"Os Filhos da Europa - I "
Entre a Identidade e a Diferença
© Lúcia Costa Melo Simas .( 2010 )
Mileto e depois
[ Detalhe dum motor. Zona da Foz. Porto 2010 . ]
© Levi Malho - Imagem digital
O filósofo e literato Tzvetan Todorov, (1939- ) escreveu, um pouco
sarcasticamente, na sua obra “As Morais da História”, um capítulo com o
título “Quando os búlgaros eram bárbaros”. Ele, que era búlgaro e
emigrante em França, investigava um passado em que a Europa tinha um mapa que a
circunscrevia mas nunca o seu espírito foi possível de definir de uma vez por
todas.
Talvez não fosse por acaso pois, apesar de estrangeiro, experimentava fazer
já parte de uma cultura em que os búlgaros não estariam a sentirem-se mal.
Porém, há algum tempo atrás, a ida para esse país, hoje europeu ou outros
similares, era algo aventureiro pelo imaginário exotismo e pela diferença
cultural que iriam encontrar e formar grandes contrastes com os finos
parisienses, como era o caso de Lamartine ou Chateaubriand. Até o criminalista e
pedagogo Ferreira Deusdado, na sua viagem cientifica à Rússia em 1891, por causa
do Congresso Penitenciário de São Petersburgo, traçou uma crónica de viagens que
nos deixa embaraçados para entender o que de estranho haveria na Corte do Czar.
Definitivamente a Rússia, com uma Corte em que se falava francês e adjacente
da Ásia e da Europa, é, por si só, uma prova da impossibilidade de definir o
espírito europeu ou mesmo a “ideia da Europa” como tentou o humanista
George Steiner.
No século XIX era ainda com algum orgulho e receio que qualquer viajante saía
da Europa e se confrontava com o que considerava “estranho” e
inapropriado a um espírito civilizado como deveria ser o seu. Acontecia mesmo
que a curiosidade tornava qualquer viajante num escritor a relatar, de modo
muito subjectivo e pouco credível, as possíveis maravilhas contempladas.
Que dizer então dos dias de hoje em que se pondera a entrada oficial da
Turquia na Europa? Em séculos já distantes, os Turcos chegaram a cercar Viena e
mesmo depois de vencidos na batalha de Lepanto, na Grécia (1571), intentavam a
última investida contra os cristãos (1683 ).
Nas origens mitológicas, a Europa aparece primeiramente na Grécia, ligada
ao seu raptor, Zeus, disfarçado de touro. Seria uma princesa, filha de Agenor,
rei da Fenícia e teve três filhos do deus.
A sua imagem transforma-se num continente enquanto que, no céu, surge
como satélite do grande planeta Júpiter, dos romanos e Zeus para os gregos.
Nem os gregos de hoje parecem muito interessados em filosofar e reunir-se
na Ágora, nem os romanos modernos têm o sentido de Estado e de Direito que
caracterizou os antigos latinos.
Torna-se impossível definir o que é a Europa em qualquer tempo. O espírito
europeu representa a herança de um passado mas é também um modo de pensar o
futuro e de viver o presente.
Os egípcios de hoje olham para o seu passado como se um véu de amnésia
lhes escondesse toda a ancestral e mítica sabedoria, vivendo completamente
alheados da grandeza do seu passado, que tão famoso era ao ponte de ninguém
poder ser sábio na velha Antiguidade sem ter ido ao Egipto.
Quando imaginamos que surge algo original na Europa depois reconhecemos
embaraçados e com humildade que os gregos já tinham reflectido bastante sobre
esse assunto e as questões que descobrimos estavam já bem presentes no
pensamento helénico. É claro que hoje lhes damos outro valor e uma vida nova.
Mas é patente o nosso envelhecimento face à frescura com pensava um Tales, um
Parménides, para não falar na inefável sabedoria de Platão.
Do mesmo modo, o povo romano com o seu Direito, o seu pragmatismo, a sua
glória e orgulho de grande império desapareceu com a vinda de novos povos. Pode
parecer absurdo mas hoje, tanto egípcios, gregos ou italianos parecem nada ter a
ver com esse espantoso passado.
De tudo isso e muito mais se criou um cadinho gigantesco que é a Europa sem
definição alguma que não seja incompleta.
A Idade Média representa um mito que não se resume à Idade das Trevas mas sim
uma época que não tem merecido o devido estudo possivelmente por um preconceito
da posteridade.
Apesar do seu tom tendencioso e irónico, a historiadora medievalista Regine
Pernoud (1909-1998) demonstrou como a ignorância dessa fase histórica é uma
realidade e esconde um longo labor de unidade e de dialéctica, uma época de
luzes e trevas, com lutas e rancores, ardentes amores e emoções à flor da pele
que hoje nos parecem estranhos e alheios. Com a tradição e a forte
estratificação social haveria o risco de alguma estagnação se não fosse a
vocação do futuro que lhe ofereceu a religião judaico cristã.
