Assim descreve o historiador Grimberg e afirma que se tratou, apesar de tudo, de uma modificação radical. Era o abandono forçado do Oriente e o voltar a face para novos horizontes, modernizando a velha Rússia, com tudo o que de mais avançado nas ciências, técnicas e artes de toda a ordem podiam ser usadas nesse tão vasto país.
Foi à força que a Rússia deixou os seus hábitos asiáticos e rústicos, as suas simples habitações e vestes tradicionais. As damas da nobreza abandonaram o isolamento oriental, quase de haréns, separadas dos homens, e a corte do Czar passou a assemelhar-se à francesa, sendo desde então, uso elegante falar essa língua. Os livros vinham da Europa, mais os intelectuais e pensadores que influenciaram nobres russos e vieram a originar o gosto pela cultura, artes e letras do Ocidente. Aos nobres tradicionais não restava alternativa senão mudar de costumes e até de vestes. Tiveram de trajar à ocidental para poder aparecer na corte ou perante o Czar e a exigência chegou a ponto de terem de pagar imposto, se não cortassem as longas barbas tradicionais!
A Duma e os boiardos, descendentes de diversas aristocracias, desaparecem em 1711. Se bem que as mudanças fossem impostas à força, marcaram para sempre o rumo europeísta do povo russo. Em pouco tempo, a delicadeza da corte francesa, a sua língua, os autores europeus passaram a serem conhecidos. Entre eles tivemos alguns Portugueses que se notabilizaram como estrangeirados. O judeu Ribeiro Sanches, médico, filósofo e pedagogo, pertence ao número dos melhores intelectuais apesar do anátema da origem judaica. Por isso, teria escolhido estudar medicina e era possuidor de conhecimentos notáveis. A sua estada na Rússia, segundo ele mesmo descreve, teve aspectos ilustres e singulares:
Em 1731, sob a sua incumbência [do célebre Hermann Boerhaave (1668-1738), considerado o maior professor de medicina do seu tempo] parto para a Rússia. Aí exerço importantes cargos como médico, acompanhando as expedições dos exércitos imperiais e, depois, no Corpo Imperial dos Cadetes de São Petersburgo, colégio reservado à mais alta aristocracia russa, tendo por último sido nomeado médico da czarina Ana Ivanovna. Ao mesmo tempo correspondo-me com os melhores espíritos europeus da época. Este movimento [o Iluminismo] vinha ganhando expressão nos escritos de vários livres-pensadores: John Locke, Montesquieu, Denis Diderot, Voltaire e outros.
A longa permanência na Rússia e o contacto com os seus diferentes povos e raças permitem-me fazer importantes observações etnológicas que comunico a Buffon e que são por ele referidas no 3.º Volume da sua História Natural.[i]
Curiosamente, tanto para a Rússia, nos inícios do século XX, 1905- 1917, como para a China, (1912) as ideias filosóficas, políticas e económicas, que trouxeram o comunismo, vieram também da velha Europa. Podemos até dizer que há asiáticos europeístas, se bem que Voltaire, Diderot, Rousseau, Hegel e, bem mais recentemente, Marx e Engels escrevessem sem pensarem em países como a Rússia ou a velha China.
Ao contrário da Rússia, muitas tradições duraram até 1912, quando um decreto de Sun Yat-Sen, então presidente da república chinesa, iniciou a viragem da China. Sun, pioneiro da China republicana, foi considerado o pai da Nação, pois derrubou a última dinastia em 1911 e, no ano seguinte, por breves meses, foi o primeiro presidente da nova república. É curioso o seu interesse pelo cristianismo, a par das sua inclinação pelo comunismo que o via com simpatia.
Não podemos louvar certos costumes e tradições. Mas países tão antigos como a China viveram séculos com os olhos postos no passado. Por exemplo, temos o caso das jovens chinesas nobres terem por obrigação uns pés minúsculos, à custa de estarem enfaixados cada vez mais apertados, com dores e tortura constantes até conseguirem ter, tal como queriam, uns pezinhos pequeníssimos, mas também completamente deformados. Muitas dessas jovens nem podiam caminhar depois de adultas e sofriam toda a vida de graves problemas ortopédicos.
Pode parecer uma comparação ofensiva, mas o uso dos sapatos agulha e similares a que tantas ocidentais se escravizam, e que qualquer bom senso de um ortopedista considera loucura, é também um triste exemplo, paralelo do que se passou na velha China. Peral Buck, Nobel da Literatura, na sua obra “Vento do Oriente, Vento do Ocidente” relata como foi dolorosa a libertação dos pés prisioneiros.
Existe um certo paralelo entre a revolução russa, sob o pulso forte do Czar Pedro e a construção de “O Grande Salto em Frente,” (1958-1960) que, sob o comando de Mao, tentou modernizar a agricultura e a indústria na China, no meio de milhões de mortos e de desastres económicos sucessivos.
Mao mudou o seu sonho revolucionário num pesadelo para os pobres chineses pois, grande parte da revolução, foi imposta com imenso sofrimento, fome, tortura e morte. De qualquer modo, foi mesmo uma transformação espantosa que ainda hoje dá orgulho ao povo. E se, já antes era avesso aos estrangeiros considerados rudes e selvagens, desde então, com a “Revolução Cultural”, ainda mais desconfiado e xenófobo se tornou ao Ocidente.
Se esquecermos um pouco o lado humano, que tanto nos emociona e comove, por ver um povo inteiro tornar-se vítima do medo e do terror da cruel miséria e mortes de inocentes, o certo é que, sob o impulso e propaganda maoísta, a China surpreendeu o mundo e transformou-se no que é hoje.
Sem apoios externos, até em grande parte isolada da própria URSS com quem teve sempre relações tensas ou conflituosas, o esforço louco do povo e o seu sacrifício levou o país a ser possivelmente a superpotência que mais influência a cena económica mundial.
A obra do pensador inglês, Francis Audrey, tem um título bem elucidativo e sintético que revela o paradoxo do país: “China, 25 séculos, 25 anos”[ii]. O “boom” dos últimos anos apagou séculos de história sem modificações sociais, políticas e económicas para um povo tão extenso como o seu próprio território.
