"Por montes e vales"

  • Ideias turísticas

    ©  Lúcia Costa Melo Simas .( 2010 )

 

 

                         

Sempre em frente

[  Sinalética interna em edifício público. Casa Da Música. Porto 2010 . ]

© Levi Malho - Imagem digital

         


                                                                         

 

                   I -   Radiografias turísticas   

 

   Há sempre um encontro marcado na Praça de São Marcos, na Torre de Londres, no Machu Picchu, com a Gioconda, com Gaudí, um qualquer local ou objecto de culto escolhidos na panóplia do mercado mundial para vender aos turistas. Quem não tem uma foto certidão da sua presença num desses locais?

   Seria um acontecimento profundamente cultural e estético se a explosão de turismo não fosse uma caricatura da grande cultura ou da cultura popular na sua autenticidade e tradição.

   Tal como existe, o turismo é uma “indústria de cultura” que explora a avidez de consumo das massas. Nem resta um ínfimo resíduo da “alma colectiva” ou da perenidade indiscutível de uma obra ou local, antes passa por uma enorme cadeia industrial envolvendo grandes acordos que vão dos construtores, arquitectos e agentes de viagens, empresas de transporte que afinal “concentram em poucos operadores internacionais que têm lucros de milhões e milhões de dólares, graças às infra estruturas de acolhimento e redes de transportes aéreos”, conforme escreve Alain Gresh na obra “Atlas da Globalização (2007).

 

   Se as massas repudiam as obras de génio, pelo seu distanciamento e originalidade, o talento tem muitas possibilidades de ser consumido, tanto mais que se aproxima do que hoje se chama “criatividade” abarcando o grande público e o gosto fácil. Por toda a parte, surgem formas de “criatividade” com tudo o que tem de ambíguo, de comprometido e fabricado para agradar e vender ao público. É tão acessível que se imiscui nesse plano a produção de “oficinas de criatividade” ou um pseudo artesanato, escrita, pintura onde qualquer um pode experimentar modelos estéticos engendrados quase em série.

   Trata-se de objectos vendáveis para a fuga do quotidiano. Mas são as férias ou lazer que melhor concretizam os sonhos das massas e viagens se tornaram num ritual de consumo dos míticos bens culturais.

   Os turistas, por onde quer que estejam, ou por onde quer que passem, distanciam-se sempre, num “estar a mais” de estrangeiro ou intruso que contrasta com o viver da restante população com quem convive, de modo artificial e forçado.

   Por um breve prazo, dá-se oportunidade de examinar o ambiente, o local e o pretenso exotismo e logo tudo se transforma em “souvenir”, vaga recordação, ou simples fotos multiplicadas por milhões que percorrem apressadamente o planeta na ânsia de ver “tudo”.

    O que podia ser um referencial, desdobrável em mil radiosos legados de herança cultural, transforma-se em invasões turbulentas das massas, ávidas por ver, mirar bem, sem deixar escapar nada, de consumir, “gastar” o tempo.

    A fotografia apressada simboliza a sua presença “ali”, no falso longe, no estranho ou sonhado local de culto. Eterniza-se a presença do turista diante de um camelo ou da Torre de Pisa. Quem se interessará por reflectir sobre o simbolismo dessa torre, ligada a seres geniais como Galileu?

     Depois, já de regresso à liturgia do quotidiano, poderão dizer: “Eu estive ali” e o mito e a magia do longe passam a ser algo falsamente possuído e consumido.

 

    Não se pode traçar um perfil do turista modelo. Ao nível mundial, uma em cada dez pessoas da população do globo faz parte dos turistas, “apesar das persistentes desigualdades sociais”, denunciadas por Gresh. Apenas há comportamentos que os atraiçoam na pressa e no desencanto do olhar que busca sempre algo mais além.

  Os viajantes são os únicos que ainda passeiam por locais de culto estético, ou religioso, ou cultural, sem avidez, nem  pressa, nem a programação excursionista bem definida. O paradoxo do olhar do turista está em não poder encontrar o belo naquilo busca e que não pode comprar, quando para ele tudo se devia poder consumir.

    Por isso inevitavelmente tem de surgir o Kitsch e o neo Kitsch que se insinua por toda a parte.   

   As significações do Kitsch, com toda a sua carga de inadequação ao real na sua vertente consumista, não são de grande exactidão para o que se pretende explicitar. Existe latente em muita obra de arte, em muito objecto mas descobre-se mais pelo modo como as pessoas lidam com o ambiente, pois não é só um estilo ou existe apenas numa classe social. Como frisa o sociólogo Abraham Moles trata-se mais da “atitude Kitsch”, uma “maneira de estar” na vida que se manifesta nos objectos, na decoração, na minimização ou gigantismo de certos artigos fabricados para pseudo objectos sem utilidade, numa análise sociológica que reflecte esse tal “estado de espírito”.

