"O Solstício de Verão e as Festas de S. João"

  • Das Trevas e da Luz

    ©  Lúcia Costa Melo Simas .( 2010 )

 

                        

Retorno dos dias

[  Musgos (pormenor).  Jardim Botânico. Porto 2010 . ]

© Levi Malho - Imagem digital

         


                                                    

    A poesia é a voz que mais se pode aproximar do mito e da filosofia. Entre as duas linguagens, no que respeita aos solstícios, há um arquétipo comum que remete para a simbologia da Noite pois ambas as festividades curiosamente são nocturnas, com todo o paradigma construído à volta das Trevas e do poder da Luz. Se bem que a exultação da alegria se manifeste de formas distintas, trata-se de uma comunicação com os ritmos da Natureza, sem que as pessoas nem se apercebam que participam de rituais ancestrais de louvor à terra e confiança na Luz.

  “Duas noites há no ano

 Que regalam o coração

 É a noite do Natal

 E a noite de São João”[1]

    Estas quadras populares, tão profundamente emotivas, são citadas pelo cientista e etnógrafo vilafranquense Padre Ernesto Ferreira que não escapou ao feitiço poético desta época festiva.
   Os dois solstícios irrompem com toda a sua força telúrica e quebram o quotidiano numa revelação, ou hierofania, em que o homem participa ou toma conhecimento desse ritual sacralizado que se manifesta e vai até ao arcano dos tempos!
    Já, paradoxalmente, no âmago da mais longa noite do Inverno, rebenta a força renovadora da promessa de nova Primavera e depois o Inverno inteiro não é mais do que uma lenta espera da ressurreição. O auge na noite mais pequena do ano reveste-se de enorme júbilo e comunhão com as forças da Natureza.
  Logicamente, o dia mais longo do ano varia com a latitude e assim Lisboa tem luz diurna por 14 horas e 40 minutos, já Madrid tem mais meia hora, Dantzig tem 18 horas e meia e um dos dias mais longos é na Sibéria, com mais de 19 horas!
    O solstício anuncia a descida para o tempo invernal no seu eterno retorno do ciclo do tempo. Até é tradição dizer-se “Primeiro de Agosto, primeiro de Inverno”!
    Os nossos antepassados descobriram pela experiência as mudanças cíclicas do tempo e acreditaram na sacralidade dessas manifestações, dando primeiro sentido anímico à Natureza e a todo o cosmos. Depois associaram tais alterações a celebrações, sacrifícios, invocações mágicas e mitológicas. Bem mais tarde, cristãos sobrepuseram a essas datas, o nascimento de Jesus no Natal, que era a festa do Sol e a festa de São João Batista ao outro solstício.
   A multiplicidade de símbolos joaninos encobre mitos ancestrais que são muito anteriores ao Cristianismo. Vêm de remotas tribos, atravessaram a Suméria, a velha Babilónia e o antigo Egipto. Atingiram a Grécia e Roma, com a deusa Flora, protectora das colheitas e também Juno, rainha dos deuses, donde parece vir a designação junina.
   O império romano espalhou as suas festas por todo o território conquistado. Os cronistas da Alta Idade Média relatam essas festividades e o historiador romano-gaulês Gregório de Tours, do século VI, (538-594), atestou que este era então o dia solene do baptismo dos cristãos.
   As águas continuaram a ter a dimensão de demonstração da epifania do sagrado. Antes do tempo do Imperador de Carlos Magno, século VII, as festas cristãs já se entroncavam em ritos pagãos, cristãos ou judaicos no solstício de Verão. 
  Bem mais tarde, os colonizadores, especialmente através dos Jesuítas, levaram este culto para o Brasil e não só, pois por toda a América latina ou não, surgem localidades cristãs com o nome de São João. Os festejos são em sua honra, onde quer que ainda perdurem na tradição popular, muito afastada já do sentido cristão da festa, sendo muito mais um hino de alegria e uma demonstração das forças telúricas da Natureza.
   A antropologia cultural coloca estas celebrações na participação dos povos, nos rituais da mudança dos tempos e a etnografia estuda o modo como cada cultura reveste as festas de um folclore que as diferencia nas suas manifestações. No entanto, encontramos os mesmos símbolos, se bem que ocultos pelas tradições, mas que afirmam os arquétipos comuns do inconsciente colectivo. As fases arcaicas e os mitos comuns irrompem, tal como estudou Carl Gustav Jung, a demonstrar a unidade primordial dos arquétipos culturais comuns enraizados na Natureza, com as suas exaltações, alegrias, seus medos e intervenções mágicas.
   A renovação da vida está no culto do fogo e da água, poder simbólico do orvalho e das ervas santas tudo isso aparece para inspiração da alegria que o povo vive ingenuamente através da “arte de prestar ouvido atento e deixar falar o inconsciente que nele exerce forte actividade e donde podem surgir ideias súbitas e interessantes” (Jung).
