" Da Infinita variedade"

  • Lugares da simplicidade

  • ©  Lúcia Costa Melo Simas

 

  

 

 

Véspera do Tempo

[ © Porto, zona do Carmo, 2005. Restos de azulejo numa casa em ruínas ]

[ © Foto digital tratada. Levi Malho ]

 

 


CONTRA- TEMPOS NA PAUTA DO TEMPO

 

I

 

Ao sair de uma nuvem outonal, o Espírito Santo sentiu frio e um arrepio. Espirrou forte e o vento Norte soprou as nuvens e os raios de sol passaram na boleia do vento.

Uma rosa sorriu. Três crianças param de chorar. Uma mulher beijou o marido. A ventania sacudiu um bispo e ele sentiu-se mais leve. Entusiasmou-se e fez uma manhã mais firme de fé.

Os anjinhos, abismados, assistiram e ficaram contagiados. Foi uma azáfama. Uns foram afinar as harpas. Outros mudar as asas um pouco bolorentas. Alguns foram limpar as auréolas. Depois, todos, numa revoada doida, sem plano nem orçamento por causa das linhas escritas sempre tortas do Senhor, vieram por esse mundo fora ver o que se fazia e se podia fazer.

Um anjinho deu para contar ovelhas do rebanho do Senhor e nunca mais parou. Nunca somava certo. Ora a conta subia, ora descia e o anjinho foi correndo buscar uma máquina de somar.

Outro ainda resolveu agarrar numa missão mais difícil ainda. Ia para junto dos moribundos, tocaria lira e harpa e eles entrariam alegremente no Reino. Mas era tal o clamor, os moribundos gritavam que não queriam morrer, a família chorava ainda mais e, ao anjinho, ninguém ouvia!

Um anjo, mais activo ainda, resolveu convencer alguns jovens a prepararem o caminho do Senhor. E eles fizeram tais coisas que o anjinho desolado, desatou num pranto desgraçado.

Estavam assim os anjos, todos confusos e tristes, quando a Voz do Espírito lhes chegou aos ouvidos: - Voltem! Há reunião…

Foi uma revoada tão doce que fez uma brisa diferente e estranha e um músico correu logo a escrever uma melodia, um poeta inspirou-se repentinamente e um velhote do asilo achou a vida menos má e desatou a filosofar.

O Espírito brilhava suavemente com um anjinho ao colo e todos ficaram acomodados à sua volta em cima de uma nuvem enorme e alva. Mas reclamavam:

- Os homens não nos querem! Nem pensam em nós!

- Falam demais! São muito atrevidos e não sabem nada…

- Estão sempre a mudar de opinião. Ora choram, ora riem pelas mesmas coisas…

- Estão todos em crise! Disse por fim um anjinho progressista e ladino.

A Voz da Luz falou forte e cheia de sabedoria:

-Aqui há a eternidade… Eles lá só têm o tempo. Eu dei-lhe muito mas tudo limitado.

Os anjinhos ficaram tão assombrados, tão desnorteados com a revelação que arrepiaram as penas das asas e um murmúrio de dor abalou os céus. Chuvas sem tino caíram nos campos e raios e trovões, por algumas bandas, assustaram os meteorologistas desprevenidos.

São Pedro, que passava tilintando as chaves do Reino, escondeu um sorriso que deslizou cá para baixo num lindo arco-íris.

O Senhor de todos os Cosmos continuou:

- Claro que Eu os amo a todos e estou atento, mas é num puro contratempo. Eles têm de descobrir por si. Eles devem vir ao nosso encontro. Eu assim os quis. Livres. Assim os espero.

O Senhor calou-se numa paz de flor apocalíptica.

- Eles têm um livro - murmurou tossindo São Pedro que interrompeu hesitante a pauta onde o Tempo pintava Eternidades originais.

- Queres ler a Bíblia aos anjinhos?

O Senhor riu bondosamente e nem referiu à assembleia aquele fraquinho de São Pedro catequista que nem no céu deixava de ser mais Papa que papista.

São Pedro sentou-se aos pés do Senhor confiadamente e confiadamente começou a ler:

 

Há tempo para nascer, e tempo para morrer;

Tempo para plantar e tempo para arrancar o que se plantou;

Tempo para matar e tempo para se dar a vida.