A expressão de sentimentos e emoções em público era comum nessa época e
sofreu uma forte repressão até aos nossos dias. Na época medieval não tinha
sentido essa contenção e pelo contrário não era reprimida como agora em que o
riso, a dor e mesmo a emoção religiosa pertencem muito mais ao privado do que ao
público.
A honra e a palavra dada, o ódio e o arrependimento, o culto e a posição,
por vezes privilegiada, da mulher mostram que a era medieval teve um cunho de
sinceridade no mal e no bem. Era possível que um nobre da corte, ao ouvir um
longo e dorido sermão, acerca do pecado e do perdão, com imagens vibrantes que
vivamente o impressionavam, chorar lágrimas amargas na Igreja com evidentes
remorsos ou arrependimento. Tal não obstava a que soubesse usar o punhal para
assassinar um inimigo passado pouco tempo!
Tudo isso foi uma herança que o Renascimento com todo o seu entusiasmo pela
Antiguidade ocultou e desprezou, mas não deixa de ser parte da nossa herança.
Até que ponto porém, não se constrói o passado criando algo que nunca
existiu? Cada época inventa uma Antiguidade, um homem medieval ou renascentista
que tem muito mais a ver com o presente histórico do que com a realidade. A
liberdade, o direito ou o amor, bem como outros valores, tal como o pensavam os
antigos ou os medievos não correspondem, de modo algum, ao que lhes atribuem
muitos pensadores de hoje.
O homem grego ou romano está muito longe das cogitações de um Goethe ou até de
um Nietzsche ou de Hanna Arendt que não investigaram com mais acerto e
profundidade as fontes que procuraram para poder falar de liberdade, de Direito,
de Dever, de Areté (virtude) e da vida real desse tempo! O homem grego não teve
qualquer noção de liberdade, ao contrário do que possa pensar-se. Tinha apenas
deveres a cumprir para ter direito a ser cidadão. A perda da cidadania era o que
de mais horrível lhe podia acontecer. O Pater famílias foi a pedra basilar da
cidade e sem a religião dos Lares, Penates e Manes, presenças dos antepassados e
futuros filhos, Roma não teria raízes tão sólidas pois o culto da cidade
exteriorizou o espírito que animava a família romana.
Poucos se dão ao cuidado de reparar estes erros em que incorrem e no muito
que tal premissa se traduz em falsas conclusões.
A Europa tem a sua identidade global mas só vivemos numa época para a
diferenciar e há sempre muitas eras para desvendar.
Retrato de família
O modo de ser de um holandês terá tantas
parecenças com um inglês como os filhos da Europa que vivam no Canadá ou no
Brasil. A herança comum atravessa séculos de cultura e civilização, circula na
linguagem, nos estilos de vida, na literatura, religião e ética naquele modo
especial com que se parecem os filhos e os netos com seus pais e seus avós.
É óbvio que há contrastes e diferenças mas têm todos um ar de “retrato de
família” pois, se na Europa ainda não nos libertamos dos gregos, o que é um
bom augúrio, também do outro lado dos mares, nem a Antiguidade está esquecida,
nem Shakespeare é um desconhecido ou Fernando Pessoa é só português.
Os génios são raros e há todo um anonimato cultural vivo que propicia o
ambiente para surgir um Beethoven ou um Wittgenstein. Bem reflectia Saint
Exupéry nas suas viagens a África, ao ver uma criança lindíssima com seus
miseráveis e esfomeados pais: “… eis a face de um músico, eis Mozart criança,
eis uma bela promessa de vida.”. Mas a desolação do local obriga-o a
concluir “O que me atormenta não são essas faces escavadas nem essa fealdade.
É um pouco, em cada um desses homens, Mozart assassinado”.
[1]
Não podemos esperar mentes maravilhosas surgidas da miséria cultural. Há uma
oportunidade única para que possa surgir um génio, ele tem mil pilares e para as
suas qualidades e apenas acaso.
Temos uma ideia errónea de Paris no tempo do Antigo Regime pois o povo não
era assim analfabeto como se possa pensar e liam-se muito jornais. O povo era
mais esclarecido do que se pensa hoje dele. Há muitas causas ocultas para o
eclodir da Revolução e do seu êxito. Todavia a primeira Grande Guerra arrasta um
passado tão pesado que radica em parte na Revolução Francesa, segundo o
historiador Edward McNall Burns[2]
ao apurar todos os factores que redundaram nessa tragédia que envolveu o mundo
inteiro.