    Há muito que se perdeu o sentido mais profundo do mito. Se o sonho está para o inconsciente individual, o mito está para o inconsciente colectivo, ainda segundo Jung. A reconstrução em forma de narrativa do sonho revela-se incoerente, fragmentada, mal interpretada por quem a escuta ou lê enquanto é deformada inevitavelmente por quem a tenta expressar. É fácil sentir que as palavras não correspondem correctamente ao que se quer transmitir de um sonho. O mito também não é apenas uma narrativa, é bem mais do que isso. É uma linguagem em código, sem o tempo linear da vida e figuras e factos condensam-se de modo aparentemente irracional ou sobrenatural. Mas as personagens do mito, tal como as dos sonhos, têm múltiplas mensagens. Pode dizer-se que “não narram nada” porque, mais do que isso, descrevem sentimentos, medos personificados, mil estados de espírito com toda a sua complexidade. O exemplo de Apolo que persegue Daphne sem a alcançar pode ser a personificação do Sol e da Aurora que ele nunca atinge. Narciso é um sentimento que enreda a apaixonada Eco, que só fala se alguém lhe dirigir a palavra o que Narciso nunca faz, pois a sua beleza cega-o para tudo o mais. A sua morte é símbolo da solidão ou da impossibilidade de comunicar, pois o outro deixa de ter significado. Nos mitos nada é o que parece – e Narciso torna-se numa pessoa com uma ferida que nunca cicatriza porque vem de muito longe de uma infância perdida e permanecerá numa busca que nada nem ninguém pode satisfazer. É, em parte, o estádio estético de que falava Kierkegaard.
   Os objectos, nos ritos de São João, são míticos, se bem que não contenham já a força de outrora, tal o manjerico, o balão, ou o trevo da sorte, remetem os símbolos para mitos em forma de sentimentos. Ainda nos nossos dias, água benta das pias existentes na entrada das igrejas e ermidas mostram como este elemento é um símbolo do sagrado. A alegria por possuir um manjerico é, em parte mítica e esse é o fio condutor para entender o mito, esse imaginário que tudo cobre ou ”esse nada que é tudo” como escreveu Fernando Pessoa. O próprio Pessoa é um criador de mitos, atento à sua permanência entre nós.
  É bem verdade que quem vive o mito não pode aperceber-se dele, tal como Édipo e a teia cruzada de sentimentos opostos e contraditórios das relações parentais, de esposos ou de duplicação das figuras boas e más, sem um tempo sequencial ou lógico atravesse a pseudo narrativa que pretende atingir sentimentos e através das personagens descrevê-los.
    O enigma da Esfinge está na resposta de Édipo. A pergunta é somente o início do caminho para tentar entender a condição humana.
    Hoje, os mitos parecem-nos ainda mais complexos porque os vivemos ou porque estão demasiado perto de nós e, desmitologizar, é para um antropólogo, todo um trabalho de saber interpretar os fragmentos como narratário e depois reunir as peças para descobrir o seu código. O mito do futebol é um dos mais fortes e tudo isso é tão simbólico como real. Um mitólogo não pode participar desse jogo pois sabe qual é o arquétipo e a linguagem mítica dos heróis e objectos de culto, a representação de rituais, os fetiches, as relíquias, os seguidores devotos de nomes venerados como os santos o foram mas sem saber quem são as pessoas reais. A liturgia e as preces, a ascese dos jogadores, a sua áurea distante do vulgo, e o sacrifico dos heróis, tudo é um mito que rende milhões pelo inconsciente colectivo que lá projecta as suas frustrações, ansiedades a sua raiva ou fúria.
   Mais simplesmente, Barthes referia-se ao domingo burguês do bife com batatas fritas, mas podemos acrescentar a conversa de café, ou o lanche da pastelaria. Nada há que nos rodeia em que o imaginário não possa transformar em mito. Todavia o risco de desmitologizar é o de “sair” do palco das acções humanas e passar a ser intérprete da sua inegável força de toda a sociedade.
  A celebração da noite dos solstícios tem muito de Dionisíaco, pela desmesura e autêntica loucura urbana que invade e faz cessar o quotidiano anónimo e rotineiro.
  Até que ponto estas festas do solstício ainda são mitos? Para além da alegria institucional dos grupos, da preparação das danças, dos petiscos tradicionais, apenas a desmesura dionisíaca podia surgir. Mas o consciente e a pressão social estão presentes e não há consciência da participação de um ritual, nem há personagens ou heróis.   
   Atravessou assim, tantos séculos de celebrações, por isso as práticas destes festejos têm sofrido as mais variadas mudanças.
    Posteriormente aos cultos do Sagrado da Natureza, das forças cósmicas e do animismo, a festa foi cristianizada mas, mesmo assim, o culto pagão está presente com o paradoxo de uma exultação da Natureza e véus de fantasia que se opõem em extremo, à figura severa do santo profeta. João Baptista vivia no deserto e usava um traje de pêlo de camelo, com um cinto de couro à volta dos rins; e de pouco se alimentava com gafanhotos frutos e mel silvestre que nada tem de folgazão, mas de duras penitências. A questão litúrgica surge com o empenho de cristianizar datas pagãs para as anular ou transmudar. Assim, o rito do baptismo transferiu-se para o culto de São João com festividades do mito purificador e iniciático agora cristianizado.
   Talvez como forma de apagar o paradoxo da alegria e de uma euforia que não se coaduna com um profeta tão severo e penitente é o único santo de que se festeja o nascimento e não a morte nesta data. Também é comum ser representado em criança, como menino, sendo tradição que era filho de Isabel e do Sacerdote Zacarias e primo de Jesus de Nazaré. Maria seria prima de Isabel, daí o parentesco que os evangelhos referem. Seu pai, que ficou mudo, por não acreditar que pais tão idosos, pudesse ainda ter filhos, no momento de dar o nome ao filho, soltou-se-lhe a língua e segundo reza a tradição sob a inspiração do Anjo Gabriel, e para espanto de todos os presentes, exclamou:
 