Tempo para destruir e tempo para edificar.

Tempo para chorar e tempo para rir.

Tempo para adquirir e tempo para perder.

Tempo para guardar e tempo para deitar fora.

Tempo para calar e tempo para falar.

Tempo para amar e tempo para odiar

Tempo para a guerra e tempo para a paz…

 

- e tudo ao mesmo tempo se faz – sentenciou o Senhor do Tempo e da Eternidade.

Não tenho a certeza nem iria jurar, mas a noite desceu sobre o mundo mais suavemente. A Lua brilho mais intensa e as estrelas brilharam furiosamente por toda a parte. Pelo menos eu fui espreitar e assim me pareceu:::

 

 


 

 II

 

BICHOS

 

Gosto de burros! De todos os burros e burrinhos, seja qual for o género e feitio. Admiro-os! Gosto daqueles burros de pelo lustroso, quase veludo, de quatro patas e de lindos olhos castanhos, pestanudos, capazes de inspirar poetas e velhos cantores:

«Teus olhos castanhos/ de encantos tamanhos/ são pecados meus/ São lindos, são sonhos ….»

Mas também gosto daqueles outros burros que, perdida a albarda, já usam modernos carrinhos para passear pelas auto-estradas ou veredas tranquilas dos hiper mercados. São pobres infelizes que perderam as suas aldeias, os seus campos verdes, o gosto de zurrar de alegria por ver o dono, um amigo! Gosto de burros desde criança. É claro que na escola aprendi a gostar mais deles! É que na escola é que se começa verdadeiramente a ser burro… e havia tanta história de burro para ler nos livrinhos da escola! Recordo ainda aquela menina que dizia no fim da história:

- Gosto mais da gatinha, mas não diga nada à boneca!

E por que é que ela não falava do burro? Agora leio por outras cartilhas, mas os burros continuam a ser os meus irmãozinhos queridos. Quanto menos parecem haver, mais aparecem eles e nem diferem muito daqueles da minha infância.

Também já tive um burro. Um burro verdadeiro! Criado com mimo e em liberdade assim cresceu, aprendeu a correr pelo campo, dançava ao som da banda de música em dias de festa. Era um portento! Amigável, inteligente, um prodígio de discernimento até quanto à lucidez com que distinguia amigos de inimigos. A sua sorte foi mesmo de burro. Morreu pela liberdade. Sem metáfora. Teve de ser abatido pois ele preferia a morte em liberdade do que usar albarda e servir de meio de transporte. Livre nasceu e assim livre morreu. Era burro!

Para ele vai, direitinha como uma luva, aquela frase célebre à entrada da cidade de Ponta Delgada: «Antes morrer livres do que em paz sujeitos».

Agora, quando passo pelo tal monumento, fico triste a lembrar-me do meu burro.

O único. Por ironia da sorte ou azar seu, teve em vida o nome de Pinóquio, mas quem o conheceu e com ele privou, entenderia que tal nome não se lhe ajustava…

O boneco Pinóquio, quando se transformava em burro, mostrava uma saudável rebeldia por fugir das gaiolas douradas das escolas onde se enclausuram todos os meninos bem comportados!

Os burros são de todos os tempos! Até na Bíblia, no Antigo Testamento, surge uma burra extraordinária! Um profeta ou adivinho Balazão foi enviado pelo rei, inimigo dos judeus, para os amaldiçoar. A meio do caminho a burra parou. E mesmo fustigada, não se moveu e por fim ajoelhou e falou! Era uma burra sábia que aconselhou o profeta a desistir da missão. E ele assim o fez pois uma burra a falar era um prodígio maior. Desde então, quando um inimigo queria falar para destruir um adversário era costume dizer-se:

- Ora, também a burra de Balazão falou!