Pode parecer que tal Revolução teve o seu tempo, mas a sementeira ainda está
em flor e os frutos são futuras promessas. O tempo histórico tem uma duração que
não se avalia pelas gerações.
Temos extremos cuidados com a condição humana sempre multifacetada. Quando
se compara a Europa com outras terras, ao pormos Veneza perto do Dubai teremos
surpresas enormes. Claro que estamos a confrontar com a nova Veneza de Las Vegas.
Foi a nostalgia da Europa que criou esses estranhos Kitsch que não deixam de ser
uma memória europeia. Contudo serão cada vez menos as diferenças pois dizia um
historiador que “estamos quase a viver todos sob o mesmo tecto”. A
globalização tem um tal poder que a homogeneidade das pessoas aumenta velozmente
com as sofisticadíssimas tecnologias.
As Luzes foram um movimento muito contraditório, longe de unanimidade e de
tolerância entre os iluministas. Novas noções de progresso e optimismo surgiram
então no desenrolar da História Universal.
As facetas do Iluminismo foram tantas que não o podemos definir sem
escrever um volumoso tratado. Por outro lado, o espírito que então se criou
ainda continua bem vivo e tem adeptos pelas sete partidas do mundo.
As Luzes traziam um novo ideal e que cada vez se tem vindo a acentuar mais.
A ideia de progresso.
Sapere aude! “Ousa pensar!” é o grito libertador de Kant, convencido de
que o saber no homem livre o tornaria um ser superior apesar de todos os riscos.
Na complexidade do iluminismo, Kant é chamado “o quebra tudo”, porque
tudo crítica, incluindo a razão.
O risco que o Iluminismo veicula é também a sua grande glória. A crença
na razão libertadora do homem não passa de uma convicção ou fé. Nela não se pode
fundamentar o mito de que uma civilização em que todos sejam ilustrados, cultos
ou sábios serão por isso igualmente bons, honestos, ou até “veneráveis santos”!
A história confirma claramente este erro que é fruto de um mito quase
ainda tabu. A ideologia acredita ainda piamente que uma educação baseada no
conhecimento converte os jovens, como por alquimia, em cidadãos honestos e bons.
O sábio Platão e o horror à ignorância fazem esquecer Pedro e a Luz da
Judeia.
Do Iluminismo ficou também uma nova noção, o optimismo. A palavra surge
pela primeira vez em 1737 nas “Memórias de Trévoux”. Era um periódico
impresso na Holanda sob a direcção dos Jesuítas e destinava-se a critica
literária, científica, histórica, religiosa e outras. Reunia as
reflexões de pensadores da época e reflexões sobre o grande filósofo e cientista,
Leibniz acerca do melhor dos mundos possíveis
Esse optimismo apoiava ainda mais o desenvolvimento da crença num
progresso do homem, das suas capacidades racionais e na possibilidade de uma
fundamentação filosófica para a moral que seria a base da metafísica. A
confiança nas suas aptidões leva o homem a sonhar um mundo novo construído na
Terra, separando-se da ideologia do mundo “como vale de lágrimas” e
passando a acreditar que o trabalho e a bênção de Deus trariam a
perfectibilidade humana que só a má administração social não realizara. Assim,
Helvetius podia afirmar: “A moral è uma ciência frívola se não se confundir
com a política” Pelo brilho dos espíritos, pelas contradições e promessas,
pelo “forno alquímico” das ideias que pululavam o Iluminismo foi “um soberbo
nascer do sol… O entusiasmo do espírito fez então estremecer o mundo”.[3]
A noção de progresso pressupõe o domínio da natureza pelo homem e a cultura
toma um sentido evolutivo. Se a Europa assimilou o espírito das Luzes o
progresso científico e o conhecimento apresentam facetas herdadas da antiga
noção judaico cristã do fim dos tempos. Assim o optimismo religioso passa a ser
também um optimismo político, científico e filosófico.
Hoje em dia, os neo kantianos revisitam o Mestre e é na sua moral que o
Direito positivo se torna sólido e se pode pensar em termos universais acerca da
moral.
É claro que tudo isto só acontece porque a Europa é a herdeira de uma
Antiguidade no que esta teve de melhor e com potencialidades de se projectar no
futuro distante pois todo o mundo Ocidental é, sem dúvida, formado pelos filhos
da Europa.
Há um aspecto da mentalidade do Oriente que não surge no Ocidente e que é a
fatalidade e a forma de encarar a morte. Por isso, diante de uma operação
militar de extremo perigo, nunca há uma missão de tamanho risco, da parte dos
ocidentais, que não trace um plano de regresso. Já os Kami Kasa do Oriente são
um exemplo do contrário. Os jovens pilotos partiam sem a mais ligeira esperança
de retorno. Era uma missão suicida com os seus rituais e cerimónias religiosas a
demonstrar dois pensamentos diferentes perante a vida e a morte.