    O Kitsch pode proliferar cada vez mais nas lembranças, nos "souvenirs” que estão por todo o lado, quer religioso, artístico ou paisagístico que sempre se vendem. Tudo é comercial, das miniaturas de monumentos de plástico à chávena turca, ou à coifa holandesa, mais uma esferográfica com um procissão dentro e que rola para a frente e para trás, o tabuleiro com uma pintura de Cézanne, ou o xaile indiano do Nepal, que, por acaso, ou não, os chineses vendem na esquina mais próxima.  

 

 

  

                  II - Quem paga o preço?

 

   O consumismo, mais o Kitsch e o turismo em massa juntam-se para transformar a simplicidade e as rotinas da vida de qualquer lugar em mercado turistificado, pronto a ser consumido e tristemente poluído até que se esgote toda a possível beleza.  
   A massificação tem um preço muito alto para a verdadeira cultura e para os locais por onde a turba passa.
   Turistificamos o que de melhor temos e depois protestamos pela perda de qualidade de vida e pelos preços que sobem pois indígenas somos nós!
     A ambiguidade situacional do turismo remete para vários poderes em presença. O lucro que pode trazer a uns poucos, os gastos para outros, a deterioração do ambiente e a subida dos preços juntam-se a uma aculturação das populações em riscos de perda de identidade.
     Os empregos que suscitam trazem dúbias vantagens pela precariedade e sazonalidade de muitos e terríveis males sociais que acarretam. Aí a exploração dos seres humanos é uma das pavorosas epidemias do turismo sem moral que lavra no planeta e nem isenta as inocentes crianças.

    O turismo sexual se bem que não seja recente transforma-se numa violência, que fere a dignidade dos povos pois tem por base desigualdades entre visitantes e indígenas, reproduzindo ideologias de racismo e sexismo, explorando a pobreza e desigualdade social, económica, política, e cultural especialmente dos países sub desenvolvidos mas que não atinge apenas esses pois o Brasil ou a Tailândia, estão a par da Índia ou África.
    Como denuncia Maria Jaqueline de Souza Leite
[i]
este é um estigma que polui um turismo responsável, artístico ou familiar e há redes que actual eficazmente na sombra sem que a lei os puna.
    A campanha contra o turismo sexual tem o seguinte lema: “Consciencialize,  mobilize, impeça a exploração sexual infantil. Quem ama, protege”. Tal sucede há pouco tempo no Brasil. Todavia não há quaisquer dados sobre o assunto nesse país e o mesmo nem chega a ser problema denunciado em Portugal de forma preventiva que seja.
    Por cá, informações dadas por guias acerca da limpeza diária dos prados pelos lavradores, dos ananases pequeninos e verdes serem os melhores, das trocas de datas e nomes, tudo isso junto dá desinformação e anedotas!
    As vaquinhas açorianas, hortênsias, ananases e golfinhos sobem ao palco das chávenas, das camisolas, dos sacos, dos quadros “típicos” com bandeirinhas e aventais de triunfo porque a mensagem está lá a anunciar: “quando estive nos Açores, pensei em ti”! E lá vão mais uns euros!

     Todo o Kitsch, que em português se traduziria por “piroso” ou “ gato por lebre”, caracteriza-se pela inadequação e tentativa de mediatização com toda a mediocridade que o gosto pode atingir.
    Uma imitação de obra de arte feita em série e em miniatura é já uma tentativa de democratizar a cultura. Os pseudo objectos adaptados, deformados, fora do tempo e do seu espaço apenas servem de imitação para uma sociedade de conforto e de excessos contraditórios.
   Chegamos ao extremo do Kitsch não ser mais do que um falso objecto, ou um meio de vulgarizar obras com miniaturas da Torre Eiffel, de Pisa, ou da Estátua da Liberdade, de Buda feitas em série. O objecto perdeu o uso adequado, único ou funcional. Podemos ter como exemplos de Kitsch a “Disneywold” na Florida, a Disneylândia em Paris, ou a arquitectura do impossível de Gaudí em “A Sagrada Família”. O Kitsch é uma excrescência do real, um falso símbolo e também uma pseudo relíquia, que se combina com o que se encontra à venda no local turistificado, e tem lugar privilegiado para assegurar aquele “para sempre” de quem por ali passou.
    As pessoas querem consumir porque têm avidez por uma cultura que jamais entenderão ou possuirão, por ser rara e mesmo única. A grande cultura vem de uma longa convivência com a História, a Arte, com os grandes génios da humanidade, mil pormenores de aprendizagens que não se compadecem com as pressas dos excursionistas.
   Guiados por um perito ou guia, para o maior rendimento e satisfação dos clientes, vêm e vão, escutando uma lengalenga e amálgama de informações, em catadupa, cujo sentido mal podem atingir e, aquilo que entendem, não passa de feitos anedóticos para ridículas recordações.