Então agora quantas ocasiões há em que se podia dizer isto. O pior é que da Bíblia já pouco se lê e menos se sabe citar…

A maior parte das vezes que choro é pelos burros! Sempre fui assim. A Condessa de Ségur, cujas edições sucessivas e internacionais das suas obras podia fazer enlouquecer de inveja os mais conhecidos – não me atrevo a escrever mais lidos - dos nossos escritores todos juntos, escreveu a obra sobre burros para criança, mais sádica e doce que conheço. Ultrapassa em muito o famoso Hans Cristian Andersen. Não fosse ela a filha do general russo, conde Teodoro Rospopchine, que ordenou lançar fogo a Moscovo perante o impetuoso Napoleão e não tivesse ela sido educada com tal rigor e êxito que, aos 4 anos, faria o desespero dos pedagogos portugueses que conseguem a bela façanha de impedir que uma criancinha de 12 anos consiga saber ler correctamente… A pequena Sofia já sabia várias línguas, montava a cavalo ao mesmo tempo que se preparava para ser a avó mais conhecida do mundo ocidental. Tudo por causa dos burros.

Quem não conheceu, na distante infância, o livro "Memórias de um burro"? O famoso Cadichon é a síntese mais bela e adequada para inspiração de todos os que queiram escrever ou já tenham escrito das suas memórias. Nunca se ultrapassará tal obra!

Em criança, como milhares de outras criancinhas por esse mundo além, chorava desoladíssima, cada vez que o infeliz – mas inteligente! – burro sofria as maiores injustiças e maus tratos. Comovia-me desavergonhadamente com a inveja, a maldade, a malícia e a crueldade daqueles horríveis personagens que tanto atormentavam o pobre Cadichon. Hoje, embora continue a amar os burros, perdi, infelizmente para mim e para os burros todos, a capacidade de continuar a chorar por tanta maldade, crueldade, tormentos que sofrem tantos burros e burrinhos, bem como por tanta burrice a que assisto ou me fazem engolir.

Li em revista competente que os burros não fazem parelha. Porque são demasiado teimosos e vão cada qual para o seu lado. O pior é poderem ir, seja para onde, em fila indiana, que nesse caso é fila de burros sem mais adjectivo que valha.

«Albarde-se o burro à vontade do dono».

O pobre do burro, que até pode ser um bom «burro de carga» tem o trabalho todo, mas a vontade, que está longe de ser a boa vontade kantiana, leva mais à adoração do Bezerro de Ouro, do que aos bons caminhos e veredas a que, por norma, os bons burrinhos gostam de percorrer, sossegados e pacíficos com algum alegre zurro à mistura que nada tem a ver com discursos de asnos já muito adulterados pela grande civilização. A arte ser burro é grande e há quem leve a vida toda a treinar sem conseguir, o que pode fundamentar-se no facto de que seja um caso genético, tal como o "gene egoísta" que Wilson descobriu. Todavia há ainda a enorme tarefa da classificação das várias espécies de burros, desde o «príncipe de orelhas de burro» ao pobre coitado que nem palha tem! Talvez empregando uma classificação didáctico pedagogia da especialidade se consiga organizar ficheiros e catalogá-los com informatização e tudo…

Mas não há dúvida que os «burrinhos de carga» são os mais vulgares. Até são simpáticos, trabalhadores, gostam do seu serviço, cumprem deveres, acreditam na lei e no próximo, aprendem as regras todas, os asnos!, e acabam por fazer o trabalho todo, deles e de todos os outros e, em troca, recebem aquele elogio póstumo na tampa do caixão:

- Foi sempre um burro de trabalho!...

Há burros vaidosos, elegantes, de pelo fofo e de bom trato, pés de cascos sempre brilhantes, vistosos, de cocheira farta e barriga sempre exigente e delicada. Para esse vai o panegírico:

- Era burro, mas sabia viver!...

Há os burros das escolas, os mais difíceis de classificação. Divididos em secções, por mil e um artifícios dificílimos de perceber. Teimosos ou dóceis, são os mais felizes. Os burros felizes não crescem, multiplicam-se! Aprendem depressa e têm mais sorte que cavalo de batalha. Há os que vão para a escola por volta dos 4 ou 5 anos, há os que conseguem entrar ainda mais cedo e nunca mais querem sair de lá. Ficam-se pela escola até morrer. Só não morrerem dentro da escola porque não é permitido. Nunca se transformam em águia, urso, camelo ou leão para desgosto de Nietzsche. O Super burro, quando sai, passa orgulhoso no meio da multidão escrava. Depois do treino de dizer, sim, sim, não, não, guardam zelosamente na sua burra – o velho cofre de preciosidades - carregada de tesouros de contas caladas, ou põem de lado a render na Suíça, se são mais avançados.