Só a escritora americana Pearl Buck, (1892-1973) vencedora do Nobel 1938,
sinologista e defensora dos direitos e igualdades raciais, pode publicar “Vento
do Oriente, Vento do Ocidente” e tantas outras obras, que abriram as portas
da China e do Japão ao Ocidente, bem contra a vontade dos governantes chineses.
Entre as duas culturas, Pearl Buck não é americana nem chinesa, está além e
aquém dos factos para lhes dar uma transcendência que coloca o espírito humano
no estádio de entender dois humanismos, o da saga chinesa combinada com o
humanismo bíblico. Confúcio e a Bíblia, América e o Oriente unem-se na escrita
de uma herdeira da Europa.
A influencia da Europa no mundo, especialmente no Ocidente onde os
fundamentos são notoriamente seus, supõe a metáfora do “retrato de família”
com parentes já muito distantes mas em todos há um traço, um ar, um pequeno
sinal e aí está o tal “ar familiar” que tais retratos traduzem.
Os primeiros passos para a globalização partiram da Europa, com os seus
ideais e sonhos de novos mundos. Por fim, talvez a família humana seja obrigada
a reconhecer que o Outro está sempre mais perto do que imagina. A aposta há
muito que foi lançada!
Rousseau na América
Levar Rousseau para a América é uma
fantasia que seria logo desmentida pela natureza dos índios e o alarme do
filósofo Essas tribos de Índios em nada correspondiam ao seu “mito do bom
selvagem”. Citando Bertrand Russell, ao referir-se a Rousseau, com certos
pré-requisitos idílicos, todo o homem é sempre bom: “Para desfazer o mal, só é
necessário abandonar a civilização, pois o homem é naturalmente bom, quando
comeu e está em paz com toda a natureza e é amigo de todos os seus semelhantes[i].
Devido às nossas pesquisas e reflexões, temos um certo desacordo com
Baudrillard quando diz que os Estados Unidos são apenas futuro pois não têm
raízes, por isso acredita numa utopia dos “futuros primitivos”. Nesse
diálogo brilhante com o editor e escritor Nathan Gardels, editor do NPQ
Quarterly partindo da premissa de que os americanos não têm peso histórico
considera-os sem passado como os primeiros povos primitivos e ignora a sua
verdade, a sua cultura e os seus símbolos.
Todavia eles têm tudo isso e prezam tudo isso, mas a seu modo, não se pode
generalizar a ingenuidade ou a sua noção de felicidade sem ver que na Europa o
mesmo espírito domina e a esterilidade de reflexão acontece nos dois continentes
em grande massas sociais.
Porém nesse cadinho gigantesco e amalgama de povos não temos dúvidas em afirmar
que a cultura, a religião, a política e os valores em geral são a herança da
velha Europa, com os seus melhores ideais de política e religião. A Constituição
Americana tem a presença de Rousseau bem como a frase, os mesmo ideais que
surgem na Revolução Francesa e no seu dólar aparece “In God We Trust”
algo simbólico e sinal ainda marcado pela ideologia cristã de muitos séculos. Se
o território define um povo teríamos apenas os Índios nas suas tribos mas o
território que Baudrillard refere podia tê-lo visto vivo até no quotidiano da
escola, e da vida social do nascimento até à morte, a forte marca da Europa.
Trabalho e o seu valor estavam unidos para bem do povo que se colocava sob
a guarda de Deus nas suas tarefas e nos seus feitos.
Voltaire, Rousseau e Benjamim Franklin, cada um a seu modo, são modelos
notáveis das ideias que flutuavam na cultura e civilização que os três
respiraram.
Rousseau teve uma vida dura, cheia de imprevistos, amizades e ódios,
desconfianças e fugas.
A índole complexa e sentimental de Rousseau iria entrar com conflito aberto
com Voltaire, que teve uma vida serena sem riscos. Toda a sua fina ironia e bom
senso contrastavam com a natureza temperamental do suíço. O encontro de ambos em
Genebra, donde Rousseau era natural, veio abrir mais fundo o abismo entre ambos.
Simbolizam dois temperamentos contrários na complexidade europeia da sua época.