“Seu nome é João,

e todos ficaram admirados.”

  O nome de João quer dizer “Deus é propício” só mais tarde ficou designado por Batista pelo evangelista Lucas porque pregava um baptismo de penitência (cf. Lucas 3, 3).
   Junto do Batista estava já Santo André que teve a honra e o privilégio de ter sido o primeiro discípulo de Jesus, e com ele foi seu irmão também João, denominado “o evangelista, conhecido por ser o discípulo que Jesus amava e que teria designado por “Filho do Trovão”. Os dois eram adeptos de João Batista, mas depois foram discípulos de Jesus Cristo na sua vida de pregação. Se João Batista é o precursor, João, o evangelista é conhecido por ter acompanhado Jesus até à sua morte e é a quem o Mestre entregou sua Mãe. Veio a morrer (103 D. C.) na ilha de Patmos, após muito ter viajado evangelizando, já numa muito avançada idade, e depois de escrever “O Apocalipse” uma escatologia do fim dos tempos em que demonstra a sua imaginação exuberante
   Na iconografia a figura do Batista é exuberantemente representada, logo nos inícios da era cristã, e espalhada por todo o mundo, quer nas imagens das igrejas e ermidas como em telas de pintores tanto anónimos como dos mais célebres.
   Já nas catacumbas aparecem pinturas de São João Batista e na Rússia também são muitos os ícones dourados de madeira. Revelou-se um tema frequente, de grande simbologia e fascínio para artistas e pintores logo no início do cristianismo, na mais alta Idade Média, passando pelo Renascimento até aos nossos dias.
   O culto popular leva a que muitas casas da ilha de São Miguel, nos Açores, tenham nas suas fachadas um azulejo de São João, quase sempre ainda bem menino, com a Cruz e o simbólico cordeirinho.
    Os islâmicos ou mouros também festejam São João pois o consideram um dos seus profetas, na linha do Pai Abraão e do profeta Elias que teria muitas semelhanças com o Baptista nas denúncias e modo de pregação.
   O Cancioneiro popular traz uma alusão bem curiosa a demonstrar a fama do Santo:

Até os mouros na Mourama/ Festejam o São João / Quando os mouros o festejam/ Que fará quem é cristão”. 