Esses burros são perigosos!

Não são de fiar. Na política nem sempre são apanhados, nas escolas põem-nos na rua, com boas notas e empregados. Zurram desalmadamente e ninguém gosta muito deles apesar de lhes dar pancadinhas no lombo.

Muitos filósofos gostam de burros. O escolástico, João Buridan era um deles. Foi reitor da Universidade de Paris e morreu em 1358. Pôs em causa a imobilidade terrestre mas não a inteligência dos burros como falsamente se diz. O bom filósofo deve ter falado em burros e daí a anedota de que, experimentando pôr um burro cheio de fome e sede, à mesma distância de um monte de palha e de uma celha de água, o burro tinha um conflito psicológico, começava a pensar e morria de fome e sede. Buridan acreditava na liberdade e dizia que conhecer o bem e escolher o mal é irracional. Ora disso não se queixam os burros verdadeiros que não são nada burros mas bem inteligentes! Apenas dos que querem filosofar, como eu, se pode dizer: «a pensar morreu um burro»!

Mas isto era na Idade Média. Tempos em que os burros tinham de ser estimados e, face aos cavalos, representavam a paz como a sensatez de Sancho Pança diante da loucura de D. Quixote e o seu Rocinante. Ver moinhos em vez de gigantes é um heroísmo da sabedoria amarga da terra onde os sonhos não crescem.

Hegel, que muito admirou Napoleão, dizia, ao saber que ele entrar a cavalo na sua cidade de Iena: - «Contemplai a alma do mundo a cavalo!». Não ficaria tão extasiado e a frase perderia o belo efeito se fosse uma entrada de burro!

Confesso que aquela alma do mundo, mesmo a cavalo, não me fascina. Correu demasiado sangue por causa disso para admirar coisíssima nenhuma além dos burros. Mesmo que eu leia e admire os calhamaços de Hegel e os ponha de pernas para o ar, nada napoleónico me convence, nem é para levar a sério.

De jumentinho entrou em Jerusalém Jesus Cristo e nem toda a mansidão do mestre e a sua lição deu bom fruto em Judas. Porém falta ainda alguma obra peregrina sobre "As memórias de Judas" para que se demonstre o "gene da inveja" e o Evangelho de Judas será mais um prémio e um maravilhoso contributo para as vozes de burro que não chegam ao céu.

Antigamente, um pouco por despeito, dizia-se «Um burro carregado de livros é um doutor». A sabedoria da frase, com toda a fotocópia e consultas avulsas, mais todo o saber livresco e a luta contra o analfabetismo, com o apregoado insucesso escolar deu a volta à frase e ficar bem melhor assim: Um doutor carregado de livros é um burro! É o resultado de uma síntese hegeliana onde todo o paradoxo se torna racionalmente explicável.

Tudo isto é burro, tudo isto existe, tudo isto é português, mais precisamente açoriano e ainda mais micaelense. Dizia o Professor Vitorino Nemésio, em meia dúzia de linhas, um resumo do povo de S. Miguel, com o bom camponês a falar com o burro e, mesmo sem bater, só a ameaçar com a vergasta: - «Vai, alminha de Deus!». Com um só burro e um só golpe de mestre se caracteriza um povo, uma cultura, uma ilha! Basta passar um burro!

Shakespeare, ao menos, era mais exigente ao pôr o rei a berrar: - O meu Reino por um cavalo!

Nem no meio da aflição se contentava com um burrinho!

Por mim contento-me com a sorte. Ando a pé e… já está – Burro velho não aprende….

 


III

 

GENTES

 

Devagar, retiro da moldura verde a casa. Ainda a revejo e há tanto tempo já…

São tão complexas as almas simples! E eu conheci almas simples. Tão profundas como inesquecíveis. Tão fortes como esse silêncio em que se tece a amizade…

Como era maravilhosa para mim aquela casa! Corria para lá, logo que podia, depois da escola, a qualquer hora, sabia que me iam acolher… Ali não havia tempo. As conversas longas eram sempre descobertas de coisas novas. Esqueci de que se falava, de tanto que se dizia, só resta o tempo parado da presença.

