"Ciclo das Marés"

  • O erro de Damásio

    ©  Lúcia Costa Melo Simas .( 2010 )

 

                     

        

O que acaba por ficar 

[  Algas chegadas à Praia após tempestade. Praia dos Ingleses. Foz. Porto 2009 . ]

© Levi Malho - Imagem digital

         


                                                       

              Se, por acaso, um filósofo dos nossos dias se pusesse a dissertar sobre neurologia, em termos próprios de um especialista, cairia no ridículo e no descrédito por mais transversalidade e interdisciplinaridade que se aceite.

           Com todo o respeito que o mérito do neurologista português António Damásio nos merece, parece-nos bem injusto e provocatório o título que deu a uma das suas mais conhecidas obras “O erro de Descartes", tanto mais que, com tal denominação, causou um enorme impacto publicitário e mais renome à custa de um dos pilares do pensamento Ocidental.

           Um conhecimento, mesmo que seja só pouco aprofundado do filósofo francês, retira qualquer proximidade de Damásio com o pensamento cartesiano. São campos perfeitamente separados no tempo, no espaço, no tema e nos objectivos. Descartes pode ser visto como um racionalista ou idealista mas o certo é fez uma revolução no conhecimento de que, ironicamente, o próprio Damásio é uma consequência sem que se dê conta disso.

    Começando pelo título da sua mais conhecida obra cartesiana “O Método”, teremos de refazer todo o caminho pois não é este o nome que Descartes deu ao seu livro. Isto é uma abreviatura do que se propôs escrever e que hoje em dia, para um leitor apressado, rouba os intuitos da conhecida e nem sempre lida obra.

            Na realidade, o título completo, que bem poucos atentam, é: “Discurso do Método para bem conduzir a própria Razão e procurar a Verdade nas Ciências”. Ora, com a recuperação da totalidade do título, vemos logo que a distinção entre filósofo e cientista não existia e, de facto, Descartes também foi um bom matemático e cientista para além de filósofo. Assim o seu método não era apenas para filosofar mas saber usar bem a razão no conhecimento científico e atingir a verdade que as ciências descobrem. O Cogito era o início de um caminho que levaria a um conhecimento capaz de abranger todas as áreas do saber, com a linguagem da matemática a traduzir a realidade total que o homem pode conhecer.  Não há nada de subjectivo ou emocional na racionalidade assim exposta que não é mais nem menos do que a forma universal do pensamento humano nas suas estruturas perfeitamente abstractas. Por isso se pode dizer que Descartes é uma figura histórica, mas o cartesianismo é sempre válido.  

        Por trás desse título, está o sonho de uma ciência universal em que a filosofia seria a guia pela sua racionalidade e encontraria o caminho (método) para abarcar e reunir todo o saber. Este sonho foi partilhado por muitos, entre eles os geniais Nicolau de Cusa e Leibniz!

           Não se tratava de um método “filosófico” como afirma sentenciosamente Gaarder, no sucesso de vendas que foi “O mundo de Sofia [1], pois até o conceito de filósofo é aplicado de tal modo que, na sua época, Descartes o rejeitaria, bem como o que afirma acerca do método, sem esse rigor e a abrangência que tem o título da obra.

           Sabe-se que a história das ciências é formada por modelos que se sucedem e o passado é esquecido por novas invenções e descobertas. Assim, o tempo apagará o nome de Damásio, mas não o de Descartes. As razões estão na intemporalidade de um e na efemeridade e relativismo científico do outro. A ciência está sempre pouco preocupada com paradigmas ultrapassados que se sucedem continuamente.

           O pensamento cartesiano permanece vivo pois se refere a um cogito que raciocina e é universal e não a uma pessoa ou indivíduo com toda a sua subjectividade nas suas decisões e escolhas. Temos de pensar que, como raciocínio, continuamos sempre todos a usar as estruturas lógicas, quando se trata da ciência, sem qualquer presença da subjectividade. Somar e dividir, toda a linguagem matemática é universal como a estrutura do pensamento que a usa.

            Ai está o nó górdio que a ciência não pode cortar. O eu que pensa não possui qualquer emotividade ao multiplicar sete vezes sete, isso é uma evidência insofismável. Quando se erra na multiplicação está errado para todos e ninguém pode duvidar, de tal sem que o seu raciocínio esteja afectado.  

              Claro que uma decisão acerca de um problema qualquer, como cortar o cabelo ou dar tiros num possível inimigo, não entrava nas cogitações de Descartes. Isso é já bem subjectivo e depende muito mais da psicologia do que de qualquer outra ciência. Se Descartes se dedicou à psicologia, às paixões e à vontade, hoje isso só tem um interesse histórico, como a neurologia de hoje não interessará amanhã.

             Assim, os estudos, que agora surgem depois de Damásio, acerca das tomadas de decisão da nossa mente não se referem à filosofia mas a um campo científico em contínua evolução.

           Quando o jovem e polémico neurologista Jonah Lehrer escreve a obra “Proust era um neurocientista[2] e outros textos, acerca do modo como decidimos ou sobre as intuições, refere-se à multiplicidade de análises da linguagem dos escritores que demonstram as relações psicológicas e neurológicas entre as emoções e as decisões. Todavia, temos de ver que Lehrer, que também é formado em Literatura inglesa, debate-se com o problema de que, tanto a arte, como as ciências “têm linguagens diferentes” e tenta uma aproximação de cada subjectividade criativa que, de modo algum, pode ser generalizada. É exactamente aí que se distingue o cartesianismo de todo o reducionismo neurológico.   Descartes estudava as leis da lógica do pensamento humano e dentro desse tema é que a sua revolução filosófica se move. Deste modo, estará mais perto das matemáticas, como linguagem universal irrefutável, do que todas as neurologias que se queriam abrigar sob a sua égide.

            Nada mais fácil nem mais inútil do que refutar um filósofo”, escreveu sarcasticamente Schopenhauer e, apesar do grande público e da maioria das pessoas não estudar Descartes, saber que não errou mas sim que pode ser sempre erradamente interpretado recorda a ironia com que ele próprio inicia a sua famosa obra, afirmando que ninguém neste mundo se queixa de falta de bom senso porque cada qual pensa tão bem provido dele que nem deseja ter mais do que tem, podemos acrescentar que, nem por isso se sabe bem como anda distribuído.

 

 



NOTAS:


[1] Gaarde, Jostein, O Mundo de Sofia, - Uma aventura na Filosofia, Editorial Presença, Lisboa, 2ª Edição, 1995, p.209.

[2] The Frontal Cortex, Jonah Lehrer, 15.03.10.