A “Revolução Cultural”, de 1966 até à morte de Mao, transformou-se, em dez anos de terror, um triste exemplo do que o fanatismo rude, em tantas ocasiões históricas, é capaz com a cegueira de objectivos dementes. Os jovens fanáticos, algumas ainda quase crianças, que pertenciam à “Guarda Vermelha”, e ainda militares, camponeses ou estudantes, para além da crueldade exercida sobre a “burguesia imperialista”, destruíram todo um passado carregado de história e de beleza.
A campanha, levada a cabo anteriormente pelo Grande Timoneiro e que se chamou, por triste ironia, “ O Desabrochar de Cem Flores”, veio a relevar-se um meio de descobrir todos os que se opunham às suas rigorosas directrizes. A luta pelo poder intensificou-se, nos anos que se seguiram, de tal modo que o fenómeno tomou uma tão grande violência, que ainda causa espanto aos historiadores perplexos por um acontecimento de tão elevada violência e ódio. A aversão ao passado e à “burguesia” destruíram milhões de seres humanos, pela miséria e pela fome, para além das perseguições e ainda com a desaparição da arte chinesa, da sua delicada cultura, de tantos dos seus belíssimos monumentos e construções.
A propaganda do Livro Vermelho, com toda a sua doutrinação ideológica, foi de tal ordem que só é comparável à difusão da Bíblia. Qualquer quarto de hotel tinha, pronto a ler pelo turista, na mesa de cabeceira, o famigerado livro de fundamentos marxista leninista, na interpretação de Mao e dos seus rudes poemas. Marca bem o culto da personalidade e a sede do poder de Mao.
Nos bastidores ocultos, longe de qualquer observação indiscreta, deixava enormes franjas de excluídos, mortos, vidas desprezadas e esmagadas, com as constantes mudanças que o Partido tomava a seu bel-prazer e ainda as muitas vinganças e ódios que a Revolução causou.
Para o ensaísta belga, Pierre Ryckmans, famoso sinólogo, a melhor forma de poder escrever acerca da China e de Mao, foi adoptar o pseudónimo de Simon Leys, (1971). O famoso escritor sintetizou este tempo de cólera como:
"a revolução cultural, que de revolucionária só teve o nome, e de cultural só o pretexto táctico inicial, foi uma luta pelo poder travada na cúpula entre um punhado de indivíduos, por trás da cortina de fumaça de um movimento de massa fictício."
É bem curioso como o desenrolar dos acontecimentos já vai muito para além do que Audrey previu. A industrialização e o urbanismo aumentaram cada vez mais. Entretanto, o campo mantinha-se bem atrasado e as tradições ainda se respeitavam. Todavia, a miséria diminuiu e a pobreza não tinha aquele anátema da desgraça que Mao nos seus tempos mais duros ocasionou em milhões de seres humanos.
Em complementaridade, Jung Chang é uma chinesa, refugiada em Inglaterra e que viveu a aterradora saga da revolução. Aos 14 anos chegou a ser Guarda Vermelha e seguiu a revolução por dentro. Já em Inglaterra, descreve na obra “Cisnes Selvagens – Três filhas da China”, os negros tempos maoístas, de fanatismo e terror. A fidelidade de seu pai ao Partido foi causa da sua demência, depois da desilusão com a revolução e das constantes confissões forçadas e interrogatórios a que foi submetido. Avó, mãe e filha, marcaram etapas diferentes dessas mutações. Denúncias, purgas, tortura, tirania, corrupção e tudo o que teoricamente não está nas ideologias comunistas causam perturbação pela violência exercida no amargo acordar de um país onde tudo é imenso.
Depois de mais 10 anos de investigações, com seu marido, o historiador John Halliday, Jung Chang retoma o tema em “Mao: A história desconhecida”[iii]. Embora polémica e controversa, descreve, com realismo frio, com muitos pormenores e testemunhos, a miséria e propaganda que se chocam no derrubar do mito de Mao. A esposa deste, Jiang Qing, antiga actriz, que se dizia opor à cultura, ajudou zelosamente nas grandes purgas. Era de tal modo malevolente que a consideravam “tão mortiferamente venenosa como um escorpião”[iv] e transformou-se “num chefe de polícia para esmagar a cultura em toda a nação”.
Décadas de obediência total levavam a que as mais pequenas rodas dentadas da burocracia chinesa tivessem um controlo absoluto, com um culto da personalidade que, por apelar ao altruísmo ou ao terror, levou a nação ao estado de “morte cerebral”.
Recorde-se apenas que a construção da bomba nuclear teria causado cem vezes mais mortos que as duas bombas lançadas sobre o Japão. O desprezo pela vida do seu povo ou o medo dos possíveis inimigos tornaram este personagem histórico, um dos mais desumanos e caprichosos tiranos que se conhece.
A letargia do pensamento parece explicar-se pelo medo e grande vigilância que o Partido, dominado pela obstinação de Mao exercia sobre as massas.
Quando até o cultivo de flores se transforma, no pensamento de Mao, em “resquícios da velha sociedade, um passatempo para a classe burguesa e outros preguiçosos” como afirmou, não espanta que conseguisse disseminar a aridez da sensibilidade e o desenrolar da marcha cega, sem objectivo, de milhões camponeses sujeitos a trabalho escravo. Os diversos projectos de barragens, canais, sistemas de irrigação e até o cavar a terra à mão, foram impostos aos pobres camponeses iletrados e famintos. Enquanto se usava os cereais para testes de mísseis, morriam de fome aldeias inteiras, por inanição e subnutrição continuadas [v].
Depois de Deng assumir o poder, tudo passou a desenrolar-se com rumos diferentes e novos ventos de progresso que parecem não parar. Designado como “o porteiro da nova era” Deng é uma figura sem consenso e muito controversa. Mudou a face da China mas, o pesado legado de Mao continua na repressão política e falta de respeito pelos direitos humanos. Abandonou a prioridade da indústria pesada a favor de mil produtos de consumo para exportação. Muda a política agrícola, um dos erros de Mao, e os agricultores puderam arrendar as terras. O crescimento agrícola, agora nas mãos dos camponeses, passou para o dobro em pouco tempo.[vi]
O que se alterou, depois de Mao, manifesta bem aquela verdade que afirma que quem entra nos acontecimentos não tem qualquer noção das consequências e rumos imprevisíveis que os acontecimentos tomam.