Misturo a casa, o verde, os muros coberto de musgo com a sua dona como se fossem uma unidade, um rochedo bom para ancorar a vida.

A dona daquela casa, de quem não recordo uma só palavra, foi a minha amizade infantil perfeita enquanto acreditar que a perfeição existe! Estranha amizade, estranha infância, apercebo-me daqui… Tudo era como se a idade não existisse e a Dona Cândida e eu fossemos duas velhas amigas com um passado tão longo que permitia todo o silêncio.

Que magia havia ali para tornar tudo tão belo, tão maravilhosamente belo?

Primeiro, o portão. Quase sempre aberto, a dar para um pátio de "joga" pedrinhas miúdas em desenhos indecifráveis e o encanto de um jardim cheio de mistérios.

Sempre tive um fascínio para jardins. Não todos! Há jardins misteriosos, velhos jardins difíceis, jardins mágicos. Como o amor. Este era um deles. Creio bem que o jardineiro ali era o marido da Dona Cândida. De quem recordo a vaga figura, o chapéu preto, tudo envolto em bondoso silêncio e sorrisos acolhedores. Ele era, o que hoje se diz e no tempo tinha outra pompa, um "proprietário". Os meus olhos infantis nunca se cansavam quando me mostrava os buxeiros cortados a preceito, a linda hera a revestir os muros, as flores, os canteiros onde as orquídeas mais raras eram comuns. Tudo se perdia em recantos fantásticos, descobertas de novos encantamentos, em que as sombras misteriosas das latadas de vinha e de maracujá davam tons graves e de mistério.

Depois eu subia a escada de pedra lavrada. Carcomida, de musgos velhos muito verdes a dar para o balcão. Ah! A latada! Que nem por pouco eu comparava com as altas papaias e pêra abacate ali mesmo ao lado.

Aí, nesse balcão, com banquetas de pedra, para mim bem melhores do que soberbas almofadas, eu passava horas. Ali eu tinha raiz. Ali nunca me sentia a mais, nunca me mandavam embora. Dona Cândida nunca tinha pressas nem tarefas para acabar. Estava tudo feito, como num palco mágico de uma peça de teatro.

Dona Cândida tinha um filho. Um filho enorme, um gigante de mãos enormes capazes de estrangular qualquer um. Nunca me meteu medo. Bom, quieto, calado, sorria-me sempre. Era uma criança grande. Eu sabia que ele não era como as outras pessoas crescidas. Mas, que me importava? Ele era bom, doce, como sua mãe.

Ela, agora, na distância, reconheço que era uma mulher muito, muito amada. Por isso todo aquele entendimento secreto da casa. Por isso o silêncio do marido.

Quanta alegria, por razões que não percebia, chegava a casa o outro filho! Aquele de quem, solenemente, se dizia: - Está-a-estudar-para-professor!.

Esse, sim, era travesso! Em manobras de me arrepiar, ia às agulhas de bordar da mãe e enfiava-as na palma da mão. O danado nunca se feria e ria-se, ria-se como um perdido do meu susto. Depois desaparecia. Eu ouvia dizer que ele tinha que estudar muito. Generosamente nunca me achou a mais na casa, junto da mãe. E, se conversávamos, tudo girava à volta de Dona Cândida.

Era o seu sorriso o calor, a luz que me atraia ali. Seria ela bonita? Que idade teria? Coisas que nunca soube. Falávamos como se soubéssemos todos os segredos do Universo. E, coisa curiosa, quantas lições eu guardo do seu silêncio.

Lanchávamos fruta, doce, coisas simples. O meu maior prazer eram as bolachas Maria com compota, comidas devagar, solenemente na sala enorme, fresca e limpa, de persianas verdes (hoje reconheço como tudo era pobre e com uma dignidade enorme) com as cadeiras, mesa e sofá tudo de vimes, como era uso em terras de S. Vicente, e tudo simples e bom.

Ali se dissertava sobre as minhas inquietações religiosas, os meus medos do Cristo morto, envolto em véus transparentes, as minhas explicações terríveis da Eucaristia. Ali, resolvia as minhas contas da escola e os meus problemas de consciência. Diante dos olhos de Dona Cândida, sempre pronta, de braços abertos para me acolher.