Rousseau era de origem humilde de uma família com 15 filhos e começou bem
cedo a sua luta pela vida, sempre tumultuosa e insegura. Modelo do “sentimental”,
com a sua melancolia e desconfiança nos outros, a falta de coragem e o medo de
ser perseguido, aliavam-se à indecisão e perfeccionismo em tudo, ruminando
pensamentos sem se libertar da sua oscilação de grandeza e de humildade. Por
isso, contrasta com o temperamento impulsivo e a vivacidade de Voltaire. Este
teve um começo promissor e sem dificuldades na vida, senão as que a sua
fogosidade e interesse pela politica lhe levantavam. Era um “sanguíneo”,
pronto a adaptar-se às circunstâncias, com uma enorme diplomacia e optimismo
sarcástico que o ajudam a atingir os seus fins. Tornou-se famoso pela sua obra
que é tão vasta como variada, pois abordava com o seu sarcasmo os seus diversos
temas e modos de escrever. Tinha a argúcia e o brilho da resposta certa sem ser
profundamente atingido pela emoção, enquanto Rousseau burilava o seu trabalho
lentamente, movido por grandes perturbações e sempre recordando o passado.
Podemos colocar Voltaire e Rousseau como dois extremos do espírito europeu de
uma era que chegou até nós com vários contradições. O racionalismo e
enciclopedismo de Voltaire estão na linha dos escritores, filósofos e cientistas
que aparecem na época. Polémico e corajoso com a sua lúcida inteligência
defendia a liberdade de religião e de expressão de tal modo que lhe valeu o
exílio
O lado sentimental de Rousseau aparece nas suas “Confissões” em
paralelo com um teísmo emotivo em extremo, a escrita dispersa ligada ao seu
estado psíquico, oscilante, com uma fé sentimental que não aceita nenhum
argumento racional com bons olhos que não seja a sua crença em Deus. Se o seu
Contrato Social tinha o objectivo de acabar com as desigualdades dos cidadãos
foi, como diz Bertrand Russell, a Bíblia da Revolução Francesa, com a tese da “vontade
geral” que seria infalível e dos seus frutos nem os direitos do homem, nem a
democracia resultam das suas teses. O risco da leitura de Rousseau é aplicar
demasiado a sério as doutrinas que ele ideou. Por isso, temos discípulos seus em
Robespierre e nas ditaduras alemãs e na Rússia. Bertrand Russell temia o que
herdaríamos ainda dele depois de ver as obras dos seus apressados seguidores
entre os quais se conta Robespierre e outros.
Resta-nos ainda fortes interrogações acerca do futuro com a prática da sua
pedagogia que ainda hoje tem adeptos e revolucionou a pedagogia de um modo como
nunca antes se observara a criança. Por isso, encontrou tantos adeptos
fanáticos, mas que ele nunca experimentou educar alguém com os seus métodos e
admirava-se de quem o tentava.
Tal como Voltaire as suas ideias influenciaram fortemente a Revolução
Francesa a que ambos já não assistem.
As ideias revolucionárias destes iluministas propagavam-se e com os povos que
chegavam às Américas vinham os ideais para o desabrochar da democracia como uma
herança europeia das mais profundas e aceites por consenso.
Se bem que o paradoxo da crueldade para com os indígenas era em geral
dominante, e uma das manchas mais negras na História da Humanidade, as novas
nações começavam a cumprir ideais e teorias de que a velha Europa fora fiel
depositária sem que primasse por as seguir.
As idas a África e as incursões na Ásia faziam prever a ideologia dominante
e o Poder produzisse um sentido que retirava o respeito e a dignidade aos povos
considerados ignorantes e infiéis. As interrogação acerca de tais seres tão
diferentes terem alma são já provas do modo como a alteridade era colocada com
consciência de uma suposta supremacia que tudo consentia.
A boa convivência com os indígenas e a sua aceitação são a excepção á regra,
num tempo em que a escravatura era um meio de enriquecimento socialmente
reprovado nos “negreiros” mas praticada até bem tarde por razões
económicas.
As trocas entre o novo e o velho continente são paradoxais. Em França, o
entusiasmo com que regressa o Marquês La Fayette da guerra dos Estados Unidos
contra a Inglaterra demonstra uma força que se junta aos ideais da própria
Europa.
Seria também ridículo supor que Benjamim Franklin, embora nascido em Bóston
(1706-1790) tivessem algo diferente da Europa pois a sua cultura foi toda
modelada pela mentalidade europeia. Daí colheu os melhores frutos, com
influência do filósofo Locke e da estada em Inglaterra onde aperfeiçoou os seus
conhecimentos.
Era um fleumático, assim descrito nos livros de Psicologia, com uma
disposição constante para o trabalho e uma versatilidade que o tornou um dos
heróis mais notáveis da Historia da América quer por ser um estadista, um
cientista, um notável escritor, afável o que lhe granjeou uma longa lista de
amigos ao longa da sua notável vida.