     São João Batista é motivo frequente para pintores anónimos ou célebres. Há preferência para o imaginar na infância, possivelmente por ser mais jovial e alegre do que o profeta do deserto e assim os festejos populares terem mais verosimilhança do que o homem austero que Cristo afirmou ser “o maior nascido de mulher”.   

  Não há homem como Cristo

   Nem mulher como Maria

   Nem santo como São João

  Nem luz como a luz do dia[2].

    A galeria de pintores é muito vasta mas os pintores medievais e renascentistas têm belíssimos quadros. É o caso do pintor flamengo, algo misterioso, que é Joaquim de Patinir, 1480-1524, o primeiro a incluir paisagens na pintura e também pioneiro no uso de grande mestria da perspectiva e profundidade. Os pintores italianos Giotto, Botticelli, Miguel Ângelo e Rafael, El Greco e Murilo deixaram belíssimas telas, para não falar dos belos e misteriosos quadros que Leonardo Da Vinci, nos deixou e deram azo a interpretações do psicanalista Freud e outros.
    Nos vitrais que surgiram na Idade Média, também é frequente a sua imagem, como o da igreja de São Severino, em Paris e outros mais recentes como os belíssimos vitrais vindos da mesma cidade, e que representam diversos quadros da vida de S. João Baptista que se encontram na Matriz de São João, em Vila do Conde.
   Por todo o mundo cristão, há azulejos e esculturas deste santo tão festejado. As tradições dos brasileiros e os seus festejos são extremamente similares aos nossos e o seu mais célebre poeta de São João é Luís Gonzaga do século XIX.
   As festas joaninas mais famosos do mundo inteiro são na Suécia pois são as suas comemorações nacionais de 20 a 26 de Junho, sendo a sexta-feira o dia mais tradicional, com danças de manhã até noite dentro a celebrar o Solstício.
    Tanto na França, como na Polónia ou até na Pomerânia, como na Ucrânia há festejos a São João. Também existe o “mastro de Maio” que os brasileiros conhecem e, antigamente, se dançava nos Açores, na Ilha de São Miguel, com fitas à roda de um poste e a que chamava a “Dança dos cadarços”. Era em tudo similar a essa outra dança e pode muito bem ter vindo da França ou dos flamengos que para cá vieram.
    No nosso país, as festas do Porto são singulares e juntam dois santos com o mesmo nome pois desde o século IX se celebrava São João eremita de grande devoção da rainha Mafalda, esposa de Afonso Henriques, e que se confunde hoje com João Batista. A tradição tornou-se lentamente cada vez mais profana, e, desde dos anos sessenta os martelinhos são um dos ex libris de tal festa, bem como as cascatas, de algum modo similares aos presépios natalícios. Os tais martelos que dão à noite um som único foram inventadas em 1963, por Manuel António Boaventura que teve tal ideia tão estranha como única. O seu primeiro uso foi com a Queima dos estudantes e depois alastrou-se à festa por toda a cidade e agora até em Braga também assim acontece!
    Apesar de tudo, o poder da Natureza vence todas as máscaras impostas e rompe todas as vestes que a Igreja lhe quis atribuir. As hierofanias ocultam as estruturas do inconsciente comum de todos os povos e a sua relação com o tempo, ou seja uma relação geográfico e religiosa que, neste caso, é bem evidente. São também os rituais das celebrações matrimoniais que os etnógrafos espanhóis Menendez Y Pelayo  e Julio Caro Baroja, estudaram relacionados com estas festividades e a sua mudança de festa de baptismos para as festas de esponsais ou casamentos e  a consagração aos festejos amorosos.
    Assim, em vez dos baptizados solenes deste dia, foram os casamentos que passaram a ser mais celebrados nesta época, tanto que Baroja intitulou um livro seu “La Estación de Amor” pois, já nos fins da Idade Média, os casamentos se tornaram comuns. As mil e uma quadras populares que espontaneamente o povo inventa e canta relacionam-se com os namorados e casamentos de forma bem clara. São João, passou a ser apenas pretexto para falar dos amores, dos balões e da alegria de todos. Assim, este santo, tal como Santo António, franciscano, teólogo de muito saber, passou a ser festejado como casamenteiro e nas quadras singelas e anónimas populares, é bem traquinas com as raparigas solteiras, as freiras e donzelas que iam às fontes com suas talhinhas.
     Dos santos populares, ainda o que menos se festeja ligações a rituais arcaicos, é São Pedro, que é orago de terras várias, mas mais celebrado religiosamente do que por tradições profanas. É porém o mais recordado durante o ano na linguagem quotidiana, por lhe serem atribuídas as portas do céu, as chaves do reino ou nos adagiários, São Pedro é quem manda a chuva e o sol, por isso se encontra a cada passo uma referência tradicional.
   Do Cancioneiro dos Açores
[3] esta quadra singela encontramos e bem poucas mais.