Quando a China abre as suas portas à economia de mercado teve o cuidado que saber o que deveria exportar. Com uma mão-de-obra mais do que barata e sem poder de defesa, não tardou que o Ocidente começasse a notar como pululavam objectos de uso comum, da mais variada aplicabilidade, com o rótulo RPC ou “Made in China”. A partir daí, dá-se o prodígio de um país totalitário que tem uma economia adaptada ao Ocidente, com fábricas e empresas estrangeiras a serem convidadas para se instalarem nesse no seu território. Torna-se num inexplicável paradoxo o regime totalitário nas mãos de algumas elites do Partido e vida miserável da generalidade do povo.
Alguns anos atrás, nesta época em que os acontecimentos voam a uma velocidade estranha, um chinês com uma bicicleta era já um privilegiado. Depois e bem rapidamente, as cidades inundaram-se de bicicletas, especialmente a Leste, onde há mais planícies. Esses veículos, todos disciplinadamente a correr pelas vias adequadas, onde os automóveis eram raros, tornavam-se símbolo do trabalhador chinês. Ainda hoje, é comum percorrer 50 quilómetros a pedalar para chegar ao emprego, em Tianjin, a terceira maior cidade da China.
No ano de 2005, estimava-se em 500 milhões, o número de bicicletas, mas, cada vez mais, o automóvel substitui o transporte tradicional. “Para evitar o agravamento do caos no trânsito, as cidades possuem vias separadas para as bicicletas, ao lado das destinadas aos carros.”[vii] Tudo se altera espantosamente depressa. Em breve chegavam os automóveis em massa. Tão velozmente que, já em 1996, andar de bicicleta na China era visto depreciativamente pelos próprios chineses em franca adesão ao modelo automobilista Ocidental, quebrando os laços com a tradição maoísta.[viii]
Uma revolução espectacular está a acontecer com a compra de automóveis. Mais de oitenta por cento das pessoas que compram carro na China nunca o tiveram. Claro que, cidades com mais de quinhentos milhões de habitantes, causam uma poluição terrível e não há modo de a diminuir pois o desejo de comprar carros não diminui. O que antes era um símbolo de poder e de privilégio, torna-se cada vez mais uma compra vulgar
Os visitantes aterrorizados, ao regressar da China, referem-se a colossais nuvens de produtos tóxicos no ar que se respira e “uma gigantesca nuvem de fumo a passar para o Oceano Pacífico com quilómetros de extensão.”
A enorme cidade de Xangai, todos os dias, tem um denso nevoeiro e os automóveis não deixam ser uma das causas disso. É conhecido o desprezo ou desconhecimento das consequências da poluição ou a falta de preocupações ecológicas nesses países da Ásia.
A proverbial paciência chinesa parece evaporar-se quando estão ao volante. São automobilistas ansiosos, bem irritados, barulhentos e apressados. Sem cumprir as mais elementares regras, os acidentes tornaram-se numa calamidade que alarma o Governo.
Agora, as grandes cidades do litoral apresentam um cenário bem digno do Ocidente, com tudo o que de bom ou de mau uma mega metrópole nos nossos dias. Apesar da falada abertura ao Ocidente, apesar da China se tornar cada vez mais “a fábrica do mundo” muito se oculta ainda ao Ocidente. A ideia, já comum, da “fábrica do mundo” foi atribuída ao ministro Zhou Rongji neste contexto:
“A China é a fábrica do mundo, os Estados Unidos comandam a alta tecnologia, e a Europa é um museu”.
Nota-se bem presente a xenofobia e a vaidade que muito aumentaram no país depois da “Revolução Cultural”. O orgulho e jactância assim manifestados, escondem a existência de lados sombrios. Os riscos de não saber gerir a super produção estão presentes e cada vez se revelam melhor. Os analistas insistem em recordar os “loucos anos 20” nos EUA, e que a China deve aprender a lição dos excedentes de 1929, que depois contaminaram todo o mundo, menos a Rússia.
Isto pode estar mais perto da realidade do que a visão optimista dos europeístas chineses, tal como afirma o investigador Carlos Gaspar. Há ainda um interior escondido, de que não se quer fala quase nunca, nem se pode ter acesso como turista ou simples visitante. As réplicas de aldeias com seus aldeãos encenados para os viajantes são prova de que a realidade não deve ser vista.
A essa descomunal e oculta face da China, só há breves referências, quer por causa de desastres, quer catástrofes naturais, ou desrespeito pelos direitos humanos, como são exemplos os tristes casos de “lares” de crianças órfãs, abandonadas pelos pais, por deficiências ou outras causas.
Nesse imenso país, de tantos contrastes, a propaganda e a ignorância, o nacionalismo e o fanatismo, os novos-ricos e a pobreza extrema equilibram perigosamente um sistema político totalitário que, como nenhum outro, atinge níveis de produção inigualáveis.
Duas Chinas, com um urbanismo exacerbado e um ruralismo à beira da miséria conseguem estar unidas! Porém, se oficialmente são duas Chinas, a realidade mostra muitos “Impérios do Meio” em franca oposição e contraste. Capitalismo e socialismo e um sem fim de paradoxos vieram a descobrir-se com a era de Deng. Tal fenómeno exemplifica-se com o diálogo entre um dirigente alemão e o poderoso Deng, durante uma visita de trabalho a Pequim. O ministro federal alemão, Klaus Topfer pôde constatar em conversa com Li Peng ( 1992):
“Até que ponto a própria China com o seu governo autoritário, é uma estrutura frágil. Como era seu dever, recordou ao primeiro-ministro Li Peng que mesmo no Império do Meio há que respeitar os direitos do homem. O estratega político chinês respondeu-lhe que era efectivamente possível acordar esses direitos ao seu povo. “Mas, nesse caso” perguntou “ estará a Alemanha disposta a acolher anualmente algo como quinze milhões de chineses e a assegurar a sua subsistência? “ Esta reacção inesperada deixou estupefacto o missionário da democracia ocidental. Este “inacreditável cinismo”, recorda Topfer, deixou-o desarmado. (…) a pergunta que a humanidade se deve colocar hoje, particularmente aqueles que até agora foram os vencedores, a Europa e a América do Norte.”[ix]
Este Li Peng[x] é o mesmo que, apenas quatro anos antes, a mando de Deng, afogara em sangue a manifestação pacífica dos estudantes que pretendiam estabelecer algumas reformas democráticas. Uma acusação de americanismo e de manipulação de massas e logo uma repressão violentíssima, com milhares de mortos, manifestaram o tirânico domínio político, que não pode admitir qualquer liberdade sem receio de uma catastrófica queda do regime. Para agravar a situação, esta manifestação rebentara nas vésperas da chegada de Mikhail Gorbachev a Pequim. A praça da “cidade proibida” ostentara, por algum tempo, uma estátua similar à da Liberdade, mesmo em frente da estátua de Deng, e isso teria um impacto muito violento para o exterior.