Durante a Guerra da Independência quando esteve em missão diplomática em
Londres e em Paris causou a maior boa impressão a todos e até na corte de Luís
XVI. Permaneceu na França até quase á sua morte e na altura a constituição
francesa decretou luto. Os parisienses encantavam-se com a sua sabedoria, tanto
como estadista e grande investigador dos fenómenos eléctricos, para além de
qualidades em que o seu fino sentido de humor e prático não deixavam de se
manifestarem. Seja verídico ou não, um dito seu tem um toque profético e de
clarividente percepção dos acontecimentos. Ao assistir, no meio da multidão, à
experiência do levantar de um balão aerostático, alguém mais pessimista duvidou
do seu préstimo. A isso Franklin teria ripostado: “qual a utilidade de um
bebé recém-nascido?”.
O seu exemplo com uma vida repleta de trabalhos da mais variada espécie em
que soube mostrar as suas capacidades superiores com uma energia interior
exemplar para os novos americanos a braços com a formação de uma grande nação. A
Academia de Ciências de Paris e a Sociedade Real de Londres abriram-lhe as suas
portas diante das suas notáveis pesquisas científicas, entre elas a famosa
descoberta do pára-raios. Ainda hoje as suas memórias são uma obra notável em
conceitos morais e filosóficos.
Um filho da Europa, que o destino colocou
na América, imprime as características do “self made man”. De origem
humilde, já trabalhava como aprendiz de seu pai aos dez anos e nunca abandonou o
gosto pelo trabalho, o respeito pela dignidade e igualdade dos homens a imensa
admiração pela ciência, culto pela humildade e pelo saber com uma filantropia
rara e que em qualquer parte do mundo teria sido uma personalidade inesquecível
na História da Humanidade mas com espírito europeu pois outro não conhecia. Tudo
isto é já fruto de uma democracia transplantada da Europa e vinda da
inesquecível Grécia.
Convenhamos que a democracia ateniense é bem mais um mito do que uma
realidade e bem pouco durou o tempo de Péricles. Por entre todas as definições
deste tipo de sociedade há sempre direitos para o cidadão e liberdade que só se
realizaram bem perto de nós com as Revoluções de dois países, a França e a
América.
Se Rousseau nunca foi à América nem por isso deixa de estar nos seus
alicerces, na sua Constituição dos Direitos do Homem que ele assinaria de olhos
fechados, desta vez sem quaisquer desconfianças!
Novo Mundo, Velho Mundo!
Ideias e conceitos europeus de
progresso, optimismo e sentido racional da História acentuaram-se nos filhos da
Europa e continuaram. Aquele espírito de messianismo vindo da antiga Judeia,
passando para a cristandade verifica-se no modo como se caracteriza um novo
líder que surja. Em Portugal, dadas as circunstâncias de orfandade do povo,
transforma-se num sebastianismo há muito transmudado daquele que foi para aquele
que será e origina esse Encoberto de Pessoa e a loucura do sonho. Assim dito “Ficou
meu ser que houve, não o que há”[4]
porque o espírito inefável do Encoberto terá ainda maior força anímica do que o
jovem rei morto.
O Encoberto é esse salvador que a civilização Ocidental adoptou e surge em
cada horizonte de esperança. Devido a isso, há enorme expectativa e áurea mítica
à volta de alguém que chegue quer se trata de algum governante ou grande figura
mundial no palco social. Entra em estado de graça, pois todas as inconscientes
esperanças de muitas gerações se centralizam na sua imagem. Depois as desilusões
são sempre porque se descobre que afinal ainda não é esse o Messias tão
esperado.
É possível que, se os acontecimentos continuarem a desenrolar-se como nas
últimas décadas, a ideia de uma história direccional e universal rumo às
democracias liberais possa ser mais plausível para as pessoas e que o impasse
relativista do pensamento moderno se resolva
Um forte relativismo cultural e ideológico parece ter surgido das ciências a
partir do pensamento europeu. As ciências sociais e humanas parecem perder as
sinergias e o tom assertivo ou doutrinal passando para um discurso moderado,
numa conciliação teórica que revela bem mais as falhas de novas teses que
verdadeiramente essa conciliação de teorias e movimentos de diversos rumos. Foi
um movimento lento mas crescente desde que, pela primeira vez, a Europa se viu
confrontada seriamente com culturas não europeias, através do colonialismo e da
descolonização.
Muito do desenvolvimento dos séculos passados levou a um cepticismo e
declínio da confiança moral da civilização europeia. O surgimento económico e
cultural do 3º Mundo, e a emergência de novas ideologias – vieram reforçar esse
relativismo.
No entanto, um número cada vez maior de sociedades com culturas e História
seculares exibem agora, quase repentinamente, similares padrões de
desenvolvimento que nos espantam pela velocidade e acomodação dos povos ao
Ocidente. Se continuar a existir uma convergência no tipo das instituições que
organizam uma sociedade cada vez mais complexa, ter-se-á de concluir que o
desenvolvimento económico continuar a homogeneizar a humanidade, mas exceptuando
esse bloco monolítico dos fundamentalistas, os outros povos estão a
ocidentalizar-se nem sempre pelo que de melhor temos, mas pelo que consumimos. A
ideia de relativismo já não poderá parecer muito estranha. As aparentes
diferenças entre as linguagens “do bem e do mal” dos povos surgirão como
um artefacto do seu particular estádio de desenvolvimento.