    São Pedro por ser mais velho

    Por ser homem de juízo

    Já tem as chaves do céu

    Das portas do Paraíso

            Todas estas tradições de danças e cantares, adivinhações com a clara de ovo, as sortes, o trevo, as favas têm muito de pagão e do mítico poder oculto que pela magia o homem pode vencer. Relacionam-se com as forças anímicas da Natureza e representam o que de telúrico o povo guarda e de algum modo convive com a religião de forma bem contraditória. 
   Eis que um santo do deserto, da penitência e da mais severa das irmandades judaicas, os essénios, se transforma numa festividade toda feita de exuberância e alegria, com danças e cantares sem fim.
   Os Essênios, originários do Egipto, profetizavam a vinda do Messias. Há quem afirme que esperavam dois messias e não apenas um. Só alguns estudiosos bíblicos acreditam que São João Baptista fosse essénio e que Jesus tivesse contacto com essa comunidade. Através de Flávio Josefo, um historiador judaico romano, estas comunidades tinham uma vida de penitências tão severas e ritos tão rigorosos que poucos chegavam aos 40 anos. Os ritos de purificação e os banhos purificadores em águas paradas e sem qualquer limpeza, para além da frugalidade da alimentação tornavam os essênios vulneráveis a muitos tipos de doenças. 
    Os manuscritos do Mar Morto, descobertos na década de 40 do século passado, e que tanta curiosidade levantaram não mencionam os seus nomes.
   Sabemos que Cristo foi baptizado por São João no rio Jordão e este era um rito de purificação também dos essênios. A água teve sempre um papel fulcral de purificação e renascimento.
   As hierofanias, que foram descobertas pelos nossos remotos antepassados, levaram-nos a usar a magia para imaginar que tinham poder de dominar a Natureza e subjugavam o Cosmos à sua vontade.
   Foi como se tivessem percebido que havia uma lei, mas só vendo os seus efeitos e sem entender a sua dedução lógica. Assim, todos os objectos que se tornam mágicos por uma noite sagrada, como o ovo, o trevo, as favas ou a peneira são fórmulas que se aproximam da “ordem”  mas sem entender que isso está incompleto e é só uma probabilidade do sujeito e não do objecto. A mente que se desliga do lógico busca criar uma ordem, ou participar dela. Toda a magia procura ser domínio ou participação nos modelos que se repetem.
    Parece que Tales de Mileto teria afirmado: “Tudo está cheio de deuses.” Tal frase coaduna-se com a mentalidade de então. Os deuses estão presentes e caminham lado a lado com o mortais e as manifestações deles estão em tudo. O filósofo Karl Jasper e George Gusdorf  com uma teoria simbólica colocam a mitologia como uma pré-história da filosofia. Sem ser uma consciência racional que abarca o geral e a universalidade das coisas, ou a consciência existencial de vivências pessoais, a mentalidade mítica  seria um ponto de convergência entre ambas.