Entre o risco do caos e a hipóteses de reformas liberais, a praça de Tiananmen permanece como símbolo do medo da democracia e do êxito da propaganda.
A China tem sofrido uma mudança interna bem diversa do que se passou na sua cordial inimiga Rússia. O líder, Gorbachev foi o impulsionador dos ventos de mudança e liberalização na URSS. Já Deng teve um papel bem diferente. Numa perspectiva hegeliana de análise do Estado, foi o “espírito objectivo” que realizava o que a razão ordenava. Tratou-se apenas da objectivação das alterações do espírito subjectivo que todo o povo vivia. Daí o “espírito hegeliano” servir, em grande parte, para justificar o Direito e todas as paixões dos homens que, sem o saberem, servem os propósitos da razão e da “sua astúcia”.
Deng não foi mais do que o que diria Hegel “os indivíduos não impedem de acontecer o que tem de acontecer” (…) um indivíduo não pode ultrapassar o Espírito do seu povo”[xi] Neste ponto, Deng apenas teve sentido lógico e dialéctico porque realizou o Espírito do Povo que tornou objectivo. O Estado ético está de acordo com o “todo” e assume assim a responsabilidade, mesmo que o não saiba.
A queda da URSS trouxe novo alento e um respirar mais tranquilo à China. Era uma mudança muito favorável para a sua segurança e estratégia. Talvez por esta razão, e porque o Estado na China, encontrou a sua fórmula mais objectiva num modelo “hegeliano”, Carlos Gaspar afirme que, a transformação que se dá, é o que de mais ocidental podia acontecer. Trezentos anos de má vizinhança e perigos constantes desapareciam com a queda do Muro de Berlim. Foram dois gigantes que se enfrentaram e competiram entre si.
A interrogação que paira no ar é se agora a China terá mesmo de se ocidentalizar com uma sociedade de consumo, publicidade, estilos de vida bem diferentes dos tradicionais. “Nesse sentido, embora sem deixar de ter em conta o trabalho persistente de sinicização da ideologia alemã da revolução socialista, a China do nosso tempo já não é o “exacto oposto” da Europa.”[xii]
Temos de recordar que, de algum modo se pode traçar uma certa semelhança do Czar Pedro, o grande, e Mikael Gorbatchov com as suas reformas que se realizam igualmente do topo da pirâmide para as bases. A ocidentalização da Rússia do Czar Pedro tem algo a ver com toda uma mentalidade preparada para aceitar o europeísmo de Gorbachev, a ideologia consumista e o estilo de vida do Ocidente. Mas os rumos de liberdade que sopravam na URSS não puderam evitar grandes tempestades. O caos que se lhe seguiu pode ser um dos pesadelos que atemoriza os políticos chineses.
Neste planeta superlotado e desigual, as respostas são cada vez menos simples, os problemas mais gerais, as pessoas mais “descartáveis” quando são vistas como um subjectivismo ameaçador ao todo que se move, sem consciência nem cérebro, com grupos do poder que agem como se soubessem para onde levam a nação, enquanto zelam pelos seus interesses.
De facto, ainda hegelianamente, o Logos governa o mundo, enquanto os homens são simples joguetes das suas paixões. Uma superpotência, sem protecção aos trabalhadores nem respeito pela vida humana, ao lado de grandes riquezas nas mãos dos altos membros do Partido, donos de minas ou outras explorações, coloca muitas questões sem respostas a analistas de todos os quadrantes.
Após a abertura do mercado, esperava-se que a mentalidade consumista e toda a cultura chinesa se abrisse para o resto do mundo, mas tal não sucede facilmente tal como o sistema não se altera. A propaganda, o medo, o crescente desenvolvimento do litoral, em contraste com todo o interior rural, entrechocam-se e estão cada vez mais desiguais.
O êxodo dos campos não traz real benefício para os camponeses deslocados e condenados a um trabalho não menos pesado, sem descanso nem melhorias salariais. A sua chegada à cidade destrói as ilusões que alimentou através de esperanças em anúncios e vagas notícias de melhor emprego. A sua vida pode muito bem tornar-se num inferno, no limite da sobrevivência. O próprio Partido não consegue controlar todos os que chegam sem licença às grandes cidades e que só o conseguiram enganando a severa vigilância das estradas. Sem se conseguirem integrar, engrossam o número de vagabundos que, já em 1996, ascendia já a mais de cem milhões de pessoas[xiii].
As notícias são contraditórias. No ano de 2006, a ida para as cidades deixou de ser proibida mas também não há estímulos. Um trabalhador, que sair do campo, perde todos os direitos e protecção do Estado.
Com uma mão-de-obra, mais do que barata e à beira da escravidão, de modo algum os chineses necessitam de estrangeiros e a economia cresce com marcas como a Gucci, a Versace, Hugo Boss e outras que lá se instalam. Assim, temos duas realidades da economia com a mão-de-obra em massa que deseja um emprego e a grande indústria que prospera a olhos vistos, com o trabalho de mais de 10 horas por dia, 2 dias de descanso mensal, direito a um beliche num imenso dormitório e um salário irrisório[xiv].