Se a “aculturação” se deu com povos colonizados, agora até os alunos
das classe desfavorecidas das escolas na própria Europa e noutros países são
aculturados e esse é o seu único caminho para uma possível mobilidade de
estatuto social. Entretanto “os herdeiros” como os designa Bourdieu,
filhos das classes dominantes, encontram na escola um ” savoir dire e faire
“ que é semelhante à meio familiar.
Tendo em conta o capital com que chegam á escola, não há dúvida que apesar da
democratização e da política, a escola é a reprodução das desigualdades e as
hierarquias sociais estão dedutivamente para as hierarquias escolares. Assim, as
assimetrias sociais na instituição escolar legitimam as desigualdades e o ensino
plural e dissonante que aparece nos últimos tempos.
Se tal conclusão é pessimista para Bourdieu, para nós serve de explicação para
a “aculturação” do Oriente e do mundo em geral, ao Ocidente, sem vantagem a
curto prazo, mas uma promessa de conciliação para a acreditar no futuro do homem
global.
Os chineses eram um povo afeito a guerras, epidemias e fomes, em escala
aterradora. Assegurar a sobrevivência era o pensamento dominante. Agora pode
ver-se uma imagem assombrosamente ocidental, de que foi paradigma os Jogos
Olímpicos de Pequim. Já não era o Oriente que se apresentava ao Ocidente. Antes,
pelo contrário, o nosso deslumbramento de Ocidentais diante do grande
espectáculo era porque se podia afirmar perfeitamente aculturado.
Se pensarmos noutros países emergentes, observaremos o mesmo fenómeno. O Japão
é um país onde o ocidente reina porque o conhecimento e estilo de vida só assim
podiam afirmar-se do modo espantoso como acontece. A tecnologia, o conhecimento
que no Oriente não se separava da religião, da filosofia, nem dos outros
conhecimentos. Agora começa a especializar-se e a ocidentalizar-se porque navega
em novos mares onde todos nós aprendemos e procuramos alguma conciliação.
O progresso do Oriente só acontece porque se ocidentaliza. Para o bem e para o
mal a Humanidade tende para um só destino, porém são tantos os caminhos que só
de longe se percebe a unidade crescente.
Continuação das Viagens da História
Por entre muitas definições que
encontrámos para a democracia, tomamos por básica a que, no dizer de Francis
Fukuyama, é a de uma população “que tem o direito de escolher o próprio
governo através de eleições periódicas, secretas e multipartidárias, com base no
sufrágio universal e igualitário.”[5].
Se abrirmos a porta a outras definições de democracia contendo outros
parâmetros em nome da vontade geral de Rousseau ou em nome do povo tal qual
Lenine, instaura-se uma ditadura ou fundamentalismos de países islâmicos ou
terceiro mundistas ou ainda caímos num relativismo remete para uma maioria
silenciosa.
Num aspecto formal temos de colocar o liberalismo e a democracia em
paralelo sem contudo os confundir. Francis Fukuyama enfatiza o número crescente
de democracias que existem no mundo e o facto de na próxima geração haver a
possibilidade da democratização de países tão populosos como a Rússia e a China.
O liberalismo e a democratização dos povos estão num confronto único
constituindo “ o fenómeno macro político mais notável dos últimos 400 anos.”[6]
Uma breve Primavera, terminada tragicamente, é a pungente imagem da Praça de
Tiananmen, (1989) uma promessa de liberdade amordaçada. Um herói desconhecido
deixou o mundo suspenso no meio do protesto na Praça da Paz Celestial em 1989.
Foi o símbolo que pode representar um amanhecer que não pode tardar muito mais.
A via económica e a globalização não permitirão, podemos supor, por muito
mais tempo as portas da China fechadas pois se abrirão pelo lado de dentro por
uma geração anunciada. Curiosamente, parece que em breve será a China o país em
que mais pessoas falarão inglês e a ocidentalização será inevitável com acenos
de esperança de liberdade de expressão. As tentativas de unificação das línguas
faladas nesse imenso continente não terão tanta oportunidade de se conseguir
como a aculturação da língua inglesa tão importante para a expansão económica em
que investem cada vez mais.
A sua expansão e poder no mundo demonstram uma adaptabilidade onde quer que
se instalem, de Angola a Espanha, do Canadá à Itália.