    As massas têm de se sentir felizes, num bem-estar que passa pelo folclore alimentar, num estilo hoteleiro, mais ou menos padronizado em qualquer lugar. Ilusoriamente, imaginam confraternizar com os indígenas, preparados para os servir. O mito do acesso generalizado ao saber e à cultura revela-se no turismo uma triste caricatura levada muito a sério.
     A ânsia de viajar mostra um mal-estar social e uma ideologia que insiste em dividir o tempo do trabalho e do lazer, considerando o trabalho um fardo, sem realização pessoal e sem ideais. Com as excursões em massa e as máquinas fotográficas em constante funcionamento, pode dizer-se que as pessoas não estão onde se acham. Munidos de telemóvel, a falar para casa e amigos distantes, não estão em lugar algum e as fotografias em série são a realidade tornada ilusão, numa ausência virtual de inadaptados.
   Como escreveu Baudrillard “a sociedade primitiva tinha as suas máscaras, a sociedade burguesa, os seus espelhos, e nós temos as nossas imagens.”
   Se a sociedade hoje é da imagem, a todo o instante e a qualquer pretexto, consumir as fotos é o resultado do desejo sem fim de aparecer, ver, marcar a ilusão da presença.
  O pior é que essas imagens se apossam de nós, fingem a nossa eternidade num tempo petrificado numa ânsia de um pobre infinito que não se compadece com as imitações. A ingenuidade das massas está no modo incompreensível como observa o mundo sem se dar conta disso. Sem tradição cultural, sem referências para tudo o que miram, voltam com um caleidoscópio de representações que em breve esquecem num limbo de sombras. Então, regressam às imagens que fragmentam o mundo e são espelhos de outras. É por isso que Baudrillard acentua a perda das dimensões, peso, relevo, perfume, profundidade e sentido. Repare-se na falsidade de qualquer foto que implicitamente queremos ignorar insistindo na sua realidade. 
   A fascinação da imagem está, bem ao contrário do filme e similares, no fragmento e pormenor que se torna mágico e de uma evidência que de nada precisa para encontrar sentido. A capacidade imaginativa dá uma reconstrução fora do mundo, sem se preocupar com ele.
   Afinal não há realidade que se oponha a ilusões, mas a patética contemplação do tempo parado numa imagem que nos prende e constringe e em que só o vazio fica do nosso lado.

 

      

          III - A viagem  tem outro lado                                    

 

      A “indústria da cultura” para o turismo de massas não é mais do que a indústria do consumo dos lugares e dos objectos que não terão qualquer valor ou utilidade após a passagem das multidões.
  Apenas os ícones mitificados atraem sempre pois são a forma mais rápida de qualquer um imaginar que tem acesso à grande cultura tradicional. O Taj Mahal, que raros se interessam por saber que é um túmulo e a sua estranha história, ou um camelo ao lado de uma pirâmide não traduzem só uma qualquer viagem, é já um status social que pode impressionar. Para Lyotard
há uma simplificação extrema de todas as linguagens incluindo a filosófica ou a estética que têm de ser informações comunicáveis ou deixam de existir e nem podem sobreviver. Isso obriga a uma comunicação informativa que se afasta de qualquer profundidade da grande tradição cultural. Já Walter Benjamin se referia a “perda da áurea” do objecto artístico pois se deu a “destruição do gosto”. Tal facto faz do turismo um poder do capitalismo transformando o mundo em objecto de valor e uso com a mais valia apregoada e vendida aos quatro ventos.