O desemprego aumenta cada vez mais e a pobreza acumula-se por mais que os aspectos florescentes e opulentos sejam oferecidos aos olhos dos estrangeiros, capazes de se ofuscar pelo que lhes é permitido ver.
O “capitalismo comunista”, assim designado por Claus Offe, discípulo da segunda geração da Escola de Frankfurt, não tem tanto de estranho, como possa parecer, se tivermos em conta a realidade que esse Estado, de modelo hegeliano, representa.O certo é que já não se pode falar na oposição entre europeus e chineses de que falava Marx (1848), ano de grandes revoluções em França e que marcou a sua expulsão do país. Era o tempo da guerra do ópio[xv], de tentativas frustradas de colonização e, de facto, nessa época, não podia haver comparação entre a Ásia e a Europa.
O avanço cultural é ainda bem tímido e nem os intelectuais nem a arte se libertam facilmente de representar a ideologia do Poder. A proclamada liberdade na Arte é uma ilusão quando se pensa que os artistas estão ao preço do mercado, relaciona-se com a venda e o sociólogo Bauman tem razão ao referir que, até na condição estética, onde mais o homem podia ser livre, há aquela ambiguidade que torna desalentadora a aprendizagem de viver na incerteza que é a teia social da pós modernidade.
Os programas televisivos e cinema, que têm muito de ocidental nos “enlatados” de séries estereotipadas, revelam grande austeridade, os apresentadores, de rostos severos e sisudos como cangalheiros, com vozes doutrinárias, reconfortadoras, comunicam catástrofes, inventos ou prisões como se dos mesmos assuntos falassem. Os sorrisos raros e polidos tem um ar familiarmente ocidental, a esconder toda uma civilização que se distancia muito, no que tem de mais profundo, e que a revolução cultural não pode ter esmagado por completo.
A alma chinesa tinha um cunho de delicadeza e sensibilidade tocantes, que lograram revelar-se nas cortes de Pequim. Os mais pequenos pormenores e gestos, com todo o ritual de milénios de arte da simplicidade e de sentimentos profundos puderam florescer num tempo recuado como quando Mateus Ricci[xvi], vivia nessa Corte (1585-1610). O famoso jesuíta mudou o calendário chinês e os jesuítas deram a conhecer as descobertas de Galileu Galilei (1564-1642), quando em Portugal, Camões (1573) ainda falava da teoria geocêntrica em “Os Lusíadas”. Ao descrever a “máquina do mundo” o nosso poeta reporta-se ainda ao Almagesto e às doutrinas de Ptolomeu, do século II. Mercê da velocidade com que os conhecimentos percorriam as Casas dos jesuítas, autênticos centros de estudos, bem avançados e melhor pensados, para que se enquadrassem nos contextos locais, a circulação dos conhecimentos era bem veloz. Sabendo do interesse do Imperador pelas ciências, em especial pela astronomia e matemáticas, os jesuítas sediados em Pequim (1582) foram mestres que despertaram grande admiração da maior parte da corte, mesmo que fossem bem desconfiada e arredada da convivência com estrangeiros.
Desabrochou bem cedo o gosto pela poesia ilustrando, ao longo dos tempos, o espírito requintado a que podia ascender a arte chinesa e são conhecidos poemas que o demonstram facilmente.
Wang Wei, poeta da dinastia Tang, (618 - 907) exemplifica até onde o espírito pôde subir numa simplicidade, contrária ao simples, com o uso de vocábulos: como etéreo, luz e sombra, o adeus que não se diz e a separação que dói só mas só se supõe. A polissemia das palavras desdobra o seu sentido e chega até nós
Sobre o alto terraço
Desde o alto terraço, dizer adeus:
O rio, a planície avançam no escuro
À luz do crepúsculo, os pássaros retornam
Já o viajante parte, sem demora
Ainda outro poeta, Li Bai, da mesma época tão recuada, manifesta um romantismo que o tornou o maior do seu tempo:
Penso na noite
Diante da cama a lua brilha
Em cima da geada está a dúvida
Miro em cima e há lua cheia
Miro em baixo e sinto saudade da minha terra
Ao pensar na noite, envolve o leitor na penumbra do seu espírito, com uma solidão obscura e insiste mais no isolamento que parece ser agónico, centrado na dúvida e gelado na geada. Essa aliteração da lua ilumina à medida que se avança na leitura. Depois o olhar, a lua e a geada revelam uma sobriedade escorreita que volteia na noite, numa transparência e num frio interior. A saudade do longe chega sem adjectivo. Basta tocar e a palavra dói. É um poema de delicadeza extrema e de um intimismo forte. Parcas as palavras para nem ao tempo se prenderem.
Após séculos de sofrimento, no limite da sobrevivência, ou a exaltar o povo, no rude dizer do Grande Timoneiro que se imaginava poeta, há uma larga estrada a percorrer para surgir outra Arte que não seja a do betão e do cimento.
É fácil de verificar que as canções, as preferências de temas e o sentido de humor, presentes nos filmes populares revelam uma mentalidade dócil e básica, sem qualquer sofisticação ou reflexão, com grande ingenuidade. Esse tipo de cinema e de humor há muito que já passou por nós. O deslumbramento pelos grandes heróis, paixões e humor infantil teve uma época em que a crítica e a reflexão estavam quase ausentes na maioria do público. Tivemos também a nossa época ingénua na arte do cinema como no teatro. Não esquecemos ainda os filmes com a comicidade de um Norman inglês, um Jerry Lewis, ou Bob Hope americanos, um Totó italiano, um Cantinflas mexicano, um Joselito espanhol, ou um Luís Funès bem gaulês. Deduz-se facilmente a mentalidade de um povo a partir do seu riso e das suas preferências de consumo cultural.
Tal como nos aconteceu, em poucas décadas, se a mentalidade se alterar, tudo isso será inútil para alimentar ilusões e essa forma de evasão perderá também o seu êxito para grande parte do público chinês. Supomos, nesse caso, que pode haver uma verdadeira revolução cultural que nada terá a ver com a outra de má memória. Há uma determinada forma de indústria cultural que o Ocidente já aplica e que tem uma multiplicidade de estilos e facetas pois a mediocracia das massas subiu já alguns degraus na escolha dos produtos que procura. A diversidade é uma forma de tolerância que nos liberta do “pensamento único” no que toca à cultura e não apenas aí.