O mundo muda tão rapidamente que os últimos anos vimos acontecimentos como
a ida à Lua, a queda da URRS, a “aldeia global”, até ao ensaio da
civilização da genética e do “homo” global. Já nem são os jornais, mas as
obras que anunciam o futuro de um modo científico que são bem antiquadas pois
depois de escrito o sonho já foi muito mais longe. Recordemos apenas Alvin
Toffler e o as suas obras acerca de “Choque do Futuro” ou ainda
Jean-Jacques Servant-Schreiber que nos lança um desafio e nos coloca no fim de
uma longa pré-história.
É espantoso como em tão pouco tempo, cerca de quatro séculos, proliferaram
as ideias de liberdade, de igualdade e de direitos que se estendem sem cessar
entre os mais diversos povos. Até se ouve algo que só enobrece o ser humano, o
seu lento reconhecimento dos direitos dos outros animais, depois de reconhecer
tão dificilmente a sua inteligência e mais ainda a sua afectividade.
É notável que o escritor Milan Kundera[7]
coloque, como pressuposto de toda a bondade humana, a relação que o homem
mantém para com os que estão á sua mercê: os animais. Infelizmente até agora, só
nos podemos envergonhar da nossa forma de agir para com os outros animais. Daí
decorre a maior derrota da Humanidade e todas as outras decorrem dela.
O certo é que a velocidade da História nunca foi tão veloz e as mudanças
mais surpreendentes. Por traz de tudo o que move os povos está a crescente
liberalização e a noção de liberdade e igualdade que não são etnocentristas mas
muito mais a possibilidade de reflectir sobre a existência de uma História
Universal
Parece-nos que o progresso a existir tem de trazer a liberdade e em vez
de pensar no fim da História, estaremos neste século XXI nos primórdios do
nascimento da Humanidade, e junta todas elas, no passado e no que se imagina
para o futuro, girando à volta da liberdade, da igualdade e do desenvolvimento
da democracia. O homem, que esta História Universal promete, teria de ter a
noção de direitos mútuos e de respeito por uma igualdade que a lei sancionasse
pela consciência moral que é um dos temas mais fascinantes a desenvolver na
condição humana.
O acordar da consciência moral é um dos resultados formais da democracia
considerando que todos os homens só podem progredir pelo saber e vivência moral.
Pode pensar-se que a democracia está doente e em risco. Mas esteve
sempre em risco e nunca foi perfeita. As dimensões que toma agora em todo o
mundo é que nos pode obrigar a pensar com algum optimismo, pese embora todas as
sombras das sociedades que temos.
Se os direitos humanos têm acompanhado a veloz evolução dos últimos
tempos, pouco se insiste nos consequentes deveres que os acompanham. Todavia tem
sido pelo dever, especialmente em função do mais forte face ao mais fraco que os
direitos têm progredido. Isso só resulta por uma consciência que desperta para a
universalidade da condição humana e nesta questão a filosofia europeia dá um
contributo fulcral. Se pensarmos apenas em Kant ou em Hegel e verificarmos a sua
perenidade temos aí uma dimensão à escala universal que não tem paralelo nem
sequer surgiram filósofos que fossem mais longe. Pelo contrário, revisitar tais
filósofos é bem refrescante face às pseudo novidades que as linguagens
hermenêuticas num barroquismo perigoso e forçada obscuridade procuram ocultar o
vazio de ideias renovadoras.
Numa complexificação crescente de instituições, de burocracias, de relações
formais, linguagens diligentemente barrocas para falar do essencial da vida, há
que regressar a uma velha abordagem da realidade. Beber das nascentes não tem
nada a ver com a água do Letes, antes pelo contrário, se percebe as grandes
mudanças do grande rio e as suas margens.
[1] Exupérit, Antoine Saint, A terra dos Homens, 1939.
[2] Burns, McNall, Edward, História da Civilização Ocidental, Edição, Centro do Livro Brasileiro, 4ª Edição, Cap. 27,p.845
[3] Dicionário das Grandes Filosofias, 205-210.
[4] Pessoa, Fernando, D. SEBASTIÃO Rei de Portugal", poesia extraído do livro Mensagem, http://forum.angolaxyami.com/poesia-portuguesa/12290-fernando-pessoa-d-sebastiao-rei-de-portugal-poesia-extraido-do-livro-mensagem.htl 05.03.10
[5] Futuyama, Francis, O Fim da História e o Último Homem, Edição Gradiva, 2ª Edição, Lisboa, 1999, p.63.
[6] Fukuyama, Francis, O Fim da História e o Último Homem, Edição Gradiva, 2ª Edição, Lisboa, 1999, p.63.
[7] Kundera, Milan, A Insustentável Leveza do Ser, 1984.
i] Russell Bertrand p. 234-235.Vol. IV.
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