"Odes ao Quotidiano"
Elogio da Proximidade
© Lúcia Costa Melo Simas .( 2010 )
Quase invisível
[ Decoração "Arte Nova" em edifício esquecido. Zona da Foz. Porto 2010 . ]
© Levi Malho - Imagem digital
ODE
AO PADEIRO MENINO
Aquele padeiro é um menino branco
Desconsolado
Olhando, mirando um bilhete
De lotaria avariado
Não lhe saiu nada
Não lhe saiu nada…
Mas ele não desiste de olhar
Como se o olhar mudasse
Destino, bilhete ou menino
E não tivesse de ter mãos
Para atender fregueses
A quem ele chama vizinhos
Mas é tudo mentira
Como o bilhete e o amor
Que ele sonhou na moça
Que espera logo à noite por ele…
Tem de casar, o padeirinho
Tão jovem e tão menino
Porque breve, breve outro menino
Vai ser filho do padeirinho
Dizem que ela gosta dele
E tudo estará bem e contente
Menos agora que ele olha
Tristemente
O bilhete quente da lotaria
Que não deu nada
Que não deu nada
Menos o menino que também
Ainda não diz nada
Mas já manda em tudo
Até casar padeiros meninos
Como se fermentassem crianças
Lá no calor e escuro
Do forno da padaria
Que nunca se vê, nem visita
Mas se acredita que existe
Como o céu e o inferno triste
De todo o fiel cristão
Com o troco e o pão na mão…
ODE
AO COVEIRO
Quando te conheci primeiro
Plantavas flores
Sobre mortos abandonados e discretos
E esquecias que por ali nas campas
Apodreciam os mortos
Eu nada sabia só das flores
E que podia brincar com elas
Em casa não te reconheci
Cinco filhos, cerveja e jornal
Por mim interrompidos
É natural que o coveiro se irrite
Quando lhe suspendem o noticiário
Que diz dos vivos que irá enterrar
Ele sabe tudo o que é importante
Depois de todos se irem embora
Cansados de tanto chorar
Cansados de tanto velar
Então fecha os mortos agasalhados
De terra e de flores a murchar
Sem pressa e com ritos
E gestos nada aflitos
Como quem cava couves e repolhos
Depois vai-se embora
Fechados que estão os mortos
A sete ferrolhos!
ODE À DANÇA DAS MOSCAS
Elas dançam sempre, suaves
Dançam sem esperar aplausos
Irritam ou quebram silêncios
Mas dançam sempre a sua melodia…
A dança das moscas na janela
Quando dá a luz da manhã
É mais bela e leve que a bailarina
Mas a bailarina tem a música
Por fora de cada gesto
A mosca descobre outra música
Por dentro, por cada movimento
Por vezes quando tem fadiga ou suor
A bailarina gostaria de ser mosca
A mosca nunca sabe dos sonhos
Nem das bailarinas
Só dança…
ODE AO VIZINHO
Toda a gente tem um vizinho qualquer
Um sujeito que é substantivo indefinido
Com portas para desaparecer
E muitas janelas para espreitar
Toda a gente sabe que por trás
Da porta e das janelas vive um cidadão
Que pode ser resmungão, delicado, poeta
Polícia, obscuro artista, reformado ou dentista
É uma sina ter um vizinho e não há quem
Desse destino, escape bem
E assim se diz Bons dias, entre dentes,
Ou Boas Tardes com Sol
E até lá vai uma Boa noite
Fora da hora
Com isso fica aviado o vizinho e vai embora
Desaparece o vizinho mas sabemos presente
Dono de portas e janelas
Tão igual a qualquer um de nós
Com a nossa porta e janelas fechadas
Como as nossas vidas caladas,
Dramas, doenças, risos e tragédias
Por trás de quatro ou mais paredes,
É isto o vizinho, um sujeito qualquer
Tão comum como nós que não temos tempo
Para dar a vizinhos, já bastamos nós!
Afinal também vizinhos somos todos
E estamos todos sós.
Bom dia, como vai?
É só o entra e sai
E lá se vão os passos!
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