Esta tolerância, na China, pode ser um ligeiro sinal, quase invisível, de uma maior percepção do mundo e das realidades em que nos movemos cada vez mais depressa. O mercado, tão variável em objectos de consumo, até com a indústria cultural, como bem chama Adorno à cultura de massas, é o que os Estados liberal deixa aos seus membros em liberdade e escolha. Que poderá acontecer no país do Dragão nos próximos tempos?
Face ao gigantesco consumismo que penetra nas massas, mais do que uma droga insidiosa e tentadora, própria do babelismo, não será fácil, talvez, que o pensamento de Kant e o de Hegel, obras de Russell ou de Peter Singer, Dostoievksi, Erasmo ou até Shakespeare, encontrem ávidos leitores chineses. Podemos supor até que se tornem em objectos inócuos, estudados em faculdades, como estranhos epifenómenos da cultura Ocidental ou fermento de uma espiritualidade aberta à noção de Humanidade.
Na Índia acontece um lento despertar com o cinema que embalou décadas de sonhos e ilusões de tantos e tantos indianos fanáticos pelos seus ídolos. Agora, o cinema indiano alcança formas já mais elaboradas e lentamente se transforma, alcançando temas cada vez menos comerciais.
A mundialização tem facetas incontornáveis e a entrada na sociedade de consumo, mesmo que timidamente, no interior da China, parece ser um aspecto que não pode deixar de modificar a fechada mentalidade da maior parte do povo.
O presidente Hu Jintao, hoje a pessoa mais poderosa do mundo inteiro, esmagou o Ocidente com o esplendor dos Jogos Olímpicos (2008). Em termos políticos e económicos, tratou-se de uma demonstração de Poder e de Força. Só um povo perfeitamente disciplinado e convicto, tão doutrinado que não se permitia ter a mais ligeira falha, alcançaria tais prodígios de técnicas, arte e desporto pois queria deslumbrar o mundo com a sua ocidentalização. Só que havia em pano de fundo uns imensos bastidores bem nacionalistas, submissos até aos mais ínfimos pormenores
Será que a sua prosperidade não tem limites?
A abertura ao exterior é tão mais abrangente quanto a invulgaridade deste sistema com a sua espinhosa economia. Em tempos atrás, falava do risco da China matar a sua “galinha dos ovos de ouro”, a União Europeia, quando as exportações descem, e isso ainda não está fora das possibilidades que a realidade oferece. Aliás, até é semelhante ao que sucedeu na América nos trágicos anos trinta. “O cordão umbilical comercial e financeiro” entre a China e os Estados Unidos parece não poder manter-se por muito tempo.
O que escreveu Niall Ferguson, historiador economista, acerca desta relação, baptizando-a de «Chimerica» parece-nos estar em franca alteração. Um dos aspectos que já se aponta é a ligação «Chindia»ou seja China e Índia. A terra do Ganges é um outro grande gigante que acorda. A própria Alemanha vê com preocupação e grande perigo os seus empregos já inseguros, a prazo e sem os seus altos salários.
A oferta de mão-de-obra, a preço baixíssimo, que a China e a Índia oferecem, cada vez e em cada vez menos tempo, mostram que a globalização é irreversível. Aliás é uma “armadilha” inevitável e todos os que a negam não têm argumentos para a combater.
De todos os lados, como afirma Castells, surgem os adeptos da anti globalização. As suas propostas são possivelmente válidas, vindas dos mais contraditórios movimentos, defendendo a Natureza, o feminismo, a ecologia e muito mais. Castells demonstra porém que todas essas boas intenções, se assim o podemos considerar, por maiores que sejam as críticas ao globalismo, não oferecem alternativas nem trazem projectos.
O mito do “desenvolvimento sustentável” é o que nos quer oferecer Alain Touraine, mas diante de um capitalismo selvagem, que já existe e funciona bem, nem os meios administrativos nem a educação podem evitar este movimento.
Na impossibilidade de adaptação contínua muitos ficarão para traz, na selvática lei dos mais aptos e mais adaptáveis. Quem não se agarrar bem aos dados tecnológicos, que estão sempre a mudar, desactualiza-se e sai do sistema mais depressa do que pensava. No fundo, todos são afastados pois já se notam barreiras entre gerações muito próximas. Estamos a aumentar a velocidade e a competição a um ritmo cada vez mais insustentável. Nada do que sonha timidamente o sociólogo Castells que acredita numa globalização em rede.
Pensamos que o colapso ameaçador da União Europeia alarga muito os risco que correm as exportações chinesas. A nossa sociedade de bem-estar pode ser posta em causa e sofrer um colapso. A globalização é uma armadilha implacável para todos.
Recordando o keynesianismo, temos de ter prudência em situações de franca euforia “Compete ao país com maiores excedentes comerciais liderar com inteligência a mudança”.Assim, Michael Pettis, professor de Finanças na Universidade de Pequim, compara a China, em franca prosperidade, com outros exemplos, afirmando : “estes casos de excelência no comércio internacional tornaram-se vítimas do seu próprio êxito. Isto pode muito bem estar para acontecer na China.
No passado, viram-se a braços com uma crise de superprodução e um retraimento brutal em relação ao consumo excessivo dos seus clientes”.
Na nova cena mundial, a cada passo se nota uma deflação, uma recessão do consumo e crescentes falhas de liquidez nos países importadores.
No dizer de Pettis “O pior erro político nessas circunstâncias [refere-se aos EU] foi não reconhecer este desequilíbrio insustentável e tentar, através do proteccionismo – adoptando políticas de desvalorização competitiva para fomentar exportações e levantando barreiras às importações –, “exportar” a crise para os clientes.”[xvii]
Keynes era realmente um génio. Movia-se na perfeição no mundo da matemática, filosofia e literatura. Este economista inglês nunca recomendaria que se passasse o carregamento de deficits de um ciclo económico para outro, nem muito menos operar orçamentos deficitários na fase expansiva dos ciclos. Será realmente que é mais famoso hoje do que no seu tempo? Com certeza nem todos concordam com as suas teses mas, para Paul Krugman,[xviii] é ainda mais importante agora do que era há cinquenta anos. Chega a escrever que não pode saber “se os economistas, em geral, se tornarão keynesianos de novo, mas [passou a levar] muito a sério as questões de tipo keynesiano (…) Ele pode ter colocado as perguntas certas, mas cabe sempre aos outros, ter de encontrar as suas próprias respostas.”
