"O Sorriso Chinês"

  • Novos Mandarins

    ©  Lúcia Costa Melo Simas .( 2010 )

 

                         

Pedra sobre pedra

[  "Graffiti" com sobreposições (pormenor).  Zona da Rotunda da Boavista. Porto 2010 . ]

© Levi Malho - Imagem digital

         


                                                                         

 

   O pretenso professor chinês Yuing Yamang, numa polémica e suposta  entrevista, retirada há pouco do “Youtube” na Net, por uma qualquer denúncia, assegurava, sorridente e mefistofelicamente confiante, o declínio da Europa pelos excessos de direitos dos seus trabalhadores, pelas possibilidades de greves e do desregramentos de apoios sociais de que as pessoas em geral beneficiam.
    Ao contrário da sua gigantesca China, sem descanso nem direitos para a maioria, sem preocupações ecológicas ou de poluição ou mesmo de assegurar quaisquer direitos humanos, com um desenvolvimento e prosperidade invejáveis, os europeus, para o tal professor, não passariam de crianças tontas e caminham inevitavelmente para o precipício!
   A supremacia chinesa e a superioridade económica eram fortemente afiançadas e em breve os europeus teriam de comprar apenas arroz para se manterem de modo bem precário.
  Se tal entrevista não existiu ou se o professor é uma farsa bem montada, nem por isso, a paródia deixa de aviso para reflectir melhor.
   O simples bom senso interroga-se acerca dessa “máquina” chinesa de fazer dinheiro, de um país neo-capitalista em que a esmagadora maioria da população desconhece os cuidados com a poluição, os serviços de saúde ou um simples computador. A proibição de um casal ter mais de um filho já é uma das estranhíssimas e horríveis restrições à liberdade. Não é fácil saber-se quantas as verdadeiras tensões e disparidades internas que crescem surdamente mas, a toda a velocidade. São cada vez mais visíveis as fortes contradições e desigualdades sociais e também de consumo pois vemos turistas chineses por toda a parte e o seu estatuto social parece contrariar a pobreza colectiva. Mark Leonard na preciosa obra “O Que a China Pensa”, 2008, tenta mostrar o que verificamos. Segundo nos diz não se trata já de aumentar apenas o consumo externo. Isso era arriscado demais e o melhor seria ampliar também o consumo interno. A isso adere a “Nova Esquerda” e os efeitos ver-se-ão em breve!
    Parece-nos que novos problemas curiosíssimos irão surgir desse facto para este imenso e miserável  povo que, pela primeira vez na sua história, vai passar a ser consumista! Se a antiga e proverbial confiança nos outros já está frágil depois do desastre da famosa Revolução Cultural, agora como reagirão os milhões de novos consumidores, ávidos de benefícios? O demónio do “ter” esfrega as mãos de contente com a coorte de vícios e maus hábitos para adquirir bens e entrar na competição das compras!

   A China é uma amálgama do que parcialmente abordou o pseudo venerável professor Yuing Yamang.  O povo, com “a boa saúde moral” de que falava o historiador Francis Audrey, em “China, 25 anos, 25 séculos”, já depois de Mao, não realizou as previsões optimistas acerca de formação de novas elites “homogéneas” que acabassem com a recordação infeliz dos processos, perseguições e repetidas confissões forçadas que marcaram os guardas vermelhos.
   Os intelectuais tornaram-se numa classe confusa pois, para o ser, dada a dificuldade da sua escrita, basta saber ler e as Universidades dependem do “pensamento único” vindo do Sistema que se impõe que se estende a toda a educação.
 A pedagogia levada a toda a faixa etária foi um dos meios de manter o pensamento subjugado pela ideologia opressora.
   Apesar disso, muitos chineses  têm  vindo a mostrar maior deslumbramento pelas delícias do Ocidente do que a força do nacionalismo em que o venerável economista confia na sua entrevista.
  Embora 70% do povo viva da agricultura há evidentes sinais de riqueza bem contraditórios.    A interpretação de Audrey acerca dos factos históricos não se acerca do lado humano nem do sofrimento que tinge de negro muito do optimismo da sua visão.
   Bem mais sensível e tocante, é o relato que nos deu no exílio, Jung Chang, professora chinesa em Inglaterra desde 1978, no seu livro biográfico, “Os Cisnes Selvagens -Três filhas da China ”.

     Apesar de incidir no lado feminino, pois nos relata a vida de três mulheres ao longo do pesadelo da feroz transição social, a avó, sua mãe e depois a sua própria experiência, encontramos uma sociedade em convulsões, desnorteada pelas mudanças constantes da linha do Partido das suas intrigas e linhas contraditórias.
    Desde a avó, a bela concubina de um Senhor da Guerra, depois a mãe, comunista militante que lentamente vê a terrível desilusão do marido que, por fim, enlouquecido por tantos processos e confissões, chega por fim à sua vivência de criança e jovem arrastada no torvelinho da História em campanhas quase de tortura. É uma trágica galeria de seres humanos que vê ruir um passado multissecular, agrário e depositário de tradições milenares, sem ganhar segurança no futuro mas sim medo e desconfiança, que Audrey não se apercebeu, interessado como estava em demonstrar o grande paradoxo entre a lentidão de um passado repetitivo e um presente que em 25 anos mudou radicalmente o país e o viver do povo.
   Esta é uma travessia por entre a dor e a alegria, a extrema pobreza e imensa riqueza que nos aproxima de um povo cujo carácter foi minado por sucessivas desilusões, suspeitas e invejas e pela corrupção ao lado de constante apreensão da incerteza do amanhã.
   Com um insondável  sorriso, o venerável chinês, em suas vestes estranhamente tradicionais,  descreve a macro economia e é esfíngico. Envergando ainda os trajes orientais, muito sóbrio e seguro de si, esquece que o Dragão Amarelo desperta e se ocidentaliza rapidamente. Os problemas que podem afectar a economia europeia, abalarão mais depressa do que se possa pensar a sociedade chinesa que não pode travar a mudança interior e muito menos ainda os efeitos da globalização.
   O sorriso chinês pode ser amarelo se não continuar a ser útil ao Ocidente e aos países em que se instala. Em vez do conformismo e luta por escassos bens, os chineses, a falar inglês como cada vez mais acontece, e a braços com o progresso e a cultura Ocidental, não tardarão a acordar. Um pequeno exemplo é o automóvel Volkswagen, o famoso carro do povo de Hitler, que atingiu 46 % de aumento num só semestre, ou seja, 950 mil unidades o que já dá que pensar na passagem da bicicleta para o automóvel.
   Enquanto a China for perversamente útil ao Ocidente os paradoxos talvez se mantenham. Mas a ocidentalização da China não se dará como em outros países pelo contacto com o exterior. Em vez de receberem de fora a influência do progresso, da liberdade e da livre expressão, o incentivo crescente de tornar o povo chinês desejoso de consumo, a gastar muito mais e a fabricar menos, alterará o equilíbrio e a fachada do velho marxismo que já tem um atraso de séculos. As regras da globalização e da cibercultura, que não é só tecnologia, darão um golpe capaz de grandes surpresas. A perda das suas velhas tradições e do espírito colectivo levanta mais incógnitas do que o sorriso do enigmático “novo Mandarim”.
   A trágica Primavera de Tianamen de 1989, esmagada num horrendo massacre, e os seus ideais não podem ser esquecidos, ao mesmo tempo que o povo descobre “as delícias de Cápua” e como Aníbal esquece o bom combate.