Ao olhar a casa, mesmo de longe, esperava vê-la na sombra do seu balcão. Depois era só correr para lá! Devia ser uma senhora tímida e triste. Mas não para mim nem para o marido. Passeavam os dois até vir o luar dar as suas rondas pela vila. Passeavam muito, ora para a ribeira, ora para o campo para ver as suas terras. Como minha mãe dizia:

- Sempre julguei que eles eram dois namorados!

E ela ria-se silenciosamente disso. Pouco me interessava. A amizade da Dona Cândida tinha o feitiço das descobertas de «ser-grande-e-importante». O afecto daquela casa dava para iluminar tudo e todos. E eu tive esse privilégio!

Dona Cândida, graças, meu Deus, entendeu o quanto eu gostava dela, o quanto me deu em bondade e carinho a uma criança assustada, sem raiz e pouca infância.

Ela ouvia-me. Com as mãos cruzadas no colo, o cabelo enrolado e liso, o rosto vago de traços que já nem sei, mas ainda estão a irradiar luz…

Que importa, Dona Cândida? A senhora foi a amizade mais linda que uma criança pode ter. Um conto de fadas vivo, um paraíso, talvez artificial, criado para mim que, por direito da amizade, guardo no coração.

Dávamos passeios. Ela, o marido e eu. Apanhávamos agrião molhado e fresco na ribeira, ouvíamos as rãs, o murmúrio das águas, mirávamos os campos do "proprietário".

Como eu gostava daquela ribeira de águas profundas, límpidas, larga como um rio, onde regresso tanta vez às margens, cada vez mais desbotadas e onde descobri a filosofia da simplicidade e das vozes das rãs!

E eu aprendia que há adultos felizes. Acreditei na felicidade por causa deles, da senhora que entendia as crianças grandes e pequenas, que sabia amar a vida, os seres infelizes, sem ser pelos livros, e trazia tanta pureza em seu coração!

Depois… aperta-se-me ainda o peito. Veio a partida. A despedida. Dias e dias amargos e lentos com os preparativos. Ramos e raízes de novo cortados como a minha infância. Ainda corria para lá, para o portão aberto, para o sossego das conversas. Mas com um gostinho a amargar na garganta.

Sozinha, sentada no meu próprio balcão, eu reflectia. Não podia permanecer, não podia prometer voltar, nada me era permitido prometer. Mas ainda tinha um último recurso, eu. E então fiz o mais solene juramento de fidelidade. Aquela que eu era, ali, seria fiel a si mesma, contra toda a mudança que saberia que me aconteceria, contra toda a lógica que pressentia trair, não me trairia nunca, aquela criança estaria sempre comigo. A única fidelidade que podia prometer, por muito frágil que fosse, firmemente, eu jurei!

Chegou a manhã da partida! A rua cheia de movimento. Com silêncio incómodo. Com ordem e roupa de gente com sabor a morte. Gente sofrida, oprimida de séculos que aprendêramos a amar. O único automóvel da terra à espera. Era agora!

Minha mãe mandou:

-Tens de te despedir da Dona Cândida!

Como um soldadinho de chumbo, hirto e frio, eu tinha de obedecer. Era ordem para cumprir.

Se, ao menos, eu não me despedisse! Se, ao menos isso, me fosse poupado! Se não tivesse de dizer adeus, se pudesse guardar um fingimento de esperança!

Mas não! O som da voz de minha mãe ainda ecoa dobrando a finados.

Subi, pela última vez, a escada de pedra e musgo verde. Entrei na sala da mobília de vime como se fora um palco. Ainda os vejo. Sentados. Os três no sofá, e só os olhas falavam. Ela ao meio, de um lado o filho, o bom gigante e do outro o marido. Estáticos. Terrivelmente estáticos e mudos. Eu, com toda a dignidade dos meus oito anos, estendi-lhes a mão num solene cumprimento. Sem um som sequer abracei a grande amiga e sai correndo. Sem uma lágrima. Eu sabia que ela merecia aquela coragem. Eu sabia tanto…

Nunca mais a vi nem à casa da moldura verde. E vejo-a afinal, tanta vez, naquela sala enorme, à minha espera numa despedida que nunca acabou…

Já morreu a Dona Cândida. Doce e sempre bondosa embora sofresse tremendamente no fim. Para mim não morreu, nem saiu da sala. A casa existe como antes, oculta pela verdura.