Em suma,é a consciencia mitica que permite a localização da razão na existência, que inser e razão na sua totalidade – porque, abandonada a si própria, permaneceria como suspensa no abstracto, sem integração no mundo real”.[4]

   O trovão era Zeus, tal como a tempestade, o Sol era Apolo, foco de doenças ou seu curador, também insuflava os artistas da inspiração atraves das suas Musas, assim como a sabedoria se traduzia em Atena que também era a guerra e inspirava os actos heróicos. Itília, mitologia grega, era a deusa dos partos que só aconteciam na sua presença. A convivência com os deuses tornava os gregos semelhantes a joguetes fatalmente manipulados pelos seus caprichos, amores ou vinganças. Ainda em Homero, os mortais e os deuses convivem lado a lado num mundo onde a multiplicidade era a aparência de um só cosmos.
    O anjo da guarda paree ser ainda uma reminiscência do Daimon que era uma voz interior ou uma figura que inspirava cada homem para o bem ou para o mal. Entre os gregos era bem conhecido e até Sócrates ouvia a voz do seu Daimon e seguia-o por considerar que dirigia o seu destino.
   Acontece que hoje, os objectos destas celebrações continuam a existir mas estão já dessacralizados. Tornaram-se em folclore banal a ser consumido. Já não há a magia que o inconsciente colectivo lhes atribuía. A participação do homem na Natureza fica à superfície é apenas exteriorização de uma alegria sem o que era o essencial dos antigos povos. Esses não tinham um pensamento científico mas sim os seus adivinhos, feiticeiros, pitonisas, gurus, ou xamãs ou mágicos capazes de crer que conseguiam dominar as forças da Natureza, as mudanças, os objectos e até os seres humanos.
    A magia ou os poderes do homem para vencer a Natureza são hoje uma alienação quando buscam o uso de elementos científicos. Estes perdem o sentido e o seu rigor logo que desligados da sua construção racional de uma colectividade lógica que não se compadecem com o irracionalismo dominante dos falsos adivinhos. É o caso, por exemplo da falsa utilização da força gravitacional de Newton para “cativar” as energias do cosmos para um só indivíduo responsabilizando-o pela capacidade de captar ou não as potências que o levariam ao êxito pessoal. Porém as deduções científicas partem de premissas, se bem que inicialmente axiológicas, está bem distante da mentalidade cosmogónica. Há impossibilidade de aceitar um paradigma científico e passar as suas deduções para uma outra lógica fragmentada que não atinge uma mentalidade há muito perdida das crenças organizadas em torno de explicações unificadas. Não se trata de uma mentalidade pré lógica, como já foi desmentida. Agora trata-se de construir um mundo falsamente mágico com elementos retirados à ciência com todo o seu rigor e construção lógica para um eclético meio onde os paradigmas se confrontam sem possibilidade de formar unidade e em que as crenças e as falsificações se misturam inevitavelmente. 
   O fogo foi também um dos mais sagrados e mais misteriosos elementos e também dos primeiros objectos de adoração dos povos. Vêm do Norte da Europa as tradições de saltar à fogueira, com estes dizeres exortatórios:

 

   Salto a fogueira de São João

    para que não me morda nem cobra nem cão.

  Acreditava-se que a luz das fogueiras e o ruído dos troncos das árvores a arder, afugentavam os espíritos que podiam destruir as colheitas. As superstições e crenças nas virtudes das ervas santas colhidas nessa noite ou o banho e santidade da água no dia de São João são resquícios de cultos às forças da Natureza.
   Com o cristianismo, passou-se a considera-las como bênçãos desse dia da celebração do nascimento do percursor do Messias. As divindades das águas eram Poseidon, filho de Cronos e Afrodite sua esposa. As mouras encantadas e seus tesouros são medievais. Certas nascentes junto de imagens ou de ermidas eram também muito procuradas pelas suas virtudes curativas e abençoadas.
   As celebrações e a figura do grande mas severo e penitente profeta são desconcertantes se não soubéssemos das suas remotas origens.
    Na narrativa bíblica, Heródes temia-o. O povo ouvia-o e ele não tinha coragem para o mandar matar. Apesar da Galileia ser uma região habitada por judeus turbulentos, segundo o historiador Flávio Josefo o governo de Heródes Antipas, não foi de revoltas Apenas houve a prisão de João Baptista, cuja pregação teve fortes ecos e por isso foi considerada um perigo grave. Além de pregar a penitência, denunciava a hipocrisia do povo e os seus erros, não se coibindo de acusar o rei de ser adúltero, pois casara com Herodíadas, esposa de seu irmão, Filipe. Ao abordar o assunto, Josefo limita-se a narrar a prisão do profeta, sem mencionar sua morte. Face a todos esses acontecimentos este historiador tinha alguns problemas pela sua cidadania romana e a sua origem judaica. Já em dois dos Evangelistas encontra-se a famosa história de Salomé, enteada do rei. O poder do Tetrarca estava em jogo. O pedido de Salomé para que lhe concedesse a cabeça do profeta, foi o pretexto para que o Santo fosse executado e a sua cabeça entregue bandeja numa festa do rei da Judeia. O rei empenhara a sua palavra pois prometera dar à enteada tudo o que ela lhe pedisse depois da famosa dança. Assim julgava que a voz incómoda do profeta não mais o importunasse.
   Nada melhor do que criar um mártir para aumentar a fama de um inimigo e enfrentar o aumento do entusiasmo dos seguidores. Assim ocorreu com o profeta cuja fama cresceu e chegou até hoje.
    O povo, que festeja não se interroga sobre as causas antropológicas ou filosóficas, nem estuda astrofísica, história ou etnografia nem tem tempo para as reflexões dos teólogos que procuram conciliar o que de paganismo têm estas festas e o espírito com que o cristianismo cobriu os ritos pagãos.
    A meados do século passado o etnógrafo terceirense Luís Ribeiro notava com desgosto a decadência desta tradição. Parece que as tímidas festas dos nossos avós retomaram uma vida nova bem profana com inovações e festejos que dão mais vida à noite mais alegre do ano.
  Os festejos ingénuos e cheios de simplicidade popular trocaram-se por outros com turistificação folclórica destoante e comercialização crescente. Seja como for, a alegria exuberante é sinal dos mitos e símbolo do poder da Natureza e da relação do homem as forças cósmicas.
   Tudo isto é um acordar do homem para a sua ligação com as velhas cosmogonias já esquecidas que o inconsciente colectivo ainda guarda.