Com David Shambaugh, mais um famoso sinólogo norte-americano, a emergência de um “eixo” sino-europeu abre caminho à formação de um “novo triângulo estratégico”. Agora a cena mundial é mais instável. Não espanta que se substitua o triângulo que Deng designou por “Teoria dos Três Mundos” e em que a China se considerava a si própria como um “país em vias de desenvolvimento”. Agora, a China é, por direito próprio e merecimento, uma superpotência, com todo o sofrimento e trabalho quase escravo que o seu enorme sucesso envolve.
Temos a emergência de três pólos na cena internacional: os Estados Unidos, a China e a União Europeia, no lugar do velho triângulo entre os Estados Unidos, a China e a União Soviética. Esta última passou a ter um papel secundário, depois de 1992, e está a braços com o caos interno em que mergulhou.
Apetece recordar Kant para melhor entender a Rússia “Só se aprende a ser livre em liberdade” e isso é uma aprendizagem muito mais difícil quando um país possui uma herança como a da Rússia. A corrupção, o medo, a obediência cega, a sede de viver, as máfias, a nova rede social, os jovens e as suas famílias desadaptadas, os conflitos de valores tornam a Rússia um vizinho que não dá preocupações tão atarefado anda em criar alguma ordem interna. Mas o equilíbrio parece-nos ainda muito frágil e a balança pende fortemente para a República Popular da China.
Despertou-nos forte curiosidade a leitura de uma obra, do notável pensador Edgar Morin, quando este fez uma viagem até à China. O seu interesse, pelo que descrevia era enorme, e a sua deambulação por um belo jardim, no meio de uma cidade, entusiasmou-nos. Ali, por entre espaços verdes e canteiros de flores, crianças brincavam sob os cuidados de idosos, possivelmente avós, namorados conversavam nos bancos, outros passeavam pelas alamedas, havia quem lesse um livro ou jornal, ou apenas descansasse a gozar a tarde. Um ou dois carrinhos passavam a vender sorvetes ou outras quaisquer guloseimas. Ao voltar para o autocarro, Edgar Morin ia francamente encantado. Por azar, reparou então que se esquecera a sua máquina fotográfica e tratou de voltar atrás, sem esperar pelo solícito guia. O seu espanto não podia ser maior. As crianças já não estavam lá, os namorados vestiam as suas fardas, tal como os idosos e os outros. Todos tinham largado os seus postos e preparavam-se para dar contas do trabalho realizado. A cena acabara e Morin chegava aos bastidores do teatro.
Os paradoxos são ainda extremamente fortes como neste caso
Às quatro da madrugada, na grande praça de Tiananmen, (2010) a irónica Praça da Paz Celeste, face a um guarda que boceja disfarçadamente, uma multidão de chineses chora, corre e emocionadíssima fotografa o içar da bandeira! Viajaram de muito longe, vieram na ilusão e agora aquele momento arranca-lhes lágrimas de forte patriotismo, firmado no orgulho enorme pelo seu Império do Meio!
No entanto, continua o controlo de natalidade, a pobreza em grande escala e a severidade com que são tratados os trabalhadores, sem quaisquer direitos humanos mas que tornam este país no milagre deste milénio!
Concordamos com Carlos Gaspar quando prudentemente afirma: “A China precisa de tempo e de condições de estabilidade interna e externa para poder continuar a sua linha reformista e evitar uma crise interna.” Porém não se pode falar hoje em local sem global e é ver como o desastre japonês (2011) fez descer certos sectores na China como foram, por exemplo, as compras de automóveis que tiveram uma queda acentuada. Sem ser representativo, demonstra mais uma vez os riscos da mundialização a que nada nem ninguém escapam. Notamos como o excedente chinês decuplicou a partir de 2003. Isso fez aumentar as reservas em divisas estrangeiras em valores astronómicos. Daí se falar no próximo desmoronar da China” e o cientista político americano George Friedman aponta para 2020 esse acontecimento, que nos parece poder tornar-se menos distante.
A velocidade dos acontecimentos tem-nos ultrapassado e a China está há demasiado tempo a ocultar a si mesma os seus crescentes problemas, entre os quais não é dos menores, a fragmentação, o acordar do povo e das etnias. Para além da grande divisão e desigualdade do país, fala-se num “plano inclinado” que já se faria sentir; deverão haver uns 200 milhões de desempregados nas ruas, 9 milhões de trabalhadores migrantes desiludidos devem ter regressado às suas zonas rurais, já no ano de 2006, um milhão e meio de licenciados não encontrou emprego à altura dos diplomas. Estes problemas só tendem a agravar-se com o tempo.
A China está a braços com desigualdades internas cada vez mais profundas e sem solução, presa do próprio regime e paralisada pelo número crescente da população e fragmentação do pensamento. A pobreza da maioria contrasta com a riqueza de poucos. As reformas partidárias estão proibidas pelo mais simples bom senso. Isso iria pôr em causa todo o regime e um cataclismo político teria resultados sociais incalculáveis.
A fragmentação da China, um pouco como sucedeu com a URSS, depois da Perestroika, tem grande risco, com todos os problemas étnicos e a desigualdade tão forte para uma ideologia como a maoísta, deve dar medo aos políticos. É provável que já tenham tido problemas mais graves, mas a mentalidade jovem da população está a mudar e isso terá fortes e imprevisíveis consequências.
O “boom” da construção e do cimento e betão foi mais um desastre, condenado a falsear dados e a desiludir a economia que cada vez está mais desorganizada no interior.
A decomposição da China parece ser um paradoxo que nem sequer se pode verificar por falta de dados, pela imensidade de pequenos problemas, pelo falsificar constante e habitual do que é oficialmente fornecido ao exterior. É já uma bola de neve que se equilibra mal no alto das montanhas e se avoluma, numa corrida contra o tempo. Pode-se imaginar mesmo que acabará por arruinar-se pelas contradições internas que cada vez causam maior sofrimento, Já não pode haver quem possa dominar a informação, manter sempre acesa a chama nacionalista quando há tanto contacto com o exterior e todas as regiões têm os seus problemas específicos.