Ressuscita tudo cheio de luz e ternura cristalina quando cintila no bater do meu coração. Há fios invisíveis, mais fortes que a distância e a morte. Há fios…

Guardo um, precioso, que gosto de segurar nas noites escuras. Do outro lado, ela, a senhora que me ensinou o que era a amizade, segura a ponta.

Um dia eu voltarei, Dona Cândida! Verei a nossa ribeira, as veredas, a casa da moldura verde! Um dia, quando o tempo não existir eu voltarei! A senhora sabe disso.

Soube sempre! Eu jurei!

 

 

 


IV

 

GENTES

Ela chegava à sala, simples, discreta, elegante. Mas consigo trazia névoas e cinzas de desencanto para o dia inteiro. Escurecendo o tempo todo. Uma nuvem sombria passava a pairar sobre as nossas cabeças todas ali à roda. Era a MÃE!

A tautologia redonda e gorda de guardadora do menino, do filho único, do aluno, do colega. Todos os papéis que ele representava apareciam ali e entravam em grupo pelos portões da escola. Vinha de carro, era óbvio, para não se cansar, para não se constipar.

Trazia-me todo o cansaço de uma outra margem da vida que me faz doer o peito, afoga-me a garganta numa agonia que não queria conhecer, que não queria saber. Não é este até o meu modo de ser… Mas trazia-me toda a reclamação por ser gente e ignorar isso, por não saber viver, de não saber que refeições quentes e a horas, em ritos quadrados, tal como o sono do menino, do filho, se misturava com as constipações super valorizadas em gripes e quase fatais, que tudo isso em mim, se multiplicavam às centenas e se diluem em dias de paciência, sorrisos e gestos de boa vontade.

A experiência terrível de sorrir para quem não quer aprender a espreitar horizontes frescos, nunca viu sofrer com aquela compaixão que nos torna irmãos de desconhecidos, nunca teve a porta aberta para a aceitação dos diferentes, de tantos outros, tantos outros… A experiência terrível de silenciar-me perante a surdez maternal de alguém que ainda e sempre será menina e não pode crescer… Terrível afirmação de limites e fronteiras impossíveis!

Era-me impossível entrar no seu mundo porque não abria a porta. Como falar-lhe da dor, da bondade, da lenta aprendizagem de estar num novo mundo onde o risco, a aventura de viver têm de ser anunciados como auroras e os limites são feitos para ultrapassar?

No fio da voz, monocórdio, mas de quem se sente convicta de suas reclamações lá se ia desenrolando o dia meticulosamente programado do menino. A criancinha, adolescente já na fria realidade dos factos, teria um horário pesado, maleitas sem fim, uma carga de disciplinas exagerada, as horas de sono contadas, as distâncias – em boa verdade, podia muito bem ir a pé até casa – as cinzas das rotinas dos velhos a cair numa mocidade perigosamente murcha que teimava em quase florir.

Fernando Luís, resistindo aos assaltos maternais, até era forte, alto e saudável. O retrato do "menino de sua mãe" não se enquadrava na sua figura real. Fechando-se em mutismo feroz, reservado, sombrio, mostrava uma falsa timidez que os olhos desmentiam na crítica atenta à menor falha.

Ela continuava a sua litania infindável como a hora lenta de passar. Sem tréguas. Mãe de Fernando Luís valia por uma turma inteira e trinta mães desocupadas. Quando ela partia, apesar da solidariedade dos colegas que conheciam a MÃE, eu sentia-me roubada, sem paz, sem resignação, mas ânsias tremendas de sacudir marasmos, de inventar mães frescas, de olhos abertos, mães libertas, prontas a enfrentar futuros, sem medos, sem fantasmas, preparadas para dar seus frutos lavados.