    O solstício de Inverno tem poucos resquícios dos ritos pagãos que eram poucos pelos dias tão curtos e as noites tão longas que levam a menos poder de exteriorizar grandes celebrações. É mais passível de uma interiorização que leve a uma oração ou prece de acção de graças. O Sol que se festejava era a espera da sua ressurreição e a vitória da Luz sobre a Noite ou as Trevas. Assim as tradições natalícias são menos exuberantes e mais intimistas com reuniões de famílias a ceia ou jantar de Natal, canções tradicionais e troca de presentes que habitualmente são mais para as crianças.
    No hemisfério Sul, onde o Natal acontece em pleno Verão, nomeadamente na América latina, como é o caso do Brasil, as festas natalícias relacionam-se com reuniões de grupos familiares, refeições festivas e trocas de prendas habituais.
  O solstício de Verão apela a uma exuberância de regozijo e alegria pela ressurreição da terra que já não tem sustentáculo mágico ou ritual mas apenas a dessacralização de objectos ou velhos mitos e tradições. Tudo passa a ser apenas exterioridade e pretexto para uma alegria em que a tradição se transformou em folclore em cada lugar onde se festeja e o sagrado não tem qualquer sentido. Trata-se apenas de folclore sem vivências quaisquer para além de demonstração da alegria popular num mundo de objectos em que se destruiu a relação do homem com a Natureza. É quase possível viver-se num mundo sem estações, com a mesma temperatura amena, com ar condicionado, com a globalização que fez desaparecer os ritmos das estações com os seus alimentos próprios, agora congelados e atravessando fronteiras, com a rotina dos dias controlados artificialmente, os fins-de-semana, as férias e a violência subtil da moda que nos homogeneíza pela força da pressão social.
   Tal como o mito, que é uma linguagem cifrada, que depois já nem se entende o sentido, também os solstícios e a festa de São João são pretextos para demonstração de uma alegria que marca uma mudança nas estações. No mundo pós moderno não consegue remeter para dimensões mais profundas ou um sentido que, na realidade nem se procura pois há muito se perdeu.  


            NOTAS:

 

[1] FERREIRA, Ernesto, Ao Espelho da Tradição, Gráfica Regional ,- Ponta Delgada, 1943 p.222.

[2] CORTES Rodrigues, Armando, Cancioneiro Geral dos Açores, Secretaria Regional dos Açores, Vol. I,1982, p.61,

[3] Idem. Ibidem, p.101,

[4] GUSDORF, George, Mythe et Métaphysique. Introdution à Philosophie, Paris, Flammarion, p.11Apud JABOUILLE, Victor, Iniciação à ciência dos Mitos, Editorial Inquérito, Col. Cadernos Culturais,  Lisboa 1986, p.97.