A globalização não se associa às barreiras do totalitarismo político, se bem que este possa vencer de outro modo.
As massas, segundo Marcuse, podem muito bem continuar na sua falsa liberdade quando têm bens e objectos a desejar. A inconsciência do feliz consumidor é bem mais alienante do que a que o velho Marx estudava. Impossível também se torna aumentar a repressão. A globalização não o permitiria hoje.
Se a colonização e a invasão não aconteceram neste gigantesco país, a sua divisão e distribuição de focos problemáticos torna-se cada vez mais difícil de gerir. A maravilhosa fachada cheia de luz e beleza deixa fascinado qualquer visitante e repete-se, quer no que vemos em Pequim, Xangai, ou outras cidades do litoral. Porém, podem ter fendas minúsculas, que, no seu todo, se multiplicam e admitem pouca mobilidade política ou iniciativas. Não pode haver mais mudanças no regime, sem que este se arrisque a um vendaval que se pode transformar num turbilhão ou tsunami social. O poder do Partido Comunista está em risco, com todas as tensões e pressões que sofre para se permitir uma qualquer mudança.
O enigmático Dragão chinês com a sua população, de bem mais de um bilião de seres humanos, com a sua grandeza esmagadora e cheia de “buracos negros”, entra no novo milénio com um poder que parece não ter domínio. Os problemas internos são crescentes e irreconciliáveis de paradoxos numa sociedade com as mais fortes desigualdades. De novo nos parece ser curioso traçar um paralelo entre o imperialismo da URSS e a velha e nova China, os seus povos, o Tibete, o ruralismo e as megametrópoles. Se o modelo parece estar esgotado, não surge forma de substituição pelo peso da burocracia, uma forma eficaz do aparelho do Estado manter viva a “paciência chinesa”, do medo das mudanças e a sabedoria que se acumula ao ver o que sucede noutros países.
Não se pode repetir Tiananmen nunca mais.
Pensamos que, por traz do Grande Dragão que ondula ao vento dos tempos, os supersticiosos chineses, maoístas ou não, nas cidades e nos campos temem cada passo que pode ser em falso. A vida de cada pessoa ou do seu grupo, aldeia ou cidade sofreu uma transformação que se acelera. A juventude, em contacto com as novas tecnologias, drogas, máfias, jogos, música, estilos de vida ocidentais, deverá mudar a sua mentalidade. O consumismo dos próprios chineses não deixa de ser mais uma forma económica com inimagináveis consequências sociais. A preocupação dos políticos com a educação das crianças aumentou e isso deve relacionar-se com a propaganda e nacionalismo que contrabalance com ventos do Ocidente e a globalização.
O famoso livro de Gordon Chang falhou ao prever o “colapso chinês” para 2006, mas o economista insiste em afirmar que as crises não estão debeladas e que o tempo se esgota rapidamente para a adaptação ao exterior. A longevidade do partido único que governa desde 1949 demonstra uma força que engana quem observa do exterior. Exemplo disso foi a repressão tão eficaz e rápida ao esboço de uma insegura réplica da Revolução do Jasmim. Os guardas foram mais velozes do que os pretensos manifestantes.
No xadrez político, por agora, o Império do Meio faz jus ao seu nome com uma força económica que abala e desequilibra a ordem mundial.
Sem poder voltar para trás e com um hipotético abrandamento económico, crescimento de problemas internos, inevitável mudança de mentalidades, com maior contacto com o Ocidente, será que o gigante se reequilibra, ou revela ter pés de barro?
A interrogação para o novo milénio é: fora do capitalismo, só há mesmo capitalismo?
[ii] Audrey, Francis, A China, 25 anos 25 séculos, Editora, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1976.
[iii] Gang, Jung, Halliday, John, MAO, A história desconhecida, Bertrand Editora, Lisboa, 2ª Edição, 2006
[iv] Idem, p. 561.
[v] Idem, pp.467-477.
[vi] Pinto do Couto, Célia, Rosas, Maria Antónia, Tempo da História, 3ª Parte. Porto Editora, 2009. Pp 52-55.
[vii] Retratos da China, 2005, São Paulo, http://www1.folha.uol.com.br/folha/colunas/retratosdachina/ult2830u5.shtml
[viii] Martin, Hans-Peter, Schumann, Harald, A Armadilha da Globalização – O Assalto à Democracia e ao Bem-estar Social, Edição Terramar, Actualidades, nº. 9, Lisboa, 3ª edição, 2000, p. 39.
[ix] Martin, Hans-Peter, Schumann, Harald, A Armadilha da Globalização – O Assalto à Democracia e ao Bem-estar Social, Edição Terramar, Actualidades, nº. 9, Lisboa, 3ª edição, 2000, p. 35.
[x] http://www.infopedia.pt/$li-peng
[xi] Hegel, Frederico, George, La raison dans l´Histoire, Plon, Paris, 1965, pp 80-83.
[xii] Gaspar, Carlos, As relações entre a União Europeia e a China, Comunicação apresentada no VI EU -China Fórum CEIBS, Universidade Católica Portuguesa, 12|Novembro|2007.
[xiii] Der Spiegel, 23/1996, p. 158.
[xiv] Carvalho, Catarina, Expresso, in Anuário Expresso, Edição 2005.
[xv] Gaspar, Carlos, Idem.
[xvi] Leitão, Henrique, “O Kenkon Bensetsu e a Recepção da Cosmologia Ocidental no Japão do séc. XVII” Revista Portuguesa de Filosofia, 1998, hº. 54, pp. 285-31
[xvii] Pettis, Michel, China: Um ano do boi de alto risco, Por Jorge Nascimento Rodrigues em 11 Janeiro 2009 http://janelanaweb.com/novidades/china-um-ano-do-boi-de-alto-risco/
[xviii] http://pt.wikipedia.org/wiki/Escola_keynesiana#Cita.C3.A7.C3.B5es_sobre_Keynes
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