Mimado Fernando Luís, que carácter podia resistir a tais assaltos? Os teus olhinhos críticos e tristes espreitavam o mundo lá de dentro do teu castelo de mil grades cor-de-rosa. Jamais trocaste uma palavra comigo, sem a lama da desconfiança, do orgulho de quem aprendeu que ser professor é ser pago, assalariado para tudo o que não era dado, mas comprado. Ser pago: - era como me amarravas todas as palavras, as franquezas, a vida, a amizade que jamais podia plantar…

Vejo-te, por vezes, Fernando Luís, na rua, onde nunca me dizes adeus, onde te sentes mal, flor de estufa, mirrada pelo sol da vida que, desalentado e velho, enfrentas.

A desajeitada e gorda Germana pertencia à mesma turma. E a história reside aí, toda, nesse único pormenor.

Em vez de observar-me à distância, protegida pelos meninos, amiguinhos de Fernando Luís, ela escolhera sentar-se bem à frente. Depois descobri que tinha medo de chegar atrasada. Com as suas mãos papudas e roxas de frio escrevia num caderno interminável de vida, de obstáculo vencidos.

Em elegância e pretensões, Germana ficaria lá, no último lugar de trás da turma. Em pleno Inverno, eu, que observava de outra margem, em silêncio, temi alguma doença. Porque Germana resistia a frios e chuvadas com as pernas roxas, o vestidinho impróprio, o casaco ausente. A roupa que vestia já vira tempos felizes do outro lado do Atlântico, made in U.S.A. , mas, de certo , não habitara um corpo tão vivo, um sangue novo, forte e decidido.

Que ninguém se atrevia a bulir com Germana! Calma, segura de si, cara lavada, por vezes era o único sinal de juventude, de vida quente, em turma tão velha e burguesa. Tudo gente de boas famílias, mas morna, envelhecida nas esquinas e confortos de bem-estar imenso e hipócrita. Uma paz de cinzas e certezas compradas a preço de ouro para pássaros sem asas, prontos para entrar em outras gaiolas douradas e nunca a olhar de frente, num ímpeto de coragem a Vida, a Beleza, todo o risco de viver…

Um dia, dei boleia a Germana. Acaso feliz de muitas boleias! E não se falou de Freud, nem de Galileu, nem de queixas, nem de lástimas. Era tão bom andar de automóvel! E tinha rádio. Ela, Germana, tinha muitos irmãos. Vinha de tão longe! Todos os dias, acordava antes das seis da manhã! E depois era mais de uma hora de camioneta! Era bom! Via-se o mar. E Germana gostava tanto de ver o mar! Depois as aulas. Aprendia coisas tão importantes! Que bom, poder estudar! Comer na cantina, com fartura, comida boa, saborosa. Tinha tantos colegas agradáveis, eram simpáticos. E o horário melhorara tanto pois no ano passado não fora assim. Sim, tinha tempo para ajudar em casa e também fazia os trabalhos para as aulas, estudava ao serão, pois claro! Gostava os professores, é verdade! O meu espanto aumentava mas ela continuava. Havia de tirar um curso «lá fora, sim senhora, que seu pai fazia gosto nisso e trabalhava muito para ela poder estudar e mais seus irmãos.

E tinha boas notas. Em todas as cadeiras! Bem sabia eu disso.

Eu calava-me, sumia-me naquele tempo novo, despertar inteirinho de madrugadas frescas a apagar as rugas de todos os meninos velhos, tão bem, tão estragados como o infelizinho Fernando Luís. Era aquilo possível? Mas a sua presença, ali, com alguma timidez e desassombro, deslumbrava-me, serenava todas as dúvidas e pagava todas as horas até me dava lições de graça. Lições que eu aprendia com ela, o seu sorriso bom, a sua confiança em tudo, na vida, nas gentes, na felicidade à beira da mão e pronta a colher.

Conclusões?

Nunca as sei. A vida tem mistérios e labirintos em que todos procuramos diamantes e estrelas e, por vezes, só encontramos fome, dor e uns instantes sublimes que valem tudo. Germana vai longe, mesmo já sem o feio laçarote na cabeça loura. Vejo-a, às vezes, por acasos, mas nunca a vi esquecer o sorriso na boca, nos olhos, na riqueza que traz consigo. Que tantos nunca entenderão.

Talvez por uma razão que me escapa. Talvez a sabedoria se me esconda e: «muitos são os chamados e poucos os escolhidos».