  Para quem ainda não pode ser turista do espaço, já se engendram pedras da Lua. Quanto à Acrópole, foram levadas de lá tantas pedras de recordação que, o seu limitado número a faria desaparecer, de tal modo que se tornou necessário “fabricá-las”. Os guias adestrados, por cursos ou sem eles, lá vão a fornecer uma tradução atraiçoada da memória colectiva num discurso que, por si só, é Kitsch pelo acumular de dados, o exotismo artificial, o lado amargo ou doce, o engrandecimento ou diminuição dos eventos, dos personagens e o anedótico imaginário que sempre se acrescenta.
    Será que se precisa do Kitsch para avaliar a verdadeira beleza? Não se correrá o risco de confundir o mau gosto com arte? Quem chega da Rivièra Francesa e diz solenemente que veio da “ribeira da França”, não devia ficar em casa? Ou quem vai a Versalhes e só se lembra de que os reis e cortesãos tinham piolhos e pulgas não precisava de estudar um pouco mais?
    Porque anseiam tanto as pessoas em ser turistas?
   É fruto de um mal-estar social bem explorado pelo capitalismo, inadaptação, alienação infeliz, pois não se trata de anseio de enriquecimento cultural, político ou outro. É a fuga à rotina, ao já visto e conhecido. É um tempo transformado em consumo de bens, quer sejam férias de praias imaginariamente sempre melhores do que as temos perto, e aquele prazer do olhar e descobrir o oposto, mesmo que seja apenas inventado e turistificado num folclore completamente artificial.
     As jornadas de culto desapareceram e com elas o gosto de encontrar esses sinais que marcam a História e a tornam viva, a autenticidade dos povos, os vestígios de outrora, flores ou pássaros que mostram um brilho que o turista de consumo nem repara. As excursões turísticas servem para experienciar simples prazer gratuito e não para a contemplação e reflexão sobre o ser humano e as suas grandiosas obras. Nessas viagens, a excitação dos jovens ou a fadiga dos mais idosos demonstram que estão “perdidos”, sem Norte, apenas guiados por roteiros, para um tempo de consumo de tudo o que pagaram.
   A presença do turista é sempre uma ausência porque se sabe que está ali “a mais”, no sentido sartriano e porque destrói o equilíbrio do ambiente, é uma mancha na paisagem, um borrão, um buraco negro por onde a beleza dos locais se afunda desoladoramente.
  Turista e turistificado são tristemente ligados pela desolação que deixam ficar para trás numa inevitabilidade trágica.   O verdadeiro viajante, o peregrino, o homem culto ou o aventureiro não se deixam enganar pelos roteiros nem pelos altos preços dos programas de viagens. A sua cultura torna as viagens uma vivência de locais, monumentos ou objectos carregados de simbolismo já antes estudados e bem conhecidos.
    Assim, esses ilustres visitantes, preparados por uma vida de cultura, procuram a casa de Espinosa, de Mozart ou as paisagens londrinas de Dickens, a casa onde teria nascido Shakespeare, ou o Monte Saint-Michel da Normandia medieval, num regresso ao passado pelas recordações de Victor Hugo, fascinado pelo local, ou então, apreciam o pasmoso observatório na ilha de Hven que o Rei Frederico II ofereceu ao dinamarquês Tycho Brahe e onde o famoso astrónomo observou o movimento dos planetas em torno do Sol. Bem perto encontra-se o castelo de Hamlet, príncipe da Dinamarca.

   Com tantas idas a Amesterdão não se ouve falar de Rembrandt e a sua profunda análise da sociedade local, especialmente judaica. Porém, um Medici, tido por mecenas, Duque da Toscana ao ir a essa cidade em 1667, visitou Rembrandt em sua casa.
   Paul Claudel, o famoso dramaturgo e poeta francês, ao passar por São Miguel, quis visitar o humilde e místico poeta, António Moreno, ou seja, o Padre Botelho que paroquiava nas Furnas!
   Mais perto de nós, há toda uma cidade do Porto cheia de recantos que recordam o romântico Camilo, ou as memórias de Júlio Dinis, para não falar dos sítios do nosso Eça, do Alentejo de Florbela ou Manuel da Fonseca ou ainda das viagens de Almeida Garrett.
   Tais viajantes de hoje são os que mais desapercebidos passam pelas terras que admiram e pessoas que veneram. Misturam-se com os habitantes sem ruído, semelhantes a nómadas ou peregrinos da cultura, sem as grandes confusões de massas. Tentam passar discretamente para não alterar a paisagem nem o local que visitam.
   São excepções raras que infelizmente confirmam a regra da era dessa condição humana do pós-moderno.
   Por isso Lyotard insiste no papel dos pensadores empenhados em denunciar e criticar a informação que rouba a qualquer linguagem a “incomensurabilidade” do seu poder metalinguístico. Uma radiografia turística pretende ver na turistificação a ideologia fortemente capitalista em que se fundamenta. Seria bom transformar o mundo através da descoberta do sentido da nossa “casa” em infindos modos de ser habitada e venerada pela Humanidade cuja noção parece estar ainda a nascer.

   

 


 NOTAS:

 

 [i] http://www.chame.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=39&Itemid=9  Chame , Centro Humanitário

de Apoio. 12